I
Quem
quiser saber a fundo o que foi o reino de trevas do regime salazarista
(1933-1974) não pode deixar de conhecer a obra do romancista, teatrólogo e
poeta Orlando da Costa (1929-2006), que, nascido na antiga Lourenço Marques,
hoje Maputo, em Moçambique, numa família goesa de brâmanes católicos, e criado
em Margão, na Índia, viveu em Lisboa desde os 18 anos de idade, tendo exercido
a profissão de redator publicitário. E que ainda hoje tem o seu nome ligado à
história de Portugal, pois é seu filho António Costa, primeiro-ministro do
governo português desde 2015 e secretário-geral do Partido Socialista desde
2014.
Militante
comunista desde os anos da juventude, sua produção como literato sempre esteve
ligada umbilicalmente àquela ideologia, embora seus versos, romances e peças de
teatro arte e ideologia “resolvam-se num corpo único, harmônico”, parafraseando-se
aqui uma observação da ensaísta brasileira Maria Lúcia Lepecki (1940-2011),
professora universitária radicada por muitos anos em Portugal, sobre o seu
fazer poético.
Para
homenagear o que seria o 90º aniversário desse notável escritor, a Revista
Vértice, de Lisboa, publicou, em seu número 192, de julho-agosto-setembro
de 2019, um dossier sobre a vida
e a obra de Orlando da Costa, reunindo seis ensaios e sete prefácios e posfácios
às obras do escritor, além de uma entrevista (pouco conhecida) dada por escrito
ao padre goês Eufemiano de Jesus Miranda em 1988 e que veio a ser publicada em Oriente
e Ocidente na Literatura Goesa: Realidade, Ficção, História e Imaginação
(Goa, 2012).
Como
introdução há o texto “Podem chamar-lhe Orlando”, do investigador brasileiro
Everton V. Machado, doutor em Literatura Comparada pela Universidade de
Paris-Sorbonne/Paris IV (2008) e professor auxiliar da Faculdade de Ciências
Humanas da Universidade Católica Portuguesa, profundo conhecedor da literatura
indo-portuguesa, que faz uma apresentação dos demais textos.
II
Em
1961, Orlando da Costa publicou o seu primeiro romance, O Signo da Ira,
que recebeu o Prêmio Ricardo Malheiros da Academia das Ciências de Lisboa. À
época, os exemplares foram apreendidos pela Polícia Internacional e de Defesa
do Estado (Pide), organismo estatal de inspiração fascista do regime
salazarista, tal como tinha acontecido com três livros de poesia anteriores: A
Estrada e a Voz (1951), Os Olhos sem Fronteira (1953) e Sete Odes
do Canto Comum (1955), reunidos depois em Canto Civil (1979).
De
Signo da Ira, Maria Alzira Seixo, professora catedrática da Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, diz, em seu ensaio “A ficção de Orlando da
Costa: inscrições narrativas da terra e do humano”, que este é talvez o grande
romance da ex-Índia portuguesa na História literária portuguesa. “É um romance
de amor à terra e de amores na terra, cantando a juventude e a inocência,
deplorando o agro perdido e o vigor da criação estiolada, devido ao sofrimento
e à maldade gananciosa”, diz.
Como
observa Hélder Garmes, professor livre-docente da Universidade de São Paulo, no
ensaio “Colonialismo e conflito cultural em O Signo da Ira de Orlando da
Costa”, o romance trata dos curumbins, que, em termos de castas, equivaleria
aos sudras, isto é, uma casta que se caracteriza por executar trabalhos braçais
pesados na lavoura, trabalhos de limpeza, entre outras atividades pouco
prestigiadas socialmente”.
III
O
mesmo trágico destino viria a ter o romance Podem Chamar-me Eurídice,
concluído em 1963 e publicado em 1964, apreendido pela Pide dois meses depois
de lançado. O livro, que reflete a experiência de vida do autor na década de
1950, seu tempo na universidade, constitui “o retrato de uma situação típica
dos anos 60, a repressão contra a chamada subversão universitária, levada até à
violência extrema do assassinato pelos agentes da Pide”, como observou o crítico
e historiador Alexandre Pinheiro Torres (1923-1999) no ensaio “Os
imprescindíveis nexos “mito-realidade” e “morte-transfiguração” num notável
romance do underground antifascista português”, publicado à guisa de
prefácio na terceira edição do livro (1985) e reproduzido no dossier de Vértice.
O
terceiro romance de Orlando da Costa, Os Netos de Norton (1994),
igualmente reconstitui as lutas políticas em Lisboa, desta vez abordando a
geração que lutou contra os estertores salazaristas da campanha de Humberto
Delgado (1906-1965), o “general sem medo”, que foi derrotado nas urnas em 1958
num processo eleitoral considerado fraudulento, passando pela “primavera
marcelista”, liderada por Marcello Caetano (1906-1980), último presidente do
regime salazarista, até o 25 de Abril, movimento que derrubou o Estado Novo,
vigente desde 1933. Este livro lhe valeu o Prémio Eça de Queiroz, da Câmara
Municipal de Lisboa.
Para
Maria Alzira Seixo, estes romances já seriam suficientes para consagrar Orlando
da Costa, mas o autor publicou ainda O Último Olhar de Manú Miranda
(2000), que “exibe elevado grau de complexidade narrativa-descritiva (em
simultâneo) que não tem sido assim tão frequente na ficção portuguesa”. É um livro que narra a vida de Manú Miranda,
que seria um alter ego do autor, mostrando como viviam e se relacionavam
goeses e visitantes, a partir de uma saga familiar que passa pela colonização
britânica, pela luta do líder indiano Mahatma Gandhi (1869-1948) e a Segunda
Guerra Mundial, seus costumes, crenças e idiossincrasias e preconceitos, como
observa Maria Alzira Seixo, para quem a obra pode ser considerada uma espécie
de Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto (1509-1583), o livro de viagens
português mais conhecido no mundo.
IV
Filho
do goês Luís Afonso Maria da Costa e de Amélia Maria Fréchaut Fernandes,
nascida em Moçambique de mãe francesa, Orlando casou-se primeira vez com a
jornalista Maria Antónia de Assis dos Santos, com quem teve uma filha, Isabel
dos Santos da Costa (1957-1960), que morreu num acidente de viação, e um filho,
o político António Costa. Divorciaram-se em 1962. Orlando casou-se segunda vez
com Inácia Martins Ramalho de Paiva, da qual teve um filho, o jornalista
Ricardo Costa.
Licenciado
em Ciências Histórico-Filosóficas pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
não conseguiu estabelecer-se como professor porque a Pide emitiu parecer
negativo. Como publicitário, integrou durante vários anos a agência Marca, onde
chegou a diretor-geral. Trabalhou, entre outras marcas, com a Ford, Volkswagen,
Nestlé e Páginas Amarelas.
Durante
a ditadura, chegou a apoiar a candidatura do general Norton de Matos
(1867-1955) em 1949, mas desistiu antes das eleições em razão da falta de
liberdade e de possíveis fraudes eleitorais. Por sua militância, foi preso três
vezes pela Pide, tendo permanecido, na última vez, na cadeia de Caxias durante
cinco meses. Militou no Movimento de Unidade Democrática (MUD) Juvenil e no
Partido Comunista Português, organismo que serviu de 1954 até a data de sua
morte.
Poucos
dias antes de falecer, a 5 de janeiro de 2006, recebeu das mãos do presidente
Jorge Sampaio o grau de Comendador da Ordem da Liberdade. É autor ainda das
peças de teatro A como estão os cravos hoje? (1984) e Sem Flores nem
Coroas (1971). Esta última peça igualmente remete para as memórias da
presença colonial portuguesa no Estado da Índia, como observa Filomena Gomes
Rodrigues, doutora em Estudos Portugueses pela Universidade Aberta em ensaio também
publicado neste número especial de Vértice. O dossier inclui
ainda textos de Mário de Carvalho, Daniela Spina, José Manuel Mendes, Luiz
Francisco Rebello, Gonçalo M. Tavares, Rosa Maria Peres e Ana Margarida de
Carvalho, além de um posfácio do próprio Orlando de Carvalho para o seu livro Podem
Chamar-me Eurídice (1974). Adelto Gonçalves - Brasil
Revista
Vértice, Lisboa, série II, nº 192, julho-setembro de 2019, 144
páginas, 8,50 euros. E-mail: assinaturas@paginaapagina.pt Site: www.paginaapagina.pt
Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003), Tomás Antônio Gonzaga
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio
Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o
Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros.
E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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