Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

Cesário Verde, precursor do Modernismo

                                                            I
O poeta Cesário Verde (1855-1886) teve uma vida breve, mas viveu o suficiente para produzir uma obra que até hoje fascina críticos e leitores de bom gosto. Essa obra, que andou por muito tempo dispersa, agora pode ser encontrada em um só livro por iniciativa de um professor, crítico literário, poeta, romancista e contista brasileiro, Ricardo Daunt, autor de Obra Poética Integral de Cesário Verde, publicada em Portugal em 2013 pela Dinalivro, de Lisboa, depois de ter sido lançada no Brasil em 2006 pela Landy Editora, de São Paulo, em edição (hoje esgotada) que teve o apoio do Instituto Português do  Livro e das Bibliotecas.

Profundo conhecedor da obra do poeta, Daunt é autor da tese de doutoramento “Cesário Verde: um trapeiro nos caminhos do mundo”, defendida em 1992 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), trabalho revisto em 1993, com um novo título: “Cesário Verde: um poeta no meio-fio do paraíso (estudo literário)”. Ao reunir a produção poética (na íntegra e sem falhas) de Cesário Verde, Daunt preparou também uma tábua cronológica que procura reconstituir o que teria sido a vida do poeta, ao mesmo tempo em que assinala os principais fatos acontecidos em Portugal e no mundo durante os 31 anos de sua curta existência.

Do livro constam ainda cartas pessoais escritas pelo jovem poeta a amigos e outras comerciais do tempo em que trabalhava na loja de ferragens do pai, que estava situada à Rua dos Fanqueiros, na Baixa Pombalina, em Lisboa, e, mais tarde, a partir de 1874, numa propriedade rural da família em Linda-a-Pastora. É de se ressaltar que da biografia do poeta já se havia ocupado o bibliófilo João Pinto de Figueiredo (1917-1984), autor de Álbum de Cesário Verde (1978), com fotografias e cartas inéditas do poeta, e A vida de Cesário Verde (1981).

Ricardo Daunt, na apresentação que escreveu para a própria obra, observa que a produção poética de Cesário Verde antecipa Henri Bergson (1859-1941) e Edmund Husserl (1859-1938), “pois toda ela se fundamenta na bipolarização da vivência intencional, e que no entanto também se encontra questionada pelo caráter transrealista do poeta que almeja a transcendência, a dimensão do absoluto”. Em seguida, observa que Cesário Verde, à maneira do individualismo de Friedrich Nietzche (1844-1900), formula um solitário herói andarilho, “testemunha de um mundo em transformação radical”, ao lado de um humanitarismo proudhonista que o leva “a atentar para as questões contingenciadas pela condição imanente”.

Para Daunt, Cesário Verde, embora tenha sido pouco lido e muito pouco compreendido em sua época, não só revolucionou a poesia portuguesa “com um timbre e intensidade raros no Portugal do século XIX”, como tornou-se um precursor da poesia que seria praticada no país no século XX, a ponto de ter sido reverenciado pelos modernistas. Basta dizer que Fernando Pessoa (1888-1935) o considerava um mestre e que reflexos de sua obra são sentidos em peças poéticas dos heterônimos pessoanos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Bernardo Soares, que, inclusive, chegam mesmo a citá-lo em seus poemas.

Na verdade, o seu estilo impressionista, perpassado por motivos prosaicos, difere de tudo o que se conhecia por poesia no Portugal do século XIX, como se pode constatar pela leitura deste excerto do poema “Nós”, publicado em 1884 na revista A Ilustração, de Paris, e que reproduz o ambiente de terror vivido em Lisboa por ocasião da epidemia de cólera:

Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre/ E o Cólera também andaram na cidade, / Que esta população, com um terror de lebre, / Fugiu da capital como da tempestade. / Ora, meu pai, depois das nossas vidas salvas / (Até então nós só tivéramos sarampo), / Tanto nos viu crescer entre uns montões de malvas / Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo! / Se acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: / O que se ouvia sempre era o dobrar dos sinos; / Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos / Morreram todos. Nós salvamo-nos na fuga. (...).

                                                 II
Cesário Verde, filho do lavrador e abastado comerciante e ferrageiro José Anastácio Verde (1813-1888) e de sua mulher Maria da Piedade David dos Santos (1821-1890), estreou na literatura, aos 18 anos de idade, publicando versos no Diário de Notícias, de Lisboa. Entre 1874 e 1875, publicou vários poemas em outros jornais e revistas e passou a fazer parte da confraria que se reunia no café Martinho, frequentado por António Gomes Leal (1848-1921), João de Deus (1830-1896), Ramalho Ortigão (1836-1915) e Eça de Queiroz (1845-1990), entre outros literatos.

Foi atacado no jornal Diário Ilustrado, respondendo com uma sátira. Ramalho Ortigão criticou-o sem entendimento e com arrogância. Durante o ano de 1876, publicou com menos frequência e nos anos que se seguiram continuou a ser alvo de mais críticas e maior incompreensão. Em 1880, publicou “O Sentimento dum Ocidental” em “Portugal a Camões”, número especial do Jornal de Viagens, do Porto, no âmbito das comemorações do tricentenário da morte de Luís de Camões (c.1524-1580).

Em 1877, começou a apresentar sintomas de tuberculose pulmonar, doença que já tinha levado a sua irmã Maria Júlia Verde (1853-1872) e posteriormente seu irmão Joaquim Tomás Verde (1858-1882). Em 1885, o seu estado de saúde começou a agravar-se, vindo a morrer em 19 de julho de 1886. Em 1887, Silva Pinto (1848-1911) publicou O Livro de Cesário Verde, reunindo seus poemas, com uma tiragem de 200 exemplares, que não chegaram a ser postos à venda.

                                                III
Ricardo Daunt é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), com dois pós-doutorados realizados fora do Brasil. Um deles sobre o Modernismo de Portugal, que resultou em vários trabalhos sobre a revista Orpheu, lançada em 1915 por um grupo liderado por Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). O outro sobre Thomas Stearns Eliot (1888-1965) e Fernando Pessoa, que resultou em T. S. Eliot e Fernando Pessoa: diálogos de New Haven, ensaios (São Paulo, Landy, 2004).

Foi professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e na Universidade Federal do Rio Grande Norte (UFRN) e professor visitante na Yale University (EUA). Como ficcionista escreveu O romance de Isabel (São Paulo, Novo Século, 2013), terceiro volume de uma trilogia que começa com Manuário de Vidal (Codecri, 1981) e prossegue com Anacrusa (Nankin, 2004), e Migração dos Cisnes (São Paulo, Global, 2010). Tem concluído um novo romance: Adamastor Finkel: entre a sombra e a luz. É co-autor do romance A muralha da China (São Paulo, T.A. Queiroz, 1982), em parceria com Álvaro Cardoso Gomes.  

Publicou ainda os livros de contos Juan (Rio de Janeiro, José Olympio, 1975), Homem na prateleira (São Paulo, Ática, 1979), Endereços úteis (Rio de Janeiro, Codecri, 1984) e Poses (São Paulo, Via Lettera, 2005) e os livros de novelas Grito empalhado (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979) e Blake versus Claude (Porto Alegre, Mercado Aberto, 1990), entre outras obras. Adelto Gonçalves - Brasil


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Obra Poética Integral de Cesário Verde (1855-1886). Texto definitivo, com organização, apresentação, tábua cronológica e cartas reunidas por Ricardo Daunt. Lisboa, Dinalivro, 258 págs., 2013, 16,96 euros.



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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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