I
O poeta Cesário Verde (1855-1886) teve uma
vida breve, mas viveu o suficiente para produzir uma obra que até hoje fascina
críticos e leitores de bom gosto. Essa obra, que andou por muito tempo
dispersa, agora pode ser encontrada em um só livro por iniciativa de um
professor, crítico literário, poeta, romancista e contista brasileiro, Ricardo
Daunt, autor de Obra Poética Integral de Cesário Verde, publicada em
Portugal em 2013 pela Dinalivro, de Lisboa, depois de ter sido lançada no
Brasil em 2006 pela Landy Editora, de São Paulo, em edição (hoje esgotada) que
teve o apoio do Instituto Português do
Livro e das Bibliotecas.
Profundo
conhecedor da obra do poeta, Daunt é autor da tese de doutoramento “Cesário
Verde: um trapeiro nos caminhos do mundo”, defendida em 1992 na Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo
(USP), trabalho revisto em 1993, com um novo título: “Cesário Verde: um poeta
no meio-fio do paraíso (estudo literário)”. Ao reunir a produção poética (na
íntegra e sem falhas) de Cesário Verde, Daunt preparou também uma tábua
cronológica que procura reconstituir o que teria sido a vida do poeta, ao mesmo
tempo em que assinala os principais fatos acontecidos em Portugal e no mundo
durante os 31 anos de sua curta existência.
Do
livro constam ainda cartas pessoais escritas pelo jovem poeta a amigos e outras
comerciais do tempo em que trabalhava na loja de ferragens do pai, que estava
situada à Rua dos Fanqueiros, na Baixa Pombalina, em Lisboa, e, mais tarde, a
partir de 1874, numa propriedade rural da família em Linda-a-Pastora. É de se
ressaltar que da biografia do poeta já se havia ocupado o bibliófilo João Pinto
de Figueiredo (1917-1984), autor de Álbum de Cesário Verde (1978), com fotografias
e cartas inéditas do poeta, e A vida de Cesário Verde (1981).
Ricardo
Daunt, na apresentação que escreveu para a própria obra, observa que a produção
poética de Cesário Verde antecipa Henri Bergson (1859-1941) e Edmund Husserl
(1859-1938), “pois toda ela se fundamenta na bipolarização da vivência
intencional, e que no entanto também se encontra questionada pelo caráter
transrealista do poeta que almeja a transcendência, a dimensão do absoluto”. Em
seguida, observa que Cesário Verde, à maneira do individualismo de Friedrich Nietzche
(1844-1900), formula um solitário herói andarilho, “testemunha de um mundo em
transformação radical”, ao lado de um humanitarismo proudhonista que o leva “a
atentar para as questões contingenciadas pela condição imanente”.
Para
Daunt, Cesário Verde, embora tenha sido pouco lido e muito pouco compreendido
em sua época, não só revolucionou a poesia portuguesa “com um timbre e
intensidade raros no Portugal do século XIX”, como tornou-se um precursor da
poesia que seria praticada no país no século XX, a ponto de ter sido
reverenciado pelos modernistas. Basta dizer que Fernando Pessoa (1888-1935) o
considerava um mestre e que reflexos de sua obra são sentidos em peças poéticas
dos heterônimos pessoanos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Bernardo Soares,
que, inclusive, chegam mesmo a citá-lo em seus poemas.
Na
verdade, o seu estilo impressionista, perpassado por motivos prosaicos, difere
de tudo o que se conhecia por poesia no Portugal do século XIX, como se pode constatar
pela leitura deste excerto do poema “Nós”, publicado em 1884 na revista A
Ilustração, de Paris, e que reproduz o ambiente de terror vivido em Lisboa
por ocasião da epidemia de cólera:
Foi quando em dois verões, seguidamente, a Febre/ E o
Cólera também andaram na cidade, / Que esta população, com um terror de lebre,
/ Fugiu da capital como da tempestade. / Ora, meu pai, depois das nossas vidas
salvas / (Até então nós só tivéramos sarampo), / Tanto nos viu crescer entre
uns montões de malvas / Que ele ganhou por isso um grande amor ao campo! / Se
acaso o conta, ainda a fronte se lhe enruga: / O que se ouvia sempre era o
dobrar dos sinos; / Mesmo no nosso prédio, os outros inquilinos / Morreram
todos. Nós salvamo-nos na fuga. (...).
II
Cesário
Verde, filho do lavrador e abastado comerciante e ferrageiro José Anastácio
Verde (1813-1888) e de sua mulher Maria da Piedade David dos Santos (1821-1890),
estreou na literatura, aos 18 anos de idade, publicando versos no Diário de
Notícias, de Lisboa. Entre 1874 e 1875, publicou vários poemas em outros
jornais e revistas e passou a fazer parte da confraria que se reunia no café
Martinho, frequentado por António Gomes Leal (1848-1921), João de Deus
(1830-1896), Ramalho Ortigão (1836-1915) e Eça de Queiroz (1845-1990), entre
outros literatos.
Foi
atacado no jornal Diário Ilustrado, respondendo com uma sátira. Ramalho
Ortigão criticou-o sem entendimento e com arrogância. Durante o ano de 1876,
publicou com menos frequência e nos anos que se seguiram continuou a ser alvo
de mais críticas e maior incompreensão. Em 1880, publicou “O Sentimento dum
Ocidental” em “Portugal a Camões”, número especial do Jornal de Viagens,
do Porto, no âmbito das comemorações do tricentenário da morte de Luís de Camões
(c.1524-1580).
Em
1877, começou a apresentar sintomas de tuberculose pulmonar, doença que já
tinha levado a sua irmã Maria Júlia Verde (1853-1872) e posteriormente seu
irmão Joaquim Tomás Verde (1858-1882). Em 1885, o seu estado de saúde começou a
agravar-se, vindo a morrer em 19 de julho de 1886. Em 1887, Silva Pinto (1848-1911)
publicou O Livro de Cesário Verde, reunindo seus poemas, com uma tiragem
de 200 exemplares, que não chegaram a ser postos à venda.
III
Ricardo
Daunt é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de
São Paulo (USP), com dois pós-doutorados realizados fora do Brasil. Um deles
sobre o Modernismo de Portugal, que resultou em vários trabalhos sobre a
revista Orpheu, lançada em 1915 por um grupo liderado por Fernando
Pessoa e Mário de Sá-Carneiro (1890-1916). O outro sobre Thomas Stearns Eliot
(1888-1965) e Fernando Pessoa, que resultou em T. S. Eliot e Fernando
Pessoa: diálogos de New Haven, ensaios (São Paulo, Landy, 2004).
Foi
professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e na Universidade Federal
do Rio Grande Norte (UFRN) e professor visitante na Yale University (EUA). Como
ficcionista escreveu O romance de Isabel (São Paulo, Novo Século, 2013),
terceiro volume de uma trilogia que começa com Manuário de Vidal
(Codecri, 1981) e prossegue com Anacrusa (Nankin, 2004), e Migração
dos Cisnes (São Paulo, Global, 2010). Tem concluído um novo romance: Adamastor
Finkel: entre a sombra e a luz. É co-autor do romance A muralha da China
(São Paulo, T.A. Queiroz, 1982), em parceria com Álvaro Cardoso Gomes.
Publicou
ainda os livros de contos Juan (Rio de Janeiro, José Olympio, 1975), Homem na prateleira (São Paulo, Ática,
1979), Endereços úteis (Rio de Janeiro, Codecri, 1984) e Poses (São
Paulo, Via Lettera, 2005) e os livros de novelas Grito empalhado (Rio de
Janeiro, Civilização Brasileira, 1979) e Blake versus Claude (Porto
Alegre, Mercado Aberto, 1990), entre outras obras. Adelto Gonçalves - Brasil
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Obra Poética
Integral de Cesário Verde (1855-1886). Texto definitivo, com
organização, apresentação, tábua cronológica e cartas reunidas por Ricardo
Daunt. Lisboa, Dinalivro, 258 págs., 2013, 16,96 euros.
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Adelto
Gonçalves é doutor em Letras na
área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga,
um Poeta do Iluminismo (Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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