I
Lançado em janeiro de 2001 pela Editora Gótica, de Lisboa, o romance Jardins Secretos, de Manuela Gonzaga (1951), teve uma trajetória brilhante: além de ter sido incluído no plano de ensino da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa e da disciplina de Cultura Portuguesa da Universidade de Georgetown, de Washington DC (EUA), agora culmina (se não for ainda mais longe), para além de uma projetada reedição pela Bertrand Editora, com uma tradução para o francês de Laure Elisabeth Collet em edição da Le Poisson Volant, de Paris, seguindo o caminho de Imperatriz Isabel de Portugal, biografia (Bertrand, 2012), que em 2019 foi saiu por aquela editora francesa sob o título Isabelle de Portugal, l´Impératrice. Mais: Jardins Secretos de Lisboa, título que passou a ter depois da segunda edição (2005), também está destinado a integrar aulas numa universidade francesa.
O romance conta a história de Alice, uma mulher fragilizada e fotógrafa desiludida, que conhece Jorge, pessoa de língua ferina e comportamento libertino. A partir daí, começa uma história que a leva a descobrir uma outra cidade dentro de uma Lisboa já conhecida, aquela que é vista apenas de fora, através do olhar de um utente à janela de um elétrico.
Dessa maneira, Alice, uma rapariga que carrega uma história comum, pela mão do amante, vai descobrir uma cidade subterrânea, que esconde por entre os seus monumentos e prédios seculares, bordéis de muito respeito e “jardins secretos”, ou seja, locais de encontros furtivos onde reina a lascívia. Filha de um fotógrafo, que também tivera o seu “jardim secreto”, ou seja, um pequeno estúdio localizado ao Chiado, Alice começa assim a cumprir um percurso iniciático e a descobrir os chamados segredos de Lisboa, que ficam numa região que vai do Chiado à Baixa pombalina, dos Restauradores ao Largo de Camões, passando pelo Cais do Sodré, Terreiro do Paço, Rossio, Praça da Alegria, Intendente, Avenida Almirante Reis, Arroios, até a Alameda e arredores.
II
Em seu estúdio ao Chiado, o pai de Alice fotografara muitas mulheres, inclusive uma jovem de nome Amália, de corpo escultural. Apaixonada pelo fotógrafo, mas repudiada, Amália, desiludida, acabaria por mergulhar no abismo da prostituição, passando a trabalhar num lupanar estabelecido no último andar de um prédio da Praça da Figueira, eufemisticamente chamado de “salão”, dirigido pela senhora Maria do Amparo, mais conhecida como madame Brigite, cafetina famosa na noite de Lisboa aos tempos finais do salazarismo (1933-1974), por seu comportamento “honesto”, pois repudiava as propostas para “que arranjasse rapazes para entreterem homens e raparigas para divertirem mulheres”, sugestões que seriam “feitas com a maior delicadeza, e vinham das mais altas esferas sociais” (pag.209).
Aquela Amália, virgem, de 23 anos, acabaria por procurar a dona do bordel disposta a se prostituir. Foi, então, que a cafetina vislumbrou a possibilidade de ganhar muito dinheiro de uma só vez, leiloando a virgindade da rapariga, que seria arrematada por Humberto Peixoto, um dos homens mais ricos de Angola, que, desde 1961, tinha casa em Lisboa, na Avenida da República, um palacete Prêmio Valmor, art déco, restaurado, além de magnífica casa na fazenda em Kunda-dia-Baze, no distrito angolano de Malange, e que seria rico oficialmente por causa do algodão, mas que, por detrás dos panos, extraía diamantes de secretíssimos filões no continente africano.
Eis como a romancista descreve a primeira noite da rapariga no bordel: “Amália sentiu que as forças a abandonavam. O cheiro poderoso de Humberto escorraçava, poderosamente, todas as outras lembranças (...) “És tão bonita, és tão bonita, és tão bonita”, disse ele, com aquela voz de recordação que ainda lhe dobrava a vontade. Depois afundou-se. Amália gemeu de novo: “O amor é um espaço escuro como a noite” – pensou, com uma tristeza imensa. E entregou-se-lhe sem resistir mais. E Humberto Peixoto, que pagou uma fortuna para a ter nos braços, teve de fechar os olhos e pensar noutras para a conseguir abraçar. Da legião de virgens que lhe desfilaram na memória, encontrou uma, a predileta, a favorita, a que quase poderia ter amado, se soubesse o que isso era. Uma mucubal, orgulhosa como uma rainha, e tão bela que até as chitas pareceram aceitá-la, e que ele teve de devolver, dois anos depois, à família. Por se sentir cada vez mais atraído por ela”. (págs. 284/285).
III
Escrito num estilo narrativo singelo e direto que só quem dedicou a maior parte da vida ao jornalismo diário chega a alcançar, este romance surpreende por apresentar um tema que, geralmente, é procurado por escritores homens. Mas quem tiver a oportunidade de percorrê-lo de cabo a rabo vai confirmar o que disse o romancista espanhol Eduardo Mendoza, em entrevista a este articulista, em Barcelona, em janeiro de 1990, sobre a literatura praticada por mulheres, ou seja, que elas escrevem de maneira distinta. De fato, nos dias de hoje, é difícil que um romancista homem faça uma imagem que não seja conhecida. Já as mulheres romancistas têm imagens próprias, outra sensibilidade e outra forma de ver o mundo e as coisas. É o caso de Manuela Gonzaga.
Como observa a professora Sílvia Chicó, na contracapa da segunda edição da obra, este romance, de extensa profundidade psicológica, constitui um “retrato com extremo rigor” da “geração da guerra colonial da passagem da ditadura para a liberdade”, ou seja, a própria geração da autora. Responsável pela inclusão do livro no plano de ensino da Faculdade de Belas Artes, de Lisboa, a professora destaca a construção de sua trama narrativa “sofisticada e original”, bem como a estrutura do romance, resultado de uma imaginação incomum e de uma rara capacidade metafórica. Está dito tudo.
IV
Nascida no Porto, onde viveu até os 12 anos de idade, Manuela Gonzaga, em companhia da família, viveu em Moçambique e Angola. E logo começou uma carreira de jornalista na redação do Jornal de Notícias, da antiga Lourenço Marques, hoje Maputo. Em Luanda, trabalhou na revista Notícia, até que se mudou para Lisboa, onde cumpriu uma trajetória que incluiu os principais meios de comunicação de Portugal, como os jornais Correio da Manhã, Público e O País e as revistas Marie Claire e Pais, entre outros. Atuou também no Telejornal e no programa Bom Dia Domingo da Rádio e Televisão de Portugal (RTP). Desde 2000, dedica-se à investigação e à escrita em tempo integral, colaborando pontualmente na imprensa portuguesa com crônicas e artigos.
Mestre em História dos Descobrimentos e Expansão Portuguesa e doutoranda em História pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa, é investigadora associada ao Centro de História Além-Mar (CHAM) da Universidade Nova de Lisboa. Desde 2000, tem se dedicado a escrever biografias. Além de Imperatriz Isabel de Portugal, que conta a história daquela que era considerada a mais bela mulher do seu tempo e que casou com Carlos V (1500-1558), rei de Hispânia e imperador do Sacro Império Romano-Germânico, Manuela Gonzaga escreveu Maria Adelaide Coelho da Cunha: “doida não e não” (Lisboa, Bertrand, 7ª ed., 2009), que resgata a história de uma herdeira do fundador e co-proprietário do jornal Diário de Notícias, presa num manicômio por ousar contrariar o destino: em 1918, mulher rica de 48 anos, trocou marido, filho e vida de luxo pelo seu motorista de 26 anos; e António Variações, entre Braga e Nova Iorque, biografia (Lisboa, Âncora, 2006), que aborda a vida e a obra de um músico-barbeiro que, precocemente desaparecido, marcou a cena musical e social em Portugal na década de 1980.
É também ativista social, tendo envolvimento político em favor de causas humanitárias, dos direitos dos animais e da natureza. Em 2015, anunciou sua pré-candidatura pelo partido Pessoas-Animais-Natureza (PAN) à presidência da República, mas desistiu por não conseguir a validação das 7.500 assinaturas necessárias para a formalização da candidatura. Apesar da vida profissional intensa e da atividade literária, ainda encontrou tempo para constituir uma família que inclui quatro filhos e três netos.
Com mais de 20 livros no mercado, entre as suas principais obras estão ainda Xerazade, a última noite, romance (Lisboa, Bertrand, 2015); Moçambique para a mãe se lembrar como foi, autobiografia, estudos coloniais (Lisboa, Bertrand, 2014); Meu único e grande amor: casei-me, comédia de costumes (Bertrand, Círculo de Leitores, 2007); A morte da avó cega, contos (Lisboa, Planeta, 1998); e O passado de Portugal no seu futuro. Conversas com o Duque de Bragança, entrevistas (Lisboa, Textual, 1995). É também autora de livros de ensaios e de literatura infanto-juvenil. Adelto Gonçalves - Brasil
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Jardins Secretos de Lisboa, de Manuela Gonzaga, com apresentação da professora Sílvia Chicó, 3ª edição. Lisboa: Âncora Editora, 509 págs., 21 euros, 2006. E-mail: geral@ancora-editora.pt
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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