Os segredos dos meninos mágicos é um título auspicioso de uma obra que celebra a
diversidade das culturas angolanas, talvez uma incursão muito exitosa por
algumas curiosíssimas tradições do nosso Sul, em Angola. Este livro tem uma
particularidade incomum: a autora assina também as ilustrações. Essa dupla
função permite um diálogo mais íntimo, praticamente um monólogo, cujo mecanismo
a Gizela certamente um dia nos explicará.
Os
desenhos, incluindo a belíssima capa, carregam símbolos, incluem elementos como
mapas e outras figuras escondidas à vista de todos. Agrupam círculos, animais e
figuras humanas, árvores humanizadas, pessoas com raízes…. Enfim, a família, a
topografia do terreno e apontamentos da natureza visíveis de noite e audíveis
de dia, iluminados pela luz solar ou lunar. Animais de grande porte, aves e
vegetação rasteira, a insinuarem estepes ou desertos. Um livro pode ler-se
primeiro pelos desenhos, e foi por aí que comecei. Ver, antes de ler, sentir,
antes de tentar uma aproximação racional de leitura.
A
obra apresenta-nos um conjunto de textos de ficção, agrupados em três partes: As
Árvores Sussuram, E Nos Pés Brotaram Árvores e O Menino Chacal. Há uma
estrutura que confere ritmo e ajuda a familiarizarmo-nos com o livro: as frases
de introdução, os parágrafos em itálico, os excertos destacados e os títulos
dos contos), com as histórias dos três protagonistas, o Elias, o Salvador e o
Kasinda. Rapidamente o leitor se irá aperceber que os meninos são os grandes
heróis destas histórias, confirmando as palavras da autora no início do livro.
E são também, e muitas vezes, narradores autodiegéticos, assumem o controlo da
narrativa, dentro de contos sobre eles e as suas famílias, as suas comunidades.
Predominam
cenários que nem sempre são conhecidos das crianças citadinas. Rios, lagos,
aldeias, solos pedregosos, caminhos arborizados…
O
Reino do Mbalundo, o Rio Colelê, o rio Keve (que nasce no Huambo), são pistas
que desenham percursos no mapa de Angola e dão movimento às narrativas.
Por
outro lado, a autora refere elementos nativos, espaços construídos, semeados ou
bravios, como casas de alvenaria de adobe e eucaliptos, a habitação circular,
construída com barro e esterco de vaca, plantações de girassóis, lavras de
milho, flores selvagens cor-de-laranja e a ombala (que é um termo, como outros,
explicado no glossário).
Ao
olharmos para estas paisagens naturais ou construídas pela mão do Homem,
entendemos que incidem nestas narrativas os olhares do antropólogo, do
etnólogo, do geógrafo e do arquiteto, antes de cederem a vez à criadora e
contadora de histórias e aos aspetos ficcionados. Sente-se uma sólida malha multidisciplinar
sobre a qual assentam as histórias, o que se confirma também nos textos
preliminares da autora.
As
histórias destes meninos também mencionam províncias e regiões angolanas mais a
Sul, como Cunene, Cuando-Cubango, o deserto do Namibe e até países e regiões
fronteiriças. O Botswana: montanhas, rios fortes/ as fronteiras do Botswana e
da Namíbia / a reserva natural do Etosha, na Namíbia e Windhoek, o canto do
vento…
Mas
também há atmosferas mais citadinas: o quarto é frequentemente um espaço de
grande movimento, sente-se o bulício da cidade, percebe-se o mato quando está
próximo, e andamos, como os nossos personagens, pela escola e pelo
jardim…Ambientes reais e irreais, porque, como nos diz a autora, os sonhos
também são verdade.
Dois
termos chamaram a nossa atenção, pelo número de ocorrências: as palavras Vento
– que surge 22 vezes e Deserto – 28 (os corvos do deserto, a víbora do deserto,
a língua do deserto, a planta do deserto (Welwítschia), as mulheres do deserto,
a serpente do deserto, e por aí fora…). Não se trata de uma casualidade: se
lermos com o corpo sentiremos certamente esse vento, galgaremos dunas e teremos
as areias do deserto a invadirem as nossas casas à medida que nos embrenhamos
na leitura.
Mergulhemos
agora um pouco mais em cada um dos compartimentos narrativos.
As
Árvores Sussurram está associada a O Conto do Elias
É
uma história cheia de simbolismos onde até as árvores se expressam como pessoas
e o Tempo é descrito como cuidador. O homem é a fera – lemos, e a “a vida
soletra-se por entre montes de pedras” – é uma metáfora expressiva e acrescenta
poesia a uma narrativa já de si musical. “Os pneus acariciavam o asfalto num
percurso familiar” ou “Katunga vem desacompanhado, mas não vem só” – são outras
passagens que ficam no ouvido.
Com
avanços e recuos no tempo, a narrativa coloca vários desafios ao leitor, que
começará por interrogar-se sobre a ação, os personagens, as reações, antes de
chegar ao desfecho. Prepare-se para o
mundo do fantástico, onde singularidades inesperadas, poéticas
impossibilidades, coloridas ilusões e a realidade, mais do que andarem de mãos
dadas, são indissociáveis. Há uma figura de que muito se fala, Katunga, um nome
simbólico que a seu tempo será desvendado. O significado, a missão, os poderes,
as atribuições. Reverenciar o reino vegetal e falar a língua das árvores são
predicados de seres excecionais.
O
leitor ouvirá falar do domínio de Ekwikwi e Katyavala, reis do território dos
leões, e de Mbalundu. Muitos animais emprestam o seu colorido e movimento a
este conto, que fala de despojos de guerra, dos ciclos da natureza, como a
partida das aves, de memórias e conversas: o pássaro de rodas, o
falcão-de-pés-vermelhos, leões, jiboias ou hipopótamos.
O
principal acontecimento insere-se no protocolo das tradições e ritos locais que
implicam sofrimento, separação e amadurecimento. Muitas peripécias vive este
rapazinho que aprende por instinto a superar obstáculos com os seus incipientes
recursos.
O
conto tem aspetos do surrealismo e do realismo mágico, ou não fossem estes Meninos
Mágicos e cheios de segredos.
A
sabedoria que subjaz a esta tradição deve ser entendida no contexto cultural,
de contrário poderia criar algum estranhamento e colocar filosofias de vida em
confronto. O propósito dos rituais reveste-se de certa nobreza e lógica que o
leitor ajuizará. Este conto lembra-me também, claramente, Birago Diop e o seu
inesquecível poema: Souffles.
A
segunda parte, E nos Pés Brotaram Árvores, introduz O Conto do Salvador e os
seguintes.
A
narrativa “não é uma história qualquer”, como adverte, logo de início, o
menino-narrador. Tudo se passa em família, entre o Pai Perpétuo e a Mãe
Prudência, o tio, a avó e os amigos, como extensão da família, para além de uma
menina, de nome e beleza enigmática.
Várias
terras do Sul profundo são referidas e também etnias, como os Cuanhamas. Por
outro lado, há um produto a que se alude repetidas vezes, o óleo de mupeque,
que tem inúmeras aplicações na região (em massagens, como hidratante e
unguento, por exemplo, para nutrir pés e mãos). Antílopes, hipopótamos e
zebras, pinguins do Tombwa, peixes, lagartos e insetos vêm juntar-se à
história, mesmo que como figurantes.
Há
uma frase e reter: “Tudo à nossa volta ia ficando cada vez mais mirrado. Os
terrenos infrutíferos agora estavam esturricados de tanto calor. As avestruzes
desapareceram. O deserto bateu-nos à porta”. (P.43)
Práticas
ancestrais são como que coreografadas. A educação das meninas, é diferente da
dos rapazes e o texto diz-nos, na p.46, que “As raparigas não sonham. Não as
deixam sonhar.” Seguem-se considerações sobre o determinismo, a
inteligência de arcar com escolhas de terceiros e fazer delas nossas, o assumir
um destino e moldá-lo à nossa vontade, assim como a importância dos nomes.
Nesta
fase do livro, cada narrativa prossegue na seguinte. Este conto traz à memória
documentários e reportagens sobre a cidade do Tombwa, a ser engolida pelo
deserto há várias décadas.
“A
avó saiu pela janela: pó que foi com o vento. Ficámos os três, a vê-la ir”,
na p.42, é outra passagem que se memoriza; e está definido o tom do livro, e
que se poderia traduzir por uma piscadela de olho ao real maravilhoso.
Welwítschia
Dalha é o conto que se segue, onde cabem apenas o narrador e a menina, que
reclama um espaço autónomo para se apresentar. O conto é deliciosamente
descritivo, muito pictórico, talvez marcado por um certo fetichismo (pés).
Fala-se em adornos e indumentária, nas mantas típicas. Insinua-se o primeiro
encantamento, o deslumbramento, a beleza, a dignidade e a coesão familiar. E também se exalta o binómio
coragem/cobardia, faces de uma mesma moeda. Impossível não pensar numa crónica
documental, e confesso que me lembrei também de Ana Paula Tavares, escritora e
historiadora e de Ruy Duarte de Carvalho, antropólogo, escritor e cineasta,
ambos angolanos.
Os
seguintes contos deste núcleo enfatizam a história familiar, decisões e
deslocações.
A
mãe de Salvador, (citadina), é instruída e versátil, conhecedora do mundo
vegetal. Algumas mulheres com estas
caraterísticas provocam admiração ou desconfiança, como a personagem Claire
Fraser dos romances e da série televisiva Outlander.
Nesta
parte da narrativa pensamos em rituais pagãos e religiosos, no ritmo da vida,
na intuição e conhecimento das coisas não ditas. Nas amizades de infância, no
apego à terra, na beleza da aridez. Alude-se a projetos familiares vitais que
se sobrepõem a todos os riscos.
Algumas
passagens mais líricas dialogam também com a obra poética de Mariem Mint
Derwich ou de Aichetou Ahmedou, poetas e romancista, respetivamente. Ambas
escritoras do Sahara.
“Quando
o pai ficava desértico, a minha mãe hidratava-o”, p.52.
As
cinzas do avô também são personagens. Fala-se agora de crenças locais e do
contraponto entre a Ciência e as lendas, entre a urbe e o deserto; a fé, a
espiritualidade, a maneira de viver, sentir, aceitar, agir e pensar. E também
sobre as relações de parentesco e a hierarquia na família, na perspetiva
regional, as obrigações, a pena por incumprimento dos costumes, no melhor
estilo dos contos tradicionais africanos.
É
hora de partir e a narrativa avança com os personagens. Note-se a aprendizagem
sobre o deserto e a maneira de intercalar lendas com a narrativa principal.
Refletimos
sobre o impacto de semear a dúvida, a discórdia, de confundir os mais
vulneráveis; de pôr à prova o amor e a lealdade de uma criança, ativar o ciúme
e insegurança, numa intrincada rede de laços familiares, diferente da europeia.
O Plano
de Perpétuo, qual será? No deserto há predadores dissimulados e, quanto a
planos, os melhores são os que não existem, pois não podem ser divulgados, nem
atraiçoados, nem denunciados. Aqui a narrativa cede lugar à aventura, à ação
pura e prossegue com A Esperança. A novidade é a figura de Mukuru (Deus) e a
menção do povo himba.
Trata-se
também de dialogar com antepassados e de absorver a força espiritual. Um aspeto
que retenho é a beleza que resulta da fusão de etnias. Algumas palavras constam
do glossário, outras são explicadas no texto como okuruwo, o fogo sagrado. Os
contos sublinham também a ligação perpétua entre antepassados e os que ainda
vivem e a tradição de dar de beber aos que já partiram, em dias de festa. E
sobretudo de respeitar a diferença e aquilo que é determinado pela natureza, a
razão biológica dos seres. Desvendam-se e confirmam-se vários mistérios.
…
O
Menino Chacal e O Conto do Kasinda fecham este conjunto de contos inspirados em
tradições locais. Tudo é descrito delicadamente ao pormenor, num novo cenário.
As gémeas, o menino Kasinda, os progenitores, o tio e a avó. Os voos noturnos e
os gritos dos pássaros, as entreajudas entre vizinhos, os sustos, o convívio
entre as crianças. Parece que os sentimentos têm cores e a ancestralidade está
agarrada à pele. Pelo nome percebe-se a ordem dos filhos, o dia em que nasceram
e a família a que pertencem.
Termina
o livro num ritmo que desperta em nós a promessa dos filmes de animação, com
bons diálogos, super-heróis improváveis, vilões e um universo onírico, onde se
resolvem, se desfazem e se apaziguam conflitos.
“O
som no quarto é castanho e convida ao repouso”, p.93.
…
Num
estilo muito sóbrio, quase austero, as coisas irreais são encaradas com
normalidade. Este livro é também sobre mistério, tradição e fantasia. Em
sintonia com as palavras da autora na abertura do livro, estendo o meu abraço a
“todas as crianças silenciadas por possuírem algum tipo de deficiência física
ou limitação”, estando ou não presentes neste espaço, porque é essencialmente
pensando nelas e por elas, creio, que este livro ganhou forma. Espero que a
vossa experiência de leitura seja pelo menos tão agradável e inspiradora como a
minha. Luísa Fresta – Portugal
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Os segredos dos meninos mágicos da autoria de Gizela de Brito. Editora Caneta de Estilo
©. Ano de 2024, Género literário: infantojuvenil, contos, 111 páginas
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Luísa Fresta,
portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com
o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal, desde 1993.
Obras
da autora: “49 Passos/ Entre os Limites e o Infinito” (poesia), Chiado Editora,
2014; “Contexturas” (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora),
Livros de Ontem, 2017; “Março entre meridianos” (poesia, 1.º prémio “Um Bouquet
de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; “Março entre meridianos” (reedição), Livros de
Ontem, 2019; “A Fabulosa Galinha de Angola” (infantojuvenil), Editorial
Novembro, 2020; “Sapataria e outros caminhos de pé posto” (contos), Editorial
Novembro, 2021; “Burro, sim senhor!” (infantojuvenil), Editorial Novembro,
2021, “Casa Materna” (poesia), Editorial Novembro, 2023 e “No país das
tropelias e desventuras”, Editorial Novembro, 2024.
Agradeço ao blog Baía da Lusofonia, João Seixas, pelo espaço e a gentileza da visibilidade à minha obra. À Luísa Fresta agradeço pelas palavras que definem, de forma tão íntima, os elementos que envolvem os meus contos.
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