Os
quatorze contos de A bala dos desarmados, de Francisco de Morais Mendes
(São Paulo: Editora Sinete, 2025) representam um dos pontos altos da Literatura
Brasileira contemporânea. São narrativas diretamente dialogando com o mundo
atual da ciência, da tecnologia, da política e com os universais temas humanos.
No
dizer de Hugo Almeida, nas orelhas, são textos magistrais e, de acordo com
Shelley, é erro vulgar distinguir poetas e prosadores. Sim, pois vejo no
apurado trabalho de linguagem de Francisco de Morais Mendes o refinamento de um
artesão poeta, que trata a palavra com lavor e louvor. Vou até mais adiante:
vejo esses quatorze contos como um grande soneto, em que as narrativas, por
mais variadas que sejam, exibem um harmonioso entrelaçamento, coesão semântica,
temática, estrutural entre os quartetos e sonetos da composição clássica do
gênero lírico.
A
ênfase na palavra já parte da epígrafe, extraída de Avalovara, de Osman Lins.
Aí se lê que “a palavra sagra os reis, exorciza os possessos, efetiva os
encantamentos, capaz de muitos usos, também é a bala dos desarmados e o bicho
que descobre as carcaças podres.” Vê-se aí o caráter crítico e encantador da
palavra, e é o que vemos ao longo das 14 narrativas, algumas das quais efetivam
um incisivo corte no período pandêmico em que houve um desgoverno no país.
Certos contos me sugerem o prolongamento de um verso de João Cabral de Melo
Neto que se refere ao movimento de um homem dentro de um pesadelo.
Em
minha leitura, trato cada conto como um verso, que conversa com outros versos.
Por exemplo, se no primeiro texto, “Incerta viagem”, o protagonista-escritor
cita Carlos Drummond de Andrade, o mesmo vai acontecer no último conto, “Estado
bruto” que, por si só, seria quase um soneto perfeito se fosse dividido em 14
partes, em vez de 12. Nessa história, um dos protagonistas cita Drummond,
sintomaticamente o soneto “Oficina Irritada”, do livro Claro Enigma, peça
metalinguística que trata da ambiguidade joco-séria do fazer poético.
Ademais,
em suas narrativas, o autor faz recorrentes enlaces intertextuais e até mesmo
intratextuais, pois há um conto em que a protagonista evoca um texto de outro
livro do Chico, sobre uma moça está parada no sinal e prende os dedos cheios de
anéis no cabelo. E há elos com outros autores, até mesmo nos nomes de alguns
personagens, como um tal de Cobra que me lembra o romance de Jaime Prado
Gouvêa, O altar das montanhas de Minas. (Por falar em Minas, há dois contos do
Chico em que ruas de Belo Horizonte são facilmente reconhecidas, embora haja
espaços até internacionais).
Autores
da estima do contista vão aparecendo nos textos, como Hemingway, Rubem Fonseca,
Cortázar, Hopper, Perec, Walter Benjamin, Nietzsche, Luiz Vilela (não
explícito, mas creio que há algo dele em “Chuva”), Clarice Lispector – aliás,
que magnífica releitura o texto “Fora de época”, de um dos mais misteriosos
contos de Clarice, “Mistério em São Cristóvão”. A rede intertextual se amplia
com músicas como a de Belchior, cuja letra emaranha-se com o enredo de
“Hóspedes”, e há algo de selvagem, nome de uma das composições de Camargo
Guarnieri, que se entreouve na incrível história contada em “Rastros”. Há
também filmes, como O escafandro e a borboleta, dialogando com “Estado bruto”,
Philomena, citado em “Feliz aniversário, Wainer”. E até desconfio que Luis Buñuel
esteja sendo aludido no conto final, em que há um casal com nomes de Luís e
Bruna. E a densidade dos filmes do cineasta mexicano de certa forma ocorre em
contos do Chico, como o estranho enredo de “A visita”, que me inspirou até este
soneto, composto com fragmentos do conto.
A luz da tarde cai pelos vitrais
E Valéria visita o apartamento.
Quase pronta a reforma, e o encantamento
Da quase sexagenária é demais.
Os prodígios da eletricidade,
Quanto progresso da marcenaria
Mas algo pode foder a alegria,
É o absurdo que a nossa vida invade.
O espaço se transforma em pesadelo,
Para quê tanta ciência e zelo
Pra celebrar o dia em que se nasce?
Desolada, Valéria olha em volta,
É preciso calma e não revolta
E uma chave de boca que gritasse.
Caio
Maciel - Brasil
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A bala dos desarmados, de Francisco de Morais Mendes. São Paulo: Editora Sinete, 189 páginas, R$ 60,00, 2025. www.editorasinete.com.br
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Caio
Junqueira Maciel é mestre em Literatura pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autor dos livros de ensaios A
escritura do tempo na poesia de Dantas Mota e O sangue que
rejuvenesce o Conde Drácula. Como poeta, entre outros títulos,
escreveu Pele de jabuticaba. Autor do romance Um estranho
no Minho, fruto do período em que viveu em Portugal.
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