O patuá pôde prolongar-se na comunidade macaense graças às representações teatrais, intimamente ligadas ao carnaval. A língua local permitiu que se abolissem as “distâncias” existentes entre a comunidade, servindo ao mesmo tempo de instrumento de riso e humor. É o que refere Ana Maria Saldanha, professora convidada do Instituto Politécnico de Macau no artigo “Sincretismo de um carnaval no Rio das Pérolas: o caso de Macau”
As
peças de teatro em patuá que eram apresentadas em Macau durante o carnaval
“são, não apenas uma expressão de dramaturgia tradicional e típica da
comunidade macaense, mas também um acto de criação artística indissolúvel dos
festejos carnavalescos”. Esta é uma das conclusões do artigo “Sincretismo de um
carnaval no Rio das Pérolas: o caso de Macau”, da autoria da professora Ana
Maria Saldanha, do Instituto Politécnico de Macau (IPM) e publicado na Revista
Extraprensa, da Universidade de São Paulo, no Brasil.
“Não
deixa, assim, de ser assinalável que a perduração do crioulo maquista – o patuá
– tenha podido prolongar-se entre a comunidade, graças a uma manifestação
cultural como o carnaval. Indissociavelmente ligado a este, o patuá serviu,
assim, como um instrumento ao serviço do humor e do riso, tornando-se num
partícipe da abolição de distâncias existentes entre membros de uma determinada
comunidade”, pode ler-se no artigo consultado pelo Jornal Tribuna de Macau.
A
autora refere que o carnaval macaense permitiu superar barreiras sociais,
etárias, de género, ou outras, criando, tal como assinalou o filósofo e
pensador russo Mikhail Bakhtin, “um novo mundo de relações humanas,
diametralmente opostas àquelas que regiam o normal quotidiano dos habitantes de
Macau”.
“Manifestação
cultural transgressora de valores e de uma determinada ordem social e
organizada e vivenciada por uma comunidade cuja identidade resulta do
sincretismo de combinações socioculturais asiáticas e europeias, o carnaval
macaense tornar-se-ia num símbolo distintivo da identidade e cultura da
comunidade macaense, ainda que, hoje, apenas perdure na memória colectiva
graças a registos fotográficos, jornalísticos ou literários”.
Ana
Maria Saldanha começa por explicar que o teatro no território fazia-se
sobretudo no Teatro D. Pedro V. Um espaço que, ao mesmo tempo, servia para
reuniões e discussões de clubes e associações locais. Foi ali, naquele palco
que a apresentação de peças de teatro na língua local seria dada a conhecer ao
grande público.
Na
década de 1930, a Academia de Amadores de Teatro e Música estimulava as
representações em patuá, mas com o início da Segunda Grande Guerra, a academia
acabou por se dissolver. “As representações teatrais em patuá sofreriam, assim,
um interregno, sendo necessário esperar o término da Segunda Guerra Mundial
para que, na década de 1950, ressurgisse um novo interesse pelo teatro em
patuá”, indica. Esse renascimento surgiu principalmente devido a personalidades
macaenses como Cassiano Fonseca, Antonieta Pacheco Jorge ou Henrique de Senna
Fernandes, “entre muitos outros”.
As
origens desse teatro amador remontam ao início do século XX e encontram-se
intimamente ligadas com o carnaval, desde logo porque era nessa época do ano
que eram apresentadas ao público, mas não só. “É de assinalar o facto de que as
peças de teatro na língua local se encontravam intimamente ligadas com o
carnaval, não apenas porque eram apresentadas neste momento do ano e se
incluíam nas festividades carnavalescas, mas também porque abordavam temas
próprios da época carnavalesca”. Concretamente, “faziam um retrato satírico da
sociedade, recorrendo a personagens simbólicas ‘a idosa amarga, o velho
sedutor, a jovem de costumes libertinos, a criança que parece mais velha ou
ainda o travesti’”.
Ana
Maria Saldanha sublinha, assim, que estamos perante a abordagem de temas que
“evocam uma transgressão das normas da sociedade” através do recurso a
personagens “marginais, invasoras ou socialmente oprimidas”. “Esta manifestação
cultural macaense, nascida no seio dessa comunidade e expressa no crioulo
local, assume, assim, tipologias e características próprias do carnaval,
enquanto manifestação cultural, acabando por dar forma a um carnaval
tipicamente macaense”, refere.
Além
disso, ao recorrer ao patuá – apenas falado e compreendido pelos macaenses e
uma pequena parte dos portugueses – o teatro “afirmava a existência de uma
identidade própria, distanciando-se das suas congéneres portuguesa e chinesa”.
Embora se possam encontrar semelhanças com a revista portuguesa, os temas a que
recorre, parodiando situações do quotidiano e recorrendo a temas
transgressores, “fazem com que estas peças dialoguem, sobretudo, com o
carnaval”.
O carnaval de “classes”
Encontrando-se
em Macau desde o século XIX, o carnaval celebrava-se nessa altura, tanto em
instituições recreativas, como em casas particulares – “sobretudo, dos estratos
sociais mais elevados”. Segundo é referido no artigo, haveria dois festejos
distintos: “um era organizado e frequentado pela elite macaense e ocorria em
círculo fechado e restrito, enquanto o outro era festejado pelas classes mais
desfavorecidas, nas ruas de Macau”. Sendo que “inevitavelmente”, ambos acabavam
por se cruzar.
Ainda
que a pertença a uma determinada classe acabasse por ditar o tipo de festejo a
que as pessoas iam até ao início do século XX, as comemorações foram,
“gradualmente” dialogando entre si dando origem a festejos abertos à
comunidade.
O
período do carnaval era a “única época do ano em que a população poderia
esquecer elementos constrangedores do dia a dia”, surgindo como “catarse
necessária” para macaenses e portugueses “transgredirem as normas sociais”.
O
mesmo artigo conta ainda a forma como as tunas percorriam a cidade em marcha
sendo acompanhadas por “um cortejo de fantasiados”. “A tuna saía da freguesia
de origem e desfilava pela cidade até ao clube onde ia tocar no baile” – era
assim todos os anos. Mas o carnaval incluía também o chamado “assalto” às
casas, principalmente as das famílias mais abastadas, pode ler-se. “Por vezes,
as famílias não sabiam, outras já os esperavam. As tunas entravam dentro das
casas, tocavam, e, em geral, uma ceia era oferecida aos músicos ‘assaltantes’”.
O revés
Depois
da Segunda Guerra Mundial, o carnaval macaense sofreu um revés, após a
publicação de um edital “restritivo” de festejos. Apesar disso, o carnaval
sobreviveu ainda que gradualmente se fosse extinguindo, tendo perdurado por
mais duas décadas.
“O
edital publicado em 1945 procurava criminalizar algumas práticas carnavalescas,
estipulando, entre outras imposições, a proibição de ‘atirar das casas, ruas e
outros lugares quaisquer cousas que possam molestar, sujar ou, por qualquer
forma, incomodar as pessoas ou deteriorar as suas propriedades, de mascarados
divagarem no bairro chinês ou de se apresentarem com trajes ofensivos das
crenças religiosas, da moral e dos bons costumes’”.
Macau,
refere o artigo, deixaria, assim, de comemorar um carnaval que “ganhara
características únicas” no Sudeste Asiático, assim como de apresentar teatro em
patuá, hoje língua em vias de extinção.
“O
carnaval tornar-se-ia num dos elementos identificativos desta comunidade, sendo
comemorado e vivenciado como um elemento cultural que, intrinsecamente, daquela
brotara e da qual dependia”, prossegue Ana Maria Saldanha, que não deixa de
fazer referência à ausência da comunidade destas festividades, ao contrário do
que acontecia com a portuguesa. Catarina Pereira – Macau in “Jornal
Tribuna de Macau”
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