I
Poeira
e escuridão
– este é o título do livro de contos de João Batista de Andrade (1939),
jornalista e professor, que a Associação Cultural LetraSelvagem, de Taubaté-SP, acaba de colocar no mercado. São onze
contos escritos em linguagem cinematográfica, com narrativas que espocam como flashes e se superpõem até completar um
quadro inteiro. E não poderia ser diferente, não fosse o seu autor um dos
cineastas mais importantes do Brasil, ainda em atividade.
Como diz, no texto de
apresentação deste livro, Luís Avelima, poeta, crítico, jornalista e tradutor
de Gente pobre (LetraSelvagem, 2011), de Fiodor Dostoievski
(1821-1881), entre outras obras, antigo editor do jornal Voz da Unidade, do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e ex-locutor
da Rádio Central de Moscou, estes contos constituem “onze retratos que se
costuram entre o telúrico e a dureza urbana, a revelar o dia que escorre em
poesia de amor e dor, de lembrança, cenas do agora, que logo se tornam cacos na
massa infame que nos cerca e que logo adiante se recosturam e ganham forma”. Para
ele, Andrade firma-se a cada livro e mostra neste última obra que “a literatura
é a loucura que pode salvar o mundo”.
Já o crítico Ademir Demarchi,
doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP), poeta e
editor da revista cultural Babel, no
prefácio que escreveu para este livro, prefere analisar, detidamente, os onze
contos, sem deixar que apontar a sua relação com o cinema. E mostra para o
leitor menos atento alguns detalhes como aquele que percebeu no conto “Ética
pelas metades”: um carrinho de bebê põe à vista do leitor (espectador) uma
famosa cena do clássico filme Encouraçado
Potemkin (1925), do russo Serguei Eisenstein (1898-1948), obra que é
considerada, ao lado de Cidadão Kane,
do norte-americano Orson Welles (1915-1985), uma das mais importantes na
história do cinema.
II
Um dos contos mais bem
urdidos desta coletânea – ainda que todos sejam relatos bem construídos, mesmo
aqueles de página e meia – é “Morangos silvestres”, que encerra o livro. A
narrativa é centrada em dois personagens, um mais velho, comunista sobrevivente
de um massacre feito por esbirros da ditadura contra o seu grupo, e um jovem
aspirante a revolucionário, cooptado pelo mais experiente, mas que, fora de
lugar, parece ter chegado tarde ao mundo.
O diálogo ocorre exatamente
num momento tenso em que ambos caminham pelas ruas com o objetivo de cometer um
atentado contra o presidente de uma republiqueta latino-americana,
provavelmente um antigo pelego que, criado e amadurecido no ambiente dos
sindicatos de trabalhadores, soubera como usar a linguagem populista de
esquerda para encantar a população e perpetuar-se no poder eleição após
eleição, traindo os ideais dos grupos esquerdistas que o ajudaram no início da
caminhada. Eis um trecho desse diálogo:
– Há um homem próximo de se eternizar no poder, ele saiu de
nós, de nossa história, era a promessa de nossa vida, de nossa juventude, a
esperança de que tudo voltasse a ser como antes, que a história não morresse,
que o ar fosse de novo respirável. E ele nos traiu.
– Ele é apenas um homem – murmurou Ramírez.
– Quando chegam lá, eles deixam de ser “apenas um homem”.
É também numa republiqueta de
pastelão em que a cena política funciona sempre como farsa que se passa o conto
“O gato Guevara”, que faz lembrar O
outono do patriarca (1975), de Gabriel García Márquez (1927-2014), Tirano Banderas (1926), de Ramón María del
Valle-Inclán (1886-1936), e outros romances sobre a decadência de ditadores
latino-americanos. Um general paspalhão, sem nunca ter chegado ao ápice da
carreira que seria a presidência da uma república bananeira, convive a
contragosto com a abertura política que invade até mesmo a sua casa, com a
presença de um cunhado “cabeludo, de brincos na orelha, irresponsável e
transviado”, e até mesmo um gato que carrega nome de guerrilheiro, tudo em
favor do bom convívio com a fogosa esposa Leonora.
No conto “No tempo do
cinema”, Andrade deixa mais uma vez explícito o seu fascínio pela sétima arte e
presta homenagem a Auguste Marie Louis Nicholas Lumière (1862-1954) e Louis
Lumière (1864-1948), os irmãos Lumières, inventores do cinematógrafo, considerados
os pais do cinema, filhos do industrial Antoine Lumière (1840-1911), dono da Usine Lumière, em Lyon, na França. O
conto é composto por narrativas que igualmente se superpõem, enfocando a
infância de meninas pobres, que se desdobram umas nas outras, como matrioscas
russas, até dar numa jovem operária francesa que participa do primeiro filme
dos Lumières.
Essa jovem, mais tarde, vem
para o Brasil com o marido que iria negociar “filmadoras, projetores e até
mesmo algumas pequenas latas circulares de rico conteúdo, filmes realizados
pelos próprios Lumières que tanto sucesso faziam por toda parte”. Sem, contudo,
esquecer o olhar do patrão Louis Lumière, por quem sonhava ser seduzida, paixão
tão imorredoura que a levaria a dar o seu nome ao primeiro filho, ao primeiro
neto e ao primeiro bisneto também.
III
João Batista de Andrade,
nascido em Ituiutaba, Minas Gerais, militante do PCB à época mais dura da
repressão promovida pela ditadura civil-militar (1964-1985), tornou-se nome
conhecido nacionalmente como cineasta, depois da realização de filmes como Doramundo, vencedor do Festival de
Gramado-RS, em 1978, inspirado em romance do jornalista Geraldo Ferraz
(1905-1979), publicado em 1956; O homem
que virou suco, Medalha de Ouro de Melhor Filme no Festival de Moscou, em
1981; O tronco, Prêmio de Melhor
Filme pela Comissão das Comemorações dos 500 Anos do Brasil no Festival de
Brasília, em 1999; e Vlado, 30 anos
depois, de 2005, que reconstitui a trajetória do jornalista Valdimir Herzog
(1937-1975), assassinado nos porões de uma unidade do Exército.
Com mais de 40 obras em sua
filmografia, Andrade nunca deixou de manter estreita ligação com a literatura,
tendo transportado para as telas, além de Doramundo
e O tronco, de Bernardo Élis
(1915-1997), outras obras literárias como Veias
e vinhos, de Miguel Jorge (1933) e Vila
dos confins, seu 17º longa-metragem, de 2011, baseado em romance de Mário
Palmério (1916-1996).
Em 1983, dirigiu A próxima vítima, um de seus melhores
filmes, que causou forte impressão ao desmistificar violentamente a ilusão da
abertura democrática, ainda à época em que o regime civil-militar já permitira
o retorno dos exilados e baixara lei de anistia para os perseguidos e seus
perseguidores. Em 1987, ganhou quase todos os prêmios do Festival de Brasília,
com o polêmico O país dos tenentes,
com temática também ligada ao fim do regime ditatorial.
Em 2010, foi o grande
homenageado do Festival Latino-Americano de Cinema, em São Paulo. Foi
secretário de Cultura do Estado de São Paulo de 2005 a 2007, quando criou a Lei
da Cultura (Proac), com editais e incentivos para a produção cultural. Em 2012,
foi nomeado presidente da Fundação Memorial da América Latina, cargo que ainda
ocupa.
A par de sua carreira como
cineasta, publicou mais sete livros de ficção, incluindo quatro romances: A terra do Deus dará (1980), romance infanto-juvenil;
Perdido no meio da rua, escrito em
1964 e publicado 20 anos depois (Editora Global, 2ª ed., 1989); Um olé em Deus, publicado em 1989 e republicado pela Editora Scipione
em 1997; O portal dos sonhos (Ufscar
Editora, 2001); Sozitos, a lenda da terra
ronca (Editora Lazuli, 2013), romance infanto-juvenil; Confinados: memórias de um tempo sem saída (Editora Prumo, 2013) e A terra será azul (Editora Lazuli, 2014).
Foi professor na Escola de
Comunicação e Artes (ECA) da USP. Em 1999, defendeu na ECA-USP a tese de
doutorado O povo fala – um cineasta na
área de jornalismo da TV brasileira, aprovada pela banca com distinção e
louvor e publicada em 2002 pela Editora Senac, de São Paulo. A jornalista Maria
do Rosário Caetano dedicou-lhe o estudo João
Batista de Andrade – alguma solidão e muitas histórias, publicado pela
Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, em 2010. Adelto Gonçalves - Brasil
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Poeira e escuridão, contos, de
João Batista de Andrade, com prefácio de Ademir Demarchi e apresentação de Luís
Avelima. Taubaté-SP: LetraSelvagem, 160,
págs., R$ 30,00, 2015. Site: www.letraselvagem.com.br
E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido
(Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio
Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2012), e Direito e Justiça em
Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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