I
António Manuel Ferreira |
A Universidade de Aveiro
lançou o terceiro e último volume de Teografias
– Literatura e Religião, projeto de investigação financiado pela Fundação
para a Ciência e a Tecnologia (FCT) do Ministério da Educação e Ciência de
Portugal. Sob a direção do professor António Manuel Ferreira, o projeto
procurou estudar alguns temas religiosos no discurso literário, principalmente nas
literaturas em língua portuguesa.
O primeiro volume da série, Sentimento Religioso e Cosmovisão Literária,
saiu em 2011, seguido por Gramáticas da
Criação: Adão, Eva e outros mitos (2012). O terceiro, Metamorfoses da Santidade (2013), traz 27 ensaios de estudiosos
portugueses e brasileiros que, geralmente, tomaram como objeto de estudo
autores de seus países, com a exceção do próprio coordenador do projeto,
António Manuel Ferreira, que analisou a novela Homo Viator, do moçambicano João Paulo Borges Coelho (1955). É de
se lembrar, porém, que Borges Coelho, filho de pai trasmontano e mãe moçambicana,
nasceu no Porto, mas cedo foi viver em Moçambique, adquirindo a nacionalidade
deste país.
Autor que estreou em 2003 com
o romance As Duas Sombras do Rio,
Borges Coelho já conquistou o seu espaço na literatura moçambicana em língua
portuguesa pós-colonialismo, ao lado de Mia Couto, Paulina Quiziane, Ungulani
Ba Ka Khosa, Nelson Saúte e Luís Carlos Patraquim, depois da publicação do
romance As visitas do dr. Valdez
(2004), dos volumes do díptico Índicos
Indícios: Setentrião (2005) e Meridião
(2005), chamados pelo autor de “estórias”, mas que podem ser vistos como contos
ou novelas, dos romances Crônica da Rua
513.2 (2006) e Campo de Tránsito
(2007), da novela burlesca Hinyambaan
(2008), do romance O Olho de Hertzog
(2010), vencedor do Prêmio Leya em 2009, e da narrativa futurista Cidade dos Espelhos (2011).
II
Em seu estudo “Homo Viator sentado: uma novela de João
Paulo Borges Coelho”, porém, o professor Ferreira se concentra na novela “O
pano encantado”, que faz parte de Setentrião.,
primeiro volume de Índicos Indícios,
que reúne “estórias” situadas no Norte de Moçambique, cujo personagem é Jamal,
um jovem alfaiate, natural da Ilha de Moçambique onde o Islaminismo dos
baneanes se misturou com o Cristianismo dos portugueses e a religião dos
macuas, que é um misto de monoteísmo e animismo.
“O pano encantado” é uma
narrativa que transcorre naquela ilha, lugar idílico por onde passaram poetas
como Luís de Camões (1524-1580), Bocage (1765-1805) e Tomás Antônio Gonzaga
(1744-1810), que lá viveu o seu exílio, entre os mais antigos, e Jorge de Sena
(1919-1978), Miguel Torga (1907-1959), Rui Knopfli (1932-1997) e Alberto de
Lacerda (1928-2007), que lá nasceu, entre os mais recentes.
Para Ferreira, Jamal
representa uma atualização bem engenhosa do tema do Homo Viator, que recupera a tradição do peregrino. No caso de
Jamal, porém, que passa todo o dia sentado à máquina de costura, as viagens que
faz são na imaginação ao redor de sua sala, já que, por razões econômicas, nunca
poderá ir a Meca. Empregado do senhor Rashid, outro muçulmano, dono da
Alfaiataria 2000, Jamal, ao contrário do patrão, não se deixou influenciar pelo
hibridismo religioso da Ilha, mantendo-se fiel a Maomé, como integrante de uma
confraria que se considera impoluta e inabalável na defesa da fé islâmica.
III
A narrativa, em resumo,
mostra a peregrinação que Jamal faz em espírito a Meca ao bordar um pano,
tarefa a que se dedica não só em seu local de trabalho como em sua casa, no
bairro pobre de Macaripe. Enquanto borda, Jamal faz a sua oração particular,
preso às atividades do espírito, maneira de se libertar das obrigações da sobrevivência.
O incidente nuclear da novela, como diz Ferreira, é a atitude do patrão de
Jamal, Rashid, que, apegado aos negócios, não hesita em vender o bordado de
Jamal a uma turista italiana que ficara encantada com o trabalho.
Para Jamal, aquele é um ato
sacrílego, pois não fazia aquilo com intenção de ganhar dinheiro. É essa
discrepância entre os comportamentos das duas personagens que Ferreira destaca,
ao lembrar que, ao contrário do que é costume, aqui é ao mais jovem que cabe a
função de preservar a pureza das tradições, observando ainda que a sabedoria nem
sempre está naqueles que exibem cabelos grisalhos ou brancos, como se pode ver
em exemplos de santos do catolicismo ou em figuras igualmente sagradas de
outras culturas. Para Ferreira, enfim, a obra de Borges Coelho “é sintoma
evidente da madurez estética da literatura moçambicana contemporânea”.
IV
Outro ensaio que se destaca é
“Literatura e Religião”, em que professor Francisco Maciel Silveira, da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de
São Paulo (USP), procura delimitar as fronteiras entre essas duas áreas do
pensamento. De início, o autor analisa a Literatura servindo-se da Religião
como tema ou recurso retórico, para depois examinar a Religião servindo-se de
recursos literários retórico-persuasivos para veicular seus ensinamentos.
Por fim, procura demarcar as
fronteiras em que Literatura
e Religião confundem-se e se distanciam de suas características intrínsecas. Como
exemplo, Maciel Silveira lembra que não é por acaso que o padre Manuel
Bernardes (1644-1710), num de seus sermões, considera Cristo a corporificação
da metonímia, dizendo “que a humanidade de Cristo Senhor nosso é livro” que “se
abriu na estante da Cruz para poder ser lido publicamente”. E acrescenta: “Cristo
é livro aberto na cruz porque sua vida compendia e encarna a doutrina”.
Maciel Silveira observa que,
se a Religião encontra sua razão de ser e cumprir-se numa figura literária – a
metonímia –, a Literatura, tendo a possibilidade de ser metonímia, não deseja,
contudo, sê-lo. “Na Literatura, o Verbo pode ser carne – isto é, objetivar-se,
realizar-se e corporificar-se no mundo fenomênico –, mas, ao contrário, da
Religião, não tem a finalidade precípua de ser discurso transliterado em
carne”, diz. E acrescenta: “Aquela advertência que geralmente lemos ao fim de
um filme – toda e qualquer semelhança com pessoas vivas ou mortas ou fatos
realmente acontecidos terá sido mera coincidência – aplica-se perfeitamente à
Literatura, pois encerra sua essência ficcional e finalidade”. Adelto Gonçalves - Brasil
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Teografias.
Metamorfoses da Santidade. Departamento de Línguas e Cultura da
Universidade de Aveiro, Portugal: 388 págs., 2013. E-mail: antonio@ua.pt
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de
Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona
brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil,
2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa,
Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga
(Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e
Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na
São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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