Os
vira-latas da madrugada se passa às margens do cais santista com
personagens que fazem rememorações da época do tenentismo da Coluna Prestes,
passam pela Época Vargas e chegam até o período pré-golpe de 1964. Por esse
dado já se poderia esperar que o Porto de Santos e sua intensa vida sindical
fossem os personagens principais.
Há um forte fundo político
neste romance, no entanto o autor coloca o Porto e a vida sindical no entorno e
põe à frente da cena personagens que vivem entre o bairro Paquetá e zona de
prostituição nas proximidades do Centro. Trata-se de uma região decadente, até
hoje, tal como é a vida das pessoas retratadas, que compreendem
ex-sindicalistas, moídos no cacete repressivo, punguistas, jornaleiros,
vendedores de jogo de bicho, catadores de restos que caem no transporte antes
de chegar aos navios, mendigos, engraxates, prostitutas e jovens aprendizes de
todo tipo de sobrevivência.
A narração, assim, vai para as
rebarbas do Porto e mostra a vida e o que pensam esses personagens. Marambaia
destaca-se percorrendo todo o livro. Agora um velho decadente vendedor de
apostas do jogo do bicho, que atuara na Coluna Prestes, militante comunista em
viagem à União Soviética, sindicalista e ativo grevista, com numerosas prisões
e cacetes levados da repressão. Seu percurso dá o tom do romance, indo da juventude
encantada com a revolução até acabar-se com a loucura foquista de tacar fogo
num bonde e invadir o Paço Municipal, anunciando a Revolução.
À sua volta convive uma penca
de marginais, ladrõezinhos que dão título ao livro, os vira-latas da madrugada;
gente como o negro artesão Angola, cuja história se desdobra de sua vinda do
Nordeste para o Sul, correndo a vida com Peremateu, um ilusionista argentino,
com quem aprendeu a fazer esculturas, até que acaba só, em Santos, velho e já
ensinando o ofício a um moleque, o Pingola. Angola é um inveterado jogador no
bicho e no dia em que, amargurado, joga uma bolada que ganhou na venda de
estatuetas, ganha, mas não leva, porque morre atropelado. Seu maior prêmio é
dado por Marambaia, como vingança contra a pobreza de todos, que paga o prêmio
e compra um túmulo no cemitério do Paquetá, onde era enterrada a gente fina de
Santos.
Somam-se a esses tipos também
o Grego, um jornaleiro pacato, mas com fama de bom de briga, que acaba
esfaqueado por um sujeito de nome Batatinha; a prostituta Sula e seu
aprendizado para entrar na prostituição, desejada por Marambaia e Pingola, que
afinal acaba com ela diante da loucura e morte de Marambaia; destaca-se também
o presidiário Nego Oswaldo, admirado por sua fuga do presídio da ilha Anchieta,
que narra espaçadamente para uma plateia no Estrela
da Manhã, o bar que todos frequentam e onde trabalha no jogo Marambaia. –
lá Nego Oswaldo ocupa o centro das atenções, para onde todos correm para
escutá-lo contar sobre como era a vida e as revoltas dos presos na ilha
Anchieta.
Em meio a isso, aparecem
histórias como a de outro sindicalista, Quirino, que somente descobre que ama
Irene, uma prostituta, quando já é tarde demais: enfraquecido pela tuberculose,
não resiste a mais uma surra da polícia e morre. Irene faz seu último strip tease sob os efeitos do veneno que
tomou, desiludida com a morte do amante.
Greves, revoltas, rebeldias
individuais aparecem em lampejos em meio aos relatos da vida dura dessas
pessoas que habitam na zona de prostituição. Essa zona aparece na vida das
prostitutas, nas descrições dos brilhantes luminosos de neon das boates com nomes em inglês, nas movimentações que precedem
os shows para receber os marinheiros estrangeiros de todas as bandeiras e a
gente da cidade. Porém os personagens, que vivem no entorno dela e são os
assuntos do livro, não entram nesses lugares.
Restam a eles os pequenos
roubos, como o que aconteceu a um bazar, condenados à marginalização sem saída
num país que não aceita sequer o discurso populista, decaído com Jango e calado
com a ditadura nascente. Essa vida é a sua forma de resistência a essa
sociedade, daí o epitáfio de Angola, que sintetiza o tom do romance: “Em toda a
sua vida nunca defendeu nenhum partido, nenhuma religião, nenhum regime que não
fosse o regime da liberdade”. Esse epitáfio se combina com o discurso do louco
Teodorico, que sobe num caixote e, sob vaias e tiros de laranja e lixo,
discursa o descrédito no humanismo sob o capitalismo e o comunismo. Era o penúltimo
delírio concebido por Marambaia.
É uma liberdade anárquica, às
vezes animalizada no uso de navalhas e peixeiras para se defender ou se impor
nesse meio que coisifica a todos, muito bem exemplificado nos fósforos que um
cafetão dos pobres, analfabeto, usa para contar as saídas das putas, fósforos
que são os mesmos usados no jogo de porrinha e também nas bombas incendiárias
com que Marambaia tenta, sem sucesso, como sua última medida, incendiar esse
mundo... Ademir Demarchi – Brasil
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Ademir Demarchi é poeta e crítico, editor da revista Babel
Poética, doutor em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo (USP). Apresentação
para Os Vira-Latas da Madrugada, publicada nas orelhas do livro.
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Os Vira-Latas da Madrugada, de
Adelto Gonçalves, com prefácio de Marcos Faerman e posfácio de Maria Angélica
Guimarães Lopes, ilustrações e capa de Enio Squeff. Taubaté-SP: Associação
Cultural LetraSelvagem, 216 págs., 2015, R$ 35,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br
Site: www.letraselvagem.com.br
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