I
O primeiro sentimento que
invade quem lê O Tribunal , romance de
Álvaro Alves de Faria (1942), é o da opressão. Escrito em 1971 e publicado no
mesmo ano pela Livraria Martins Fontes Editora, de São Paulo, quando o autor
tinha 29 anos de idade, o romance (novela seria definição mais apropriada)
retém da primeira à última linha todo o clima opressivo que se vivia àquela
época em que o Brasil havia caído nas malhas da ditadura civil-militar
(1964-1985), mas, ao mesmo tempo, é profético na medida em que prenunciava os
dias de angústia que viriam pela frente. E que, volta e meia, ainda são
agitados por aqueles que odeiam o livre-pensamento e a liberdade de expressão,
que podem estar dos dois lados da barricada: são os totalitários de direita e
os totalitários de esquerda.
Outra relação que o leitor
faz é com o romance O Processo, do
tcheco Franz Kafka (1883-1924), que conta a história de K., funcionário exemplar
de um banco, que, de repente, vê-se acusado de um malfeito que desconhece e
acaba preso, sem maiores possibilidades de defesa. Maltratado por inquisidores
e juízes estúpidos, K., por fim, desiste de lutar contra o absurdo, tornando-se
apático e indiferente. Até que combina com dois algozes para que o matem e o
livrem daquele pesadelo.
O
Tribunal, de
Álvaro Alves de Faria, segue o mesmo caminho de luta contra o absurdo de um
regime opressivo, mas é, ao mesmo tempo, uma “demonstração da surpreendente
capacidade humana de superação diante das mais angustiantes situações”, como
diz o escritor e editor Nicodemos Sena na apresentação que fez para esta
terceira edição – a segunda saiu em 1976 pela Editora Símbolo, de São Paulo, com
prefácio do crítico Geraldo Galvão Ferraz (1941-2013).
Ferraz, cujo talento vinha do
berço, filho dos escritores e jornalistas Patrícia Galvão (1910-1962), a Pagu,
e Geraldo Ferraz (1905-1979), foi quem logo percebeu, ainda à época mais dura
do regime totalitário, pouco tempo depois do assassinato do jornalista Vladimir
Herzog (1937-1975) nas masmorras da ditadura, o viés premonitório de O Tribunal, dizendo naquele prefácio que
Faria fazia uma ficção voltada para o futuro. E acrescentava: “De 1971 para cá
nada mudou para melhor nos setores abordados pela sensibilidade de Álvaro Alves
de Faria. A morte, a guerra, a falta de liberdade, a marginalização do ser
humano parecem permanentes ameaças e surgem nos flashes do texto que iluminam fragmentos de uma superposição de
círculos de danação”.
II
Em outras palavras: como um Fiódor
Dostoievski (1821-1881) brasileiro, Álvaro Alves de Faria fez um relato surreal,
absurdo, de confusão entre o real e a ficção, de danação absoluta e submissão
ao imaginário, construindo um mundo de sinais trocados, em que o mal está
sempre acima do bem, uma descida passo a passo ao inferno. Como o K. kafkiano, esse
personagem sem nome avança tateando por um labirinto, em meio à barbárie e miséria
humanas: “Por que o senhor atropelou o nosso tanque? O oficial me perguntou e
eu o mandei para a puta que o pariu, ele e todos que inventaram aquela guerra
filha de uma grande puta, eu não tenho nada com isto, eu não atropelei ninguém,
tem sentido eu atropelar um tanque?”
Eis aqui um fragmento deste
monólogo interior que nada tem de panfletário, mas que resume com talento o
clima de atrocidades e atropelos ao bom senso que se vivia sob um Estado
totalitário que, hoje, sabe-se que era mantido por generosas “doações” de
homens de dinheiro, que não hesitavam em contribuir para que a infernal
“máquina” de tortura continuasse a moer aqueles que ousassem desafinar o coro
dos contentes. E o pior é hoje saber que, do outro lado, estavam também alguns
que não sonhavam com a liberdade, mas com um regime igualmente opressivo, totalitário,
em que meia-dúzia de espertalhões se locupletam com recursos públicos, em nome
de ideais humanitários e igualitários, mancomunados com pelegos e aventureiros
de toda espécie.
III
Álvaro Alves de Faria (1942),
nascido em São Paulo ,
filho de pais portugueses (a mãe é de Famalicão e pai de Lobito, em Angola), é poeta,
ensaísta e jornalista profissional dedicado à área cultural, especialmente à
crítica literária em jornais, revistas, rádio e televisão. Pelo seu trabalho
recebeu, em 1976 e 1983, o Prêmio Jabuti de Literatura da Câmara Brasileira do
Livro.
Pertence à Geração 60 de
Poetas de São Paulo. É conhecido, sobretudo, como um fino poeta, tendo
publicado mais de 50 livros, incluindo poesia, novelas, romances, ensaios,
entrevistas com escritores e peças de teatro. Sua peça Salve-se quem puder que o jardim está pegando fogo, durante o
regime militar, foi proibida de encenação 15 dias antes da estreia e ficou
censurada por seis anos. Com essa peça, ele ganhou o Prêmio Anchieta para
Teatro, um dos mais importantes dos anos 1970.
É autor de livros como Noturno Maior (1963), Motivos Alheios (1983), Lindas Mulheres Mortas (1990), O Azul Irremediável (1992), Poemas Portugueses (2002), À Noite, os Cavalos (2003), Trajetória Poética (2003), e Babel (2007), entre outros. Muito
ligado afetivamente a Portugal, há quinze anos passou a dedicar atenção
especial àquele país, inconformado com os rumos da poesia brasileira e com o
jornalismo cultural praticado no Brasil que considera de caráter “duvidoso”.
Em Portugal, já publicou 13
livros – 12 de poesia e uma novela. O seu trabalho estendeu-se também à
Espanha, onde publicou seis livros, destacando-se uma antologia com mais de 350
páginas, com tradução do poeta peruano Alfredo Peres Alencart. Acaba de
publicar na Espanha o livro Motivos Ajenos/Residuos,
pela editora Linteo, de Orense, cuja apresentação deu-se no começo de outubro durante
o XVIII Encuentro de Poetas
Iberoamericanos, no Centro de Estudos Brasileiros da Universidade de
Salamanca.
Como poeta, em 1965, deu
início a um movimento de recitais públicos nas ruas e praças de São Paulo,
quando lançou o livro O Sermão do Viaduto
– um comício poético, em pleno Viaduto do Chá,
no centro da cidade. Com um microfone nas mãos, recitava seus versos como quem
atirava petardos contra a opressão. Por isso, em 1966, esbirros da ditadura
logo trataram de encontrar razões para que seus recitais fossem proibidos.
Em 1986, publicou o romance Autópsia, pela Editora Traço, de São
Paulo, com apresentação do jornalista José Louzeiro e prefácio do também
jornalista Renato Pompeu (1941-2014). Escrito em 1976, o manuscrito ficou
engavetado por dez anos, talvez por receio das editoras em publicá-lo, já que
trazia personagens que haviam sido encarcerados e emparedados pela ditadura
civil-militar. É um romance que igualmente reproduz o clima opressivo
implantado pela ditadura de direita, mas com foco nas redações dos grandes
jornais brasileiros. O autor publicou ainda Defunto
– uma história brasileira, novela que saiu em 1976 também pela Editora
Símbolo. A exemplo de O Tribunal,
estes dois livros serão republicados pela Letra Selvagem. Adelto Gonçalves – Brasil
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O Tribunal, de Álvaro
Alves de Faria. Taubaté-SP: Letra Selvagem, 3ª edição, 88 págs., 2015, R$
20,00. E-mail: letraselvagem@letraselvagem.com.br
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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora,
1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Academia
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), e Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São
Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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