I
Na linha de Horacio Quiroga (1878-1937), cujos
contos geralmente tratavam de acontecimentos fantásticos e até macabros, que,
por sua vez, seguiam o caminho aberto pelo poeta norte-americano Edgar Allan
Poe (1809-1849), o contista uruguaio Leonardo Garet (1949), cujos contos atraem
o leitor por exalarem um estranho horror psicológico, chega, finalmente, ao
público brasileiro com O livro dos suicidas (Taubaté-SP, Letra Selvagem,
2019, tradução de Erorci Santana), publicado pela primeira vez em 2005 pela
Ediciones Cruz del Sur, de Montevidéu. Antes, só a poesia de Garet havia sido
passada para o idioma português por intermédio do livro Saída de página,
edição bilingue, publicado em 2001 em Sant'Ana do Livramento-RS, edição de MZ
Thomas e Grupo Literário de Artigas.
A aproximação com Quiroga não é fortuita. Além de
ambos terem nascido na cidade de Salto, na margem direita do rio Uruguai, na
fronteira com a Argentina, Garet sempre teve pelo conterrâneo uma indisfarçável
admiração literária, que o fez cuidar da edição de vários de seus livros, além
de produzir textos que foram publicados em antologias e revistas literárias.
Autor profícuo, com cerca de 40 títulos nas áreas do
conto, da poesia e da narrativa curta, Garet dedicou especial atenção ao
contista saltenho, com a publicação de Obra
de Horacio Quiroga (1978), edição, Encuentro con Horacio Quiroga
(1994), ensaios, Horacio Quiroga por uruguayos (1995), edição, Cuentos
completos de Horacio Quiroga (2002), edição, prólogo e notas, e Horacio
Quiroga - Obras Completas (2010), edição, prólogo e notas, bem como preparou
livros de crítica literária e antologias, como Literatura de Salto
(1990), Poesia del Litoral (2007) e Colección de Escritores Salteños,
20 volumes publicados pela Intendência Municipal de Salto. A sua qualidade como
especialista na obra do contista é tanta que hoje dirige o Centro Cultural Casa
Horacio Quiroga, em Salto.
II
Como não poderia deixar de ser, a admiração de Garet
pela obra quiroguiana é tanta que seus contos são influenciados por temas que assinalaram
a vida do contista saltenho. Como se sabe, Quiroga teve a vida marcada pelo ato
do suicídio, pois ele deu cabo à própria vida, quando, aos 58 anos de idade,
recebeu o diagnóstico de que padecia de um câncer gástrico e tomou uma dose de
cianureto. Seguia assim os exemplos de seu pai e de seu padrasto, que também
tiraram a própria vida. Além disso, depois de sua morte, três de seus filhos haveriam
de se suicidar.
Esse é o tema do texto que encerra o livro e dá
título à obra de Garet. E conta as venturas e desventuras de um repórter de
televisão que, cansado de andar atrás de acidentes de trânsito e assassinatos
ou de questiúnculas entre políticos locais, decide, por conta própria,
instalar-se com sua câmera num local estratégico para filmar as pessoas que,
durante a madrugada, decidiam dar cabo à própria vida num lugar chamado Pedra
Alta, em Salto, à beira do rio Uruguai e marcado por formações rochosas. A
personagem que conta a sua própria história é igualmente alguém marcado pelo
suicídio: de seu padrasto e de sua mulher.
Obviamente, o primeiro suicídio filmado em Pedra
Alta fez o jornal televisivo da emissora em que o jornalista trabalhava
alcançar picos de audiência, o que o levou a investir na empreitada e filmar
novos suicídios. Eis o estilo de Garet:
Os velhos chegavam e se atiravam, como se viessem
sonâmbulos, sem titubeios. Os jovens, a maioria adolescentes nos casos que
presenciei, ficavam estáticos por um momento, a ponto de suspeitar-se que outro
motivo lhes havia levado a esse lugar e a essa hora tão estranha, geralmente
entre três e quatro da manhã”.
A cada dia mais famoso, o repórter começou a ganhar
desafetos e concorrentes, como um que trabalhava em outra emissora e passou a
liderar uma campanha contra aquela macabra iniciativa, mas valendo-se
especialmente de muitas calúnias. O desfecho seria insólito: o desafeto
acabaria por atentar contra a própria vida e teria o seu ato filmado pelo
jornalista. Obviamente, tamanho desvario teria finalmente uma resposta das
autoridades: a proibição de notícias sobre suicídio, sob a alegação de que
seria contagioso. Por aqui se vê
que os temas e o estilo de Garet são inconfundíveis. Como diz na apresentação o
romancista Ronaldo Cagiano, “o autor se exercita com tamanha habilidade numa
vertente que explora o maravilhoso, o inexplicável, o sobrenatural, o sensorial
e o estranho sem cair no pecado da inverossimilhança”. Mas, como diz no
prefácio o professor e escritor Jorge Albistur, um dos melhores críticos
literários do Uruguai, só pode acompanhar estes 25 contos de Garet “quem seja
capaz de ler o ilegível, de explorar o que não está nas palavras, o que subjaz
aos silêncios”. Obviamente, não é leitura para aquela geração que vê o mundo
através de uma tela.
III
Garet é contista, poeta, crítico literário, ensaísta
e agitador cultural. Foi professor de 1972 a 2008, principalmente nas escolas particulares
de ensino médio Colégio e Liceu Nuestra Señora del Carmen e Colégio e Liceu
Carlos Vaz Ferreira, em Salto. Além disso, foi professor do Instituto de
Estudos Superiores e do Instituto de Filosofia, Ciências e Letras, em
Montevidéu.
Filho de Julio Garet, poeta e crítico literário de
muito prestígio no Uruguai, que fez conferências também na Argentina, Brasil e
Peru, e de Carmen Crecionini, professora de Língua e Geografia Espanhola,
Leonardo, praticamente, cresceu em Salto, para onde a família mudou-se em 1951,
tendo morado por mais de 20 anos numa casa situada em Calafi, bairro suburbano que
haveria de marcar boa parte de sua obra ficcional.
Em 1968, chegou a frequentar a Faculdade de
Medicina, em Montevidéu, época em que foi um dos responsáveis pela revista Adelante,
editada pela Associação Estudantil Saltenhos Residentes em Montevidéu, na qual
publicou seus primeiros textos literários. No ano seguinte, trocou o curso de
Medicina pela Faculdade de Ciências Humanas. Em 1972, porém, abandonou os
estudos, mudando-se para Bella Unión, no departamento de Artigas, na fronteira
com o Brasil, onde começou a trabalhar na fábrica de açúcar Calnu.
Em 1972, publicou seu primeiro livro de poesia, Pentalogia.
No ano seguinte, mudou-se para Montevidéu, onde passou a trabalhar como
professor de Literatura Uruguaia no Instituto de Estudos Superiores e de
Literatura Espanhola no Instituto de Filosofia, Ciências e Letras, hoje
integrado à Universidade Católica.
Em 1974, retornou a Salto para trabalhar no
Instituto Politécnico Osimani y Llerena, onde se mantém até hoje. Em 1975,
participando de uma mesa de exame, conheceu a professora Maria Cristina Reyes,
com quem haveria de se casar em 1977. Paralelamente ao trabalho docente, o
casal dedicou-se à venda de livros, mantendo um quiosque chamado Macondo, nome
da aldeia fictícia em que se movimentam as personagens do romance Cem anos
de solidão (1967), do escritor colombiano Gabriel García Márquez
(1927-2014), Prêmio Nobel de Literatura de 1982.
Durante a ditadura civil-militar (1973 a 1985),
Garet publicou os livros de poesia Primer escenario, em 1975, na
Venezuela, e Máquina final, em 1978, no Uruguai. Em 1988, publicaria a
obra de ficção Pájaros extranjeros. Com o fim da ditadura, Garet
tornou-se o primeiro presidente da Associação de Oficiais de Educação
Secundária de Salto, que ajudara a formar.
Membro correspondente da Academia Nacional do
Uruguai desde 2008, tem obras traduzidas em diversos idiomas. Conquistou os
principais prêmios literários do Uruguai, entre os quais se destaca o Primeiro
Prêmio Nacional de Literatura, que ganhou em duas modalidades: a de ensaio, em
1978, e a de poesia, em 2002. Neste mesmo ano, recebeu o Prêmio da Fraternidade
pela Literatura. Em 2000, o crítico Ricardo Pallares incluiu em seu livro Narradores
y poetas contemporáneos (Montevidéu, Academia Nacional de Letras) dois
capítulos sobre a obra de Garet.
Entre as obras publicadas, destacam-se ainda Cervantes
(1976, ensaio), Viaje por la novela picaresca (1991, ensaio), Vicente
Aleixandre (1991, ensaio), Palabra
sobre palabra (1991,
poesia), Los hombres del fuego (1993, narrativa), Octubre (1994,
poesia), La casa del juglar (1996, narrativa), Los dias
de Rogelio (1998, narrativa), Anabákoros (1999, narrativa), Cantos
y desencantos (2000, poesia), Vela de armas (2003, poesia) e 80
noches y un sueño (2004, narrativa), entre outras. Adelto Gonçalves -
Brasil
O livro dos
suicidas, de Leonardo Garet, com prefácio de Jorge Albistur,
apresentação de Ronaldo Cagiano e tradução de Erorci Santana. Taubaté-SP:
Editora Letra Selvagem, 144 páginas, R$ 30,00, 2019. E-mail: letraselvagem@uol.com.br Site: www.letraselvagem.com.br
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Adelto Gonçalves,
mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor
em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP),
é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015), Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o governo
Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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