Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Salihina Moussa Konaté, um poeta “Filho do deserto”

Souffle d’humanité (Sopro de humanidade) é o primeiro poemário do autor de Agoïnitt (comuna de Éjar, Mauritânia), e um dos meus novos livros de cabeceira. Há anos que tenho vindo a dedicar atenção a autores deste país (à poeta, jornalista e cronista Mariem Mint Derwich e à romancista Aïchetou Ahmedou, por exemplo) e por isso conhecer a poesia de Salihina Konaté, “Filho do deserto”, insere-se numa lógica de descoberta da literatura do país, na sua multiplicidade étnica, cultural e linguística.



A obra aborda vários temas que parecem caros ao autor como os afetos e o deslumbramento perante o amor, a natureza e a ecologia, a responsabilidade social e mundial ou o respeito pelas diferentes culturas e religiões. Salihina indigna-se perante aquilo que lhe parece ser reprovável, como o silenciamento cultural ou o assassinato de caráter. Emociona-se perante a inefabilidade do amor, as pessoas que lhe são próximas, com quem explorou afinidades e cumplicidades, as suas raízes e a família, aqueles que são parte do seu núcleo vital. É um poeta grato à vida, que o exprime sem pudor, usa palavras afiadas ou ternas com propriedade, elegância e mestria de escultor, e demonstra uma notável candura na expressão dos sentimentos ─ e até nos relatos ou considerações filosóficas que usam a poesia como veículo.

Esta obra não se me afigura apenas uma antologia pessoal. Dir-se-ia sobretudo um desbloquear de nós, que estavam presos no imo do eu-lírico. Considero-a um instrumento de libertação simbólica, que permite extravasar pensamentos, espontaneidades, reflexões ou declarações de intenções e de sentimentos. É também um livro de recordações íntimas e homenagens afetuosas a pessoas que, neste mundo ou no outro, permanecem vivas. O poeta-narrador exprime-se com subtil sinceridade sobre o que viveu, desejou, sofreu, sonhou ou testemunhou, sobre o que perdeu e o que a vida lhe vem oferecendo. A estética, a transparência e clareza das suas palavras envolvem o leitor desde os primeiros versos. Confirma-se a imagem de autenticidade e convicção, que confere aos poemas um tom confessional, como se estivéssemos a ler um diário íntimo, a seguir o fluxo do pensamento do poeta.

Salihina é um autor vibrante de pulsões, admirador confesso de Rimbaud, de Tchicaya U Tam’si, de Pessoa e Nuno Júdice, entre outros poetas que fazem parte da sua atmosfera íntima, como Emily Dickinson. O autor de Souffle d’humanité é também um leitor compulsivo ─ e embora estas notas não se destinem a apresentá-lo (a biografia resumida está aqui em rodapé) ─ apraz-me constatar que, neste país, com o qual temos pouco contacto, leitores/autores como Salihina leem também convictamente grandes poetas da língua portuguesa.

Confesso que o interesse é recíproco, pelo que me diz respeito, e desejo que esta e outras obras do autor venham a ser traduzidas para a nossa língua. Porque nos trazem práticas e mundos que parecem distantes apenas na superfície, pois na essência não poderiam estar mais próximos de nós. A obra identifica muitas das nossas mazelas sociais a fim de perspetivá-las, como salienta o diretor desta coleção.

A poesia de Salihina tem uma dimensão terapêutica, motivadora, libertária e apaziguadora. Tanto pode exprimir indignação e rebeldia (Ils ne me pardonnent pas/ Eles não me perdoam) como nostalgia, saudade (palavra que o autor usa pontualmente com discernimento), amor, tristeza ou gratidão. Destaco poemas como Mes Frères Humains/ Os Meus Irmãos Humanos (o poema de abertura) que exprimem a esperança numa religião/cultura de paz universal e, com notável inteligência e sensibilidade, exaltam tudo o que une os humanos, desprezando soberanamente aquilo que nos pode afastar uns dos outros, discursos de rejeição, exclusão ou desconhecimento mútuo.

“(…) Sou um leal universalista / Fogo sobre os secessionistas/ Políticos ou religiosos/ Fogo sobre os que sangram incessantemente a terra de Deus/ De todas as religiões/ De corpo e alma, eu aderi à da paz (…)” (pág. 23)

Muitos outros textos captaram aqui a minha atenção de maneira singular e por diferentes motivos (inclusive diálogos marcados pela intertextualidade e alusão a outros poetas, como Louis Aragon): a exaltação das preocupações ecológicas, os exílios da alma, a Mãe (lembrada carinhosamente em múltiplos poemas e cartas) e as figuras tutelares do avô e da avó, a função da escola, a sua Agoïnitt natal,  a emigração, a memória da escravatura ou o racismo, a afirmação das identidades plurais, como ilustrado pour Fils du  désert:

“(…) Eu sou o destemido Filho do deserto./ Entre o céu e a terra/ Quero ser pedra/ Sobre a qual se bate a esperança dos herdeiros dos poetas. (…)”. (pág. 26)

Emana deste livro forte espiritualidade num contexto social e económico muito específico e particularmente exigente, a devoção e respeito pelo mundo rural (como em Première pluie), as suas rotinas, práticas e sacrifícios, e a crença num futuro mais conciliador em relação à natureza e à humanidade que ainda subsiste em nós, destacando esse fôlego que nos mantém ligados à vida ─ e uns aos outros. Por outro lado, o autor fala da terra, das estações, das aves, com a intimidade de quem nasceu e cresceu nesse ambiente. Essa cumplicidade converte-o num narrador privilegiado que traz para o leitor circunstâncias e práticas que conhece a fundo. Souffle d’humanité é também, ou sobretudo, um livro que questiona a vida e a sociedade, que glorifica a paz: um livro intenso sobre o amor, na sua aceção perpétua e universalista. Amor romântico, passional, fraterno, filial ou simplesmente amor entre humanos.

Deixo-vos com um excerto do poema Exilé (Exilado):

“(…) Sou sem pátria/ Habitante dos limbos/ Cidadão do céu/ O meu coração é a minha morada/ O único território onde sou inteiro/ Humano/ Sensível/ Sem odor/ Sem cor (…)”. (pág. 52) Luísa Fresta – Portugal

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Salihina Moussa Konaté é originário de uma família camponesa, mais conhecido como Bouguéry ― o seu nome de nascimento antes de o seu avô paterno lhe atribuir o nome Salihina, que significa “o virtuoso” em árabe clássico ― nasceu em 1998, em Agoïnitt, na comuna de Éjar (Mauritânia), uma aldeia situada na região de Guidimakha. Deixou a sua aldeia natal aos doze anos para prosseguir os estudos secundários em Nouakchott. Após terminar o ensino secundário em 2017, inscreveu-se em Biologia, na Faculdade de Ciências e Tecnologia em Nouakchott. Salihina Moussa Konaté é um apaixonado por ciências exatas tanto como pela literatura”. Luísa Fresta

Souffle d’humanité (Sopro de humanidade), a obra não está traduzida para português, Editora Orizona ©, coleção Errance Poètes du Monde, ano de 2022, poesia, número de páginas: 127, Mauritânia. Os poemas publicados são de tradução livre da autora da resenha.

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Luísa Fresta, portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal, desde 1993.

Obras da autora: “49 Passos/ Entre os Limites e o Infinito” (poesia), Chiado Editora, 2014; “Contexturas” (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora), Livros de Ontem, 2017; “Março entre meridianos” (poesia, 1.º prémio “Um Bouquet de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; “Março entre meridianos” (reedição), Livros de Ontem, 2019; “A Fabulosa Galinha de Angola” (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2020; “Sapataria e outros caminhos de pé posto” (contos), Editorial Novembro, 2021; “Burro, sim senhor!” (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021, “Casa Materna” (poesia), Editorial Novembro, 2023 e “No país das tropelias e desventuras”, Editorial Novembro, 2024.  


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