Souffle d’humanité (Sopro de humanidade) é o primeiro poemário do autor de
Agoïnitt (comuna de Éjar, Mauritânia), e um dos meus novos livros de cabeceira.
Há anos que tenho vindo a dedicar atenção a autores deste país (à poeta,
jornalista e cronista Mariem Mint Derwich e à romancista Aïchetou Ahmedou, por
exemplo) e por isso conhecer a poesia de Salihina Konaté, “Filho do deserto”,
insere-se numa lógica de descoberta da literatura do país, na sua
multiplicidade étnica, cultural e linguística.
A
obra aborda vários temas que parecem caros ao autor como os afetos e o
deslumbramento perante o amor, a natureza e a ecologia, a responsabilidade
social e mundial ou o respeito pelas diferentes culturas e religiões. Salihina
indigna-se perante aquilo que lhe parece ser reprovável, como o silenciamento
cultural ou o assassinato de caráter. Emociona-se perante a
inefabilidade do amor, as pessoas que lhe são próximas, com quem explorou
afinidades e cumplicidades, as suas raízes e a família, aqueles que são parte
do seu núcleo vital. É um poeta grato à vida, que o exprime sem pudor, usa
palavras afiadas ou ternas com propriedade, elegância e mestria de escultor, e
demonstra uma notável candura na expressão dos sentimentos ─ e até nos relatos
ou considerações filosóficas que usam a poesia como veículo.
Esta
obra não se me afigura apenas uma antologia pessoal. Dir-se-ia sobretudo um
desbloquear de nós, que estavam presos no imo do eu-lírico. Considero-a um
instrumento de libertação simbólica, que permite extravasar pensamentos,
espontaneidades, reflexões ou declarações de intenções e de sentimentos. É
também um livro de recordações íntimas e homenagens afetuosas a pessoas que,
neste mundo ou no outro, permanecem vivas. O poeta-narrador exprime-se com
subtil sinceridade sobre o que viveu, desejou, sofreu, sonhou ou testemunhou,
sobre o que perdeu e o que a vida lhe vem oferecendo. A estética, a
transparência e clareza das suas palavras envolvem o leitor desde os primeiros
versos. Confirma-se a imagem de autenticidade e convicção, que confere aos
poemas um tom confessional, como se estivéssemos a ler um diário íntimo, a
seguir o fluxo do pensamento do poeta.
Salihina
é um autor vibrante de pulsões, admirador confesso de Rimbaud, de Tchicaya U
Tam’si, de Pessoa e Nuno Júdice, entre outros poetas que fazem parte da sua
atmosfera íntima, como Emily Dickinson. O autor de Souffle d’humanité é
também um leitor compulsivo ─ e embora estas notas não se destinem a
apresentá-lo (a biografia resumida está aqui em rodapé) ─ apraz-me constatar
que, neste país, com o qual temos pouco contacto, leitores/autores como
Salihina leem também convictamente grandes poetas da língua portuguesa.
Confesso
que o interesse é recíproco, pelo que me diz respeito, e desejo que esta e
outras obras do autor venham a ser traduzidas para a nossa língua. Porque nos
trazem práticas e mundos que parecem distantes apenas na superfície, pois na
essência não poderiam estar mais próximos de nós. A obra identifica muitas das
nossas mazelas sociais a fim de perspetivá-las, como salienta o diretor desta
coleção.
A
poesia de Salihina tem uma dimensão terapêutica, motivadora, libertária e
apaziguadora. Tanto pode exprimir indignação e rebeldia (Ils ne me
pardonnent pas/ Eles não me perdoam) como nostalgia, saudade (palavra que o
autor usa pontualmente com discernimento), amor, tristeza ou gratidão. Destaco
poemas como Mes Frères Humains/ Os Meus Irmãos Humanos (o poema de
abertura) que exprimem a esperança numa religião/cultura de paz universal e,
com notável inteligência e sensibilidade, exaltam tudo o que une os humanos,
desprezando soberanamente aquilo que nos pode afastar uns dos outros, discursos
de rejeição, exclusão ou desconhecimento mútuo.
“(…) Sou um leal universalista / Fogo sobre os
secessionistas/ Políticos ou religiosos/ Fogo sobre os que sangram
incessantemente a terra de Deus/ De todas as religiões/ De corpo e alma, eu
aderi à da paz (…)” (pág. 23)
Muitos
outros textos captaram aqui a minha atenção de maneira singular e por
diferentes motivos (inclusive diálogos marcados pela intertextualidade e alusão
a outros poetas, como Louis Aragon): a exaltação das preocupações ecológicas,
os exílios da alma, a Mãe (lembrada carinhosamente em múltiplos poemas e
cartas) e as figuras tutelares do avô e da avó, a função da escola, a sua
Agoïnitt natal, a emigração, a memória
da escravatura ou o racismo, a afirmação das identidades plurais, como
ilustrado pour Fils du désert:
“(…) Eu sou o destemido Filho do deserto./ Entre o céu e
a terra/ Quero ser pedra/ Sobre a qual se bate a esperança dos herdeiros dos
poetas. (…)”. (pág. 26)
Emana
deste livro forte espiritualidade num contexto social e económico muito
específico e particularmente exigente, a devoção e respeito pelo mundo rural
(como em Première pluie), as suas rotinas, práticas e sacrifícios, e a
crença num futuro mais conciliador em relação à natureza e à humanidade que
ainda subsiste em nós, destacando esse fôlego que nos mantém ligados à vida ─ e
uns aos outros. Por outro lado, o autor fala da terra, das estações, das aves,
com a intimidade de quem nasceu e cresceu nesse ambiente. Essa cumplicidade
converte-o num narrador privilegiado que traz para o leitor circunstâncias e
práticas que conhece a fundo. Souffle d’humanité é também, ou sobretudo,
um livro que questiona a vida e a sociedade, que glorifica a paz: um livro
intenso sobre o amor, na sua aceção perpétua e universalista. Amor romântico,
passional, fraterno, filial ou simplesmente amor entre humanos.
Deixo-vos
com um excerto do poema Exilé (Exilado):
“(…) Sou sem pátria/ Habitante dos limbos/ Cidadão do
céu/ O meu coração é a minha morada/ O único território onde sou inteiro/
Humano/ Sensível/ Sem odor/ Sem cor (…)”. (pág. 52) Luísa Fresta – Portugal
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“Salihina
Moussa Konaté é originário de uma família camponesa, mais conhecido como
Bouguéry ― o seu nome de nascimento antes de o seu avô paterno lhe atribuir o
nome Salihina, que significa “o virtuoso” em árabe clássico ― nasceu em 1998,
em Agoïnitt, na comuna de Éjar (Mauritânia), uma aldeia situada na região de Guidimakha.
Deixou a sua aldeia natal aos doze anos para prosseguir os estudos secundários
em Nouakchott. Após terminar o ensino secundário em 2017, inscreveu-se em
Biologia, na Faculdade de Ciências e Tecnologia em Nouakchott. Salihina Moussa
Konaté é um apaixonado por ciências exatas tanto como pela literatura”. Luísa
Fresta
Souffle d’humanité (Sopro de humanidade), a obra não está traduzida para
português, Editora Orizona ©, coleção Errance Poètes du Monde, ano de 2022,
poesia, número de páginas: 127, Mauritânia. Os poemas publicados são de
tradução livre da autora da resenha.
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Luísa Fresta,
portuguesa e angolana, viveu a maior parte da sua juventude em Angola, país com
o qual mantém laços familiares e culturais; reside em Portugal, desde 1993.
Obras
da autora: “49 Passos/ Entre os Limites e o Infinito” (poesia), Chiado Editora,
2014; “Contexturas” (contos, baseados em quadros de Armanda Alves, coautora),
Livros de Ontem, 2017; “Março entre meridianos” (poesia, 1.º prémio “Um Bouquet
de Rosas para Ti”), MAAN, 2018; “Março entre meridianos” (reedição), Livros de
Ontem, 2019; “A Fabulosa Galinha de Angola” (infantojuvenil), Editorial
Novembro, 2020; “Sapataria e outros caminhos de pé posto” (contos), Editorial
Novembro, 2021; “Burro, sim senhor!” (infantojuvenil), Editorial Novembro, 2021,
“Casa Materna” (poesia), Editorial Novembro, 2023 e “No país das tropelias e
desventuras”, Editorial Novembro, 2024.
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