O facto de Macau já ter tido a experiência da SARS e de
dispor de um quadro legal que regula a acção aquando de um cenário marcado por
uma doença infecto-contagiosa levou a que tivessem sido implementadas medidas
preventivas de forma mais rápida quando comparado com outros pontos no mundo,
como é o caso de Portugal. A conclusão é de Vera Lúcia Raposo, docente da
Faculdade de Direito da Universidade de Macau, que num artigo intitulado
“Macau, a luta contra a Covid-19 no olho do furacão” alerta ainda para o perigo
de alguns governos restringirem liberdades mesmo depois de a pandemia estar
controlada
Foi
recentemente publicado nos Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário um
artigo da autoria de Vera Lúcia Raposo intitulado “Macau, a luta contra a
COVID-19 no olho do furacão”, que foca vários aspectos importantes do combate à
pandemia no território. Uma das questões levantadas tem a ver com o facto de já
existir uma Lei de prevenção, controlo e tratamento de doenças transmissíveis,
desde 2004.
“Macau
foi tão célere a adoptar medidas porque já tinha um quadro legal que o permitia
fazê-lo. Por exemplo, por aquilo que vi aqui de longe, as grandes questões que
havia em Portugal passavam por saber se era possível pedir às pessoas para
ficarem em casa, se havia quadro legal para isso”, começou por referir a
professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de Macau em
declarações ao Jornal Tribuna de Macau.
“Até
porque a Constituição em Portugal também é diferente da Lei Básica de Macau, com
particularidade no que diz respeito aos direitos, mas não havia um quadro legal
que permitisse impor essas medidas eventualmente restritivas de direitos em
determinados quadros que podem ser uma pandemia ou outro tipo de desastres”,
acrescentou.
Isso
levou a questões que foram debatidas por constitucionalistas em Portugal.
“Houve quem entendesse que não [podiam obrigar ao confinamento]. Nomeadamente,
o que estava em causa era a liberdade de circulação. Se vamos pedir às pessoas
para ficar em casa, não vão poder decidir ir à praia ou sair à rua só porque
sim. Isso é uma restrição à liberdade de circulação e na Constituição
portuguesa não está estritamente previsto que esta liberdade possa ser limitada
no caso de uma pandemia”.
Porém,
há também quem considere que “a Constituição não é para ser lida como se fosse
uma lista telefónica”. “Na Constituição temos de olhar para as entrelinhas,
para o que não está dito, portanto, estando também o direito à saúde e à vida
considerados, esses direitos permitem, dentro de alguns limites, tomar algumas
medidas restritivas da liberdade”.
Se
em Portugal houvesse uma lei específica como em Macau, “toda esta discussão era
desnecessária, a questão estava em saber quais eram as medidas adequadas em
cada momento”. “Em Macau já tínhamos meio caminho andado porque tínhamos uma
lei que permitia actuar, não havia tempo a perder, até porque,
independentemente do quadro legal, temos de perceber que Macau beneficiou da
experiência adquirida com outras crises sanitárias anteriores, como a SARS”,
frisou Vera Raposo.
“Solo fértil” para restrições às liberdades
No
mesmo artigo, a académica destaca algo que denomina de “princípio da
necessidade” e defende que “as epidemias e as pandemias são solo fértil para
decretar medidas restritivas de direitos”.
“Numa
pandemia, quando está em causa a saúde, aparece logo um argumento que é muito
fácil de usar e que é sedutor e aceite por todos para poder colocar limitações
aos direitos e liberdades e todos compreendemos que assim é, porque é um bem
comum e um bem maior: a saúde pública”, sublinhou em declarações a este jornal.
Por
este motivo, “toda a gente percebeu a adopção de algumas medidas mais
drásticas”. “Podem ser medidas justificadas quando os níveis de infecção e as
características da doença assim o justificam, agora, qual é a tentação?
Imagine-se que começam a adoptar certas medidas, como a atribuição de códigos
por cores que limitam o grau de liberdade de um indivíduo, há uma grande
tentação por parte de certos governos de manter essas medidas mesmo quando elas
já não são necessárias”, apontou Vera Lúcia Raposo.
Outro
aspecto a ter em conta relativamente à forma como Macau lidou com o COVID-19
passa pela mentalidade da população. “No geral, noto que na comunidade chinesa,
talvez por força do confucionismo, existe uma ideia do bem comum acima do bem
individual. Em Portugal, como a maior parte das sociedades ocidentais, a
sociedade é individualista e a ideia de liberdade individual é muito forte na
comunidade e no ordenamento jurídico”.
No
artigo, a académica frisa que “Macau nunca precisou de decretar quarentenas
obrigatórias para manter a população em casa e assim quebrar a cadeia de
contágio. A obrigatoriedade da medida só se colocou em relação às pessoas que
chegavam do exterior e mesmo essa com a duração limitada de 14 dias”.
Nas
conclusões deste trabalho, Vera Lúcia Raposo defende que “as
epidemias/pandemias parecem evidenciar um conflito entre o bem comum – no caso,
a saúde pública – e os direitos individuais, dando lugar a decisões que
resultam de uma tensão entre esses dois pólos”.
“Porém,
esse conflito pode, na verdade, nem existir. Pode suceder, e acredito que assim
suceda, que a satisfação do bem comum passe pelo respeito dos direitos
individuais e vice-versa”.
Ainda
assim, “há, certamente, casos em que a realização do bem comum é conseguida com
grande sacrifício dos direitos e liberdades individuais, e os eventos
reportados na China durante o surto de COVID-19 parecem indiciar uma situação
dessas”.
Seja
como for, “os casos mais bem-sucedidos serão aqueles em que ambos se realizam
ao mesmo tempo e em que a concretização de um deles passa pela concretização do
outro”.
“Este
delicado equilíbrio é bem visível na forma como Macau – o seu Governo e as suas
gentes – lidou com a COVID-19. Não foi preciso impor medidas porque a população
acatou voluntariamente o que foi pedido pelas autoridades com base na ideia de
que o bem comum é o bem de todos”, defende Vera Lúcia Raposo. Inês Almeida –
Macau in “Jornal Tribuna de Macau”
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