O bispo
de Pemba disse que o mundo ainda não tem ideia do que está a acontecer em Cabo
Delgado, norte de Moçambique, onde ataques armados estão a provocar uma crise
humanitária que afecta mais de 700 mil pessoas.
“Não,
o mundo não tem ainda ideia do que está a acontecer por causa da indiferença e
porque parece que nós já nos acostumámos a guerras. Há guerra no Iraque, há
guerra na Síria e também há agora uma guerra em Moçambique”, referiu Luíz
Fernando Lisboa, em entrevista à Lusa.
O
fim da tarde de segunda-feira é um momento calmo nas instalações da diocese na
capital provincial de Cabo Delgado, a contrastar com o resto do quotidiano
agitado do bispo, marcado por pedidos de ajuda.
“Não
temos ainda a solidariedade que deveria haver”, disse, apesar de considerar que
a situação melhorou nos últimos três meses – em especial, sublinhou, depois de
o Papa Francisco ter feito referência à situação de Cabo Delgado na missa de
domingo de Páscoa.
“Quando
a pessoa não está sentindo na própria pele [aquilo que se passa] é difícil
entender. Compreendo isso. Mas quanto mais tomamos contacto com a realidade, aí
vemos a verdadeira dimensão” da crise, referiu o bispo, uma das vozes que mais
se tem feito ouvir acerca da situação.
O
último apelo das Nações Unidas, dirigido exclusivamente para a região, resume o
drama humano. A ONU, em coordenação com o Governo moçambicano, pediu no início
de junho 35 milhões de dólares para um Plano de Resposta Rápida para Cabo
Delgado a aplicar até Dezembro.
A
fuga da população das suas aldeias aumentou rapidamente à medida que a
violência cresceu desde início do ano, refere a ONU, estimando que haja agora
250 mil pessoas que largaram tudo e procuraram refúgio seguro noutras povoações
– num conflito que já matou, pelo menos, 1000 pessoas.
Somando
as comunidades de acolhimento, também já de si empobrecidas, estima-se que haja
712 mil pessoas a necessitar de ajuda e o plano pretende apoiar 354 mil, cerca
de metade.
Alguns
dos ataques são desde há um ano reivindicados pelo grupo ‘jihadista’ Estado
Islâmico e a ameaça terrorista é reconhecida dentro e fora do país, tendo os
grupos de rebeldes ocupado importantes vilas de Cabo Delgado (situadas a mais
de 100 quilómetros da capital costeira, Pemba) durante dias seguidos, antes de
saírem sob fogo das Forças de Defesa e Segurança moçambicanas.
Para
as vítimas em fuga (que deixam para trás vilas quase abandonadas), a
insegurança alimentar é uma das mais graves ameaças, mas não é a única.
“Não
nos podemos contentar em dar comida. É muito pouco”, alertou Luíz Fernando
Lisboa durante a entrevista à Lusa, salientando que “há muitos traumas”.
A
alimentação “é importante, mantém as pessoas de pé, alimenta o corpo, mas há
pessoas que estão quebradas, traumatizadas com tudo o que viveram”, disse,
destacando que “o apoio psicossocial é essencial”.
“Estar
com essas pessoas, reunir, ouvir”, criando grupos onde haja elementos
preparados para descobrir os traumas “que vão necessitar de resposta”.
Há
residentes no norte de Moçambique cuja vida não voltará a ser a mesma. Alguém
que “perdeu a casa ou viu outra pessoa da família ser morta ou não sabe ainda
onde está algum familiar”.
Lares
desfeitos, com crianças separadas dos pais, uns à procura dos outros, é um
cenário comum, acrescentou, escusando-se a entrar em mais detalhes de outros
casos humanamente chocantes.
A
própria igreja, tal como todas as congregações e crenças, perdeu catequistas e
outros dinamizadores nas paróquias, o próprio bispo teve de dar ordem de saída
urgente a missões cujos membros foram dos últimos a partir, sob risco de vida,
para tentar apoiar populações sob ataque.
“Todos
em Cabo Delgado sofremos direta ou indiretamente”, resumiu, numa província
maioritariamente muçulmana (representam ligeiramente mais de metade dos 2,3
milhões de habitantes) e onde diz haver harmonia entre religiões.
Nos
relatos, há também o reverso da perda, há histórias de resiliência, contou,
como a de uma mulher que deu à luz enquanto fugia de uma aldeia atacada.
Parou
no meio do mato e depois do parto seguiu, conta Luíz Fernando Lisboa, que logo
a seguir juntou um exemplo de solidariedade: há semanas acolheu cerca de 30
crianças que se juntaram numa fuga, separados dos pais.
“Todos
foram recolhidos” por familiares mais afastados ou amigos, já com casas cheias,
mas sem receio de acolher mais bocas para alimentar.
O
ano de 2020 está a ser o pior desde o início dos ataques armados, em 2017,
disse. Hoje, tal como na altura, permanece o debate sobre as razões da
violência, mas o bispo de Pemba mantém uma “esperança”: de que “a guerra
termine” e que 2021 seja um ano de muito trabalho, mas em paz. Luís Fonseca –
Agência Lusa in “Hoje Macau”
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