Com
vários países do mundo a efetuarem uma gradual saída do designado lockdown
(bloqueio total) adotado para conter a pandemia da Covid-19, Giovanni
Allegretti, investigador do Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de
Coimbra (UC) e coordenador do PEOPLES' - Observatório da Participação, da
Inovação e dos Poderes Locais -, afirma que é importante «relembrar a classe
política que a participação de cidadãs e cidadãos na reconstrução da sociedade
no período pós-emergência é fundamental».
Numa
reflexão sobre o papel dos cidadãos após a pandemia, Giovanni Allegretti
sublinha que «é claro que a participação vai ter que ser repensada. As pessoas
têm medo de se reencontrar em grandes grupos, e provavelmente estão saturadas
de tecnologia nas suas vidas, mas querem, sobretudo, ser ouvidas sobre grandes
questões, como a reconstrução do estado social (sobretudo educação e saúde) e a
luta contra as novas desigualdades e exclusões».
O
investigador do CES defende que Portugal não pode ficar fora deste debate.
Vários países já estão a trabalhar nesse sentido. Por exemplo, «em França, um
painel de 150 cidadãos selecionados aleatoriamente para integrar a “Convenção
Cidadã para o Clima” apresentou o relatório “Contribuição para o plano de saída
da crise”, enquanto uma centena de autarcas, governadores, intelectuais e
líderes sociais enviavam ao Presidente Macron a petição “#NousLesPremiers: um
cenário democrático para o mundo do depois”, que propõe um plano em três
etapas, que prevê o envolvimento direto dos habitantes na reconstrução da
sociedade e da economia».
Também
em Espanha começou a debater-se a «forma de acompanhar a (polémica) proposta de
um novo “Pacto da Moncloa”, prevendo a criação de painéis de cidadãos sorteados
para que possam partilhar as suas visões sobre o planeamento da era
“pós-Covid”», refere.
Em
Itália, um dos países do mundo mais afetados pela Covid-19, «cidades como
Milão, Bari ou Nápoles têm vindo a abrir aos cidadãos os seus Planos de
Resiliência, a organizar hubs para otimizar as atividades espontâneas de
solidariedade, e a coordenar as mais de 40 mil iniciativas de crowdfunding
que foram sendo financiadas durante o período de emergência», exemplifica o
especialista.
Para
um país como Portugal, «que entrou com força no mapa mundial da participação
pública, à qual os meios de comunicação nacionais têm dedicado tanto espaço, é
impossível ficar alheado deste debate», afirma.
«Somos
dos poucos países que tem tido centenas de orçamentos participativos locais e
até três experiências promovidas pelo governo nacional, e a RAP (Rede das
Autarquias Participativas) é única no panorama europeu. Por dois meses, os
nossos processos participativos formalizados ficaram em modalidade “stand-by”,
bloqueados pelo distanciamento social e as urgências sanitárias. Mas agora é
tempo de repartir, partilhar a reconstrução, canalizar as novas formas de ativismo
solidário e lúdico que nasceram na emergência, e de transformá-los em ativismo
estratégico», fundamenta o coordenador do Observatório da Participação, da
Inovação e dos Poderes Locais.
Assim,
prossegue Giovanni Allegretti, para que «o “novo mundo” seja mesmo novo, o
Estado não pode atuar sozinho. As instituições são inerciais e as elites
políticas não têm suficiente criatividade para se colocarem no lugar das tantas
pessoas diferentes que compõem a nossa sociedade. Para não repetir os erros do
passado, não precisamos de assistencialismo nem de paternalismo, mas que seja reconhecido
aos cidadãos o direito de participar, sobretudo após estes meses de tragédia,
com o nosso comportamento responsável e pró-ativo».
Ao
Estado, segundo o investigador, cabe essencialmente estabelecer um processo de
reconstrução tripartido (instituições, empresas, comunidades), «abrindo espaços
substantivos para cidadãs e cidadãos, e coordenando os níveis de governos num
percurso participativo multinível, que possa imediatamente aproveitar (em cada
nível administrativo) das tantas ideias e práticas de cogestão dos bens comuns
que foram emergindo e – por certo – irão emergir ao longo do percurso». Universidade
de Coimbra – Portugal
O
artigo na íntegra de Giovanni Allegretti:
Refundar
a participação cívica: um imperativo para a reconstrução do “novo normal” - Giovanni
Allegretti (Centro de Estudos Sociais – Universidade de Coimbra)
Muitos
países procederam na semana passada a uma gradual abertura do lockdown.
Torna-se, por isso, importante relembrar a classe política que a participação
de cidadãs e cidadãos na reconstrução da sociedade no período pós-emergência é
fundamental. Em França, um painel de 150 cidadãos selecionados aleatoriamente
para integrar a “Convenção Cidadã para o Clima”
(www.conventioncitoyennepourleclimat.fr) apresentou o Relatório “Contribuição
para o plano de saída da crise”, enquanto uma centena de autarcas,
governadores, intelectuais e líderes sociais enviavam ao Presidente Macron a
petição “#NousLesPremiers: um cenário democrático para o mundo do depois”, que
propõe um plano em 3 etapas, que prevê o envolvimento direto dos habitantes na
reconstrução da sociedade e da economia. Em Espanha, começou a debater-se a
forma de acompanhar a (polémica) proposta de um novo “Pacto da Moncloa”,
prevendo a criação de painéis de cidadãos sorteados para que possam partilhar
as suas visões sobre o planeamento da era “pós-Covid”.
Em
Itália, vozes de elevada autoridade moral têm-se feito ouvir contra as
comissões e as task-forces nomeadas pelo Governo para planear a
reconstrução pós-pandemia. Essas deixaram de fora especialistas de participação
cidadã e quase não contemplam a presença de mulheres-peritos, tal como realçou
a apresentadora de TV, Ambra Angiolini, durante um concerto do 1 de Maio,
transparecendo para a sociedade uma mensagem política distorcida sobre as
forças que são necessárias reunir para que o “mundo novo” não aprofunde
desigualdades e exclusões.
Como
escreveu o ex-presidente da Corte Constitucional italiana, Zagrebelski,
fundador da “Bienal da Democracia” de Turim, o governo parece não entender que
“hábitos, atividades e necessidades materiais e espirituais das pessoas não são
matéria inerte, moldável como cera nos mínimos detalhes” e depois do período de
obediência é necessário construir a fase da responsabilidade”. Esta não pode
prescindir de uma participação ativa dos cidadãos porque "chamar à
obediência e solicitar à ética responsabilidade são coisas profundamente
diferentes” e os meios para promover cada uma delas também são totalmente
diversos. Este debate reforçou-se com a apresentação do “Relatório 2019 da
administração partilhada dos bens comuns”, redigido pelo Laboratório da
Subsidiariedade (www.labsus.org) que coordena 218 cidades italianas que
apostaram na construção de pactos de gestão de espaços, edifícios e atividades
públicas, co-construindo regulamentos municipais para agilizar a cooperação
entre comunidades e autarquias. Vale a pena reforçar que cerca de 20 por cento
destes pactos são realizados com grupos informais de cidadãos (não legalmente
constituídos), e 1/5 dos participantes são indivíduos não filiados nas formas
de associativismo clássico. Uma parte significativa destes ‘movimentos’ não
interromperam a sua atividade durante o período de emergência, optando por
direcionar a sua ação para apoiar pessoas em situação de vulnerabilidade. Para
realçar o contributo à resiliência das cidades italianas, oferecido por estas
experiências participativas, a Associação Nacional de Municípios (ANCI) tem
vindo a organizar webinars para divulgar as boas práticas e imaginar
como “refundar a participação” cívica com a retomada gradual das atividades
sociais. Cidades como Milão, Bari ou Nápoles têm vindo a abrir aos cidadãos os
seus Planos de Resiliência, a organizar hubs para otimizar as atividades
espontâneas de solidariedade, e a coordenar as mais de 40 mil iniciativas de crowdfunding
que foram sendo financiadas durante o período de emergência. Muitas câmaras têm
distribuído longos inquéritos visando entender como os cidadãos têm vivido a
sociabilidade limitada, os espaços da casa, as exigências de apoio familiar à
telescola e as dinâmicas de smart working. Em apenas uma semana, Reggio
Emilia recolheu 4800 respostas a um extenso questionário para repensar a
participação cívica, e 34 por cento dos que responderam declararam que estão
prontos a envolver-se, embora nunca se tenham implicado nos processos
participativos antes da crise.
É
claro que a participação vai ter que ser repensada. As pessoas têm medo de se
reencontrar em grandes grupos, e provavelmente estão saturadas de tecnologia nas
suas vidas, mas querem, sobretudo, ser ouvidas sobre grandes questões, como a
reconstrução do estado social (sobretudo educação e saúde) e a luta contra as
novas desigualdades e as exclusões.
É
preciso também repensar os padrões das habitações, reprogramá-las para novas
formas de convívio e multifuncionalidades, como ensina uma rede de arquitetos
da Galiza que está a apoiar os habitantes na transformação dos seus espaços de
vida. Nova Orleães – depois do furação Katrina – tem ensinado ao mundo quanto a
participação na reconstrução é indispensável para repensar o tecido urbano e a
sua economia. Durante a crise da Covid-19, autarquias como as de Prato (com o
seu diálogo precoce com a enorme comunidade chinesa) ou Seattle (decidindo com
os cidadãos os sítios a ser usados para as quarentenas) têm dado prova de que
apostar nos habitantes pode trazer soluções geniais até na emergência.
Pode
Portugal ficar fora deste debate? É impossível, para um país que entrou com
força no mapa mundial da participação pública, à qual os meios de comunicação
nacionais tem dedicado tanto espaço. Somos dos poucos países que tem tido
centenas de orçamentos participativos locais e até três experiências promovidas
pelo governo nacional, e a RAP (Rede das Autarquias Participativas) é única no
panorama europeu. Por dois meses, os nossos processos participativos
formalizados ficaram em modalidade “stand-by”, bloqueados pelo distanciamento
social e as urgências sanitárias. Mas, gora é tempo de repartir, partilhar a
reconstrução, canalizar as novas formas de ativismo solidário e lúdico que
nasceram na emergência, e de transformá-los em ativismo estratégico. Para
repensar a nova economia, a harmonia com a natureza, as maneiras de fazer
cultura e de se encontrar em formas que garantam segurança e criem nova
sociabilidade. Para que o “novo mundo” seja mesmo novo, o Estado não pode atuar
sozinho. As instituições são inerciais e as elites políticas não têm suficiente
criatividade para se colocarem no lugar das tantas pessoas diferentes que compõem
a nossa sociedade. Para não repetir os erros do passado, não precisamos de
assistencialismo nem de paternalismo, mas que seja reconhecido aos cidadãos o
direito de participar, que foi conquistado, durante estes meses de tragédia
coletiva, com comportamentos responsáveis e pró-ativos. Ao Estado cabe
sobretudo montar um processo de reconstrução tripartido (instituições,
empresas, comunidades), abrindo espaços substantivos para cidadãs e cidadãos, e
coordenando os níveis de governos num percurso participativo multinível, que
possa imediatamente aproveitar (em cada nível administrativo) tantas ideias e
práticas de cogestão dos bens comuns que foram emergindo nestes meses e – por
certo – irão emergir ao longo do percurso.
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