I
Quem
está acostumado a ler a Bíblia sabe que, no Velho Testamento, em Números,
capítulo 22, encontra-se a história em que um anjo aparece para advertir
Balaão, filho de Beor, o Petor, senhor das campinas de Moabe, da banda do rio
Jordão de Jericó, que, a pedido de Balaque, filho de Zipor, rei dos moabitas,
pretendia barrar a passagem dos filhos de Israel, contrariando o que Deus lhe
dissera em sonho. E que seguia Balaão em sentido contrário até que o anjo do
Senhor fez com que a jumenta sobre a qual ele seguia montado se desviasse do
caminho.
Então,
Balaão espancou a jumenta para fazê-la tornar ao caminho. E, vendo que o animal
não respondia, voltou a espancá-lo com o bordão mais duas vezes. Então, o
Senhor abriu a boca da jumenta para questionar Balaão: Que te fiz eu, que me
espancaste estas três vezes? Em seguida, a jumenta ainda diria a Balaão: Porventura
não sou a tua jumenta, em que cavalgaste desde o tempo que eu fui tua até hoje?
Costumei eu alguma vez fazer assim contigo? E ele respondeu: Não.
Então o Senhor abriu os olhos de Balaão, e ele viu o anjo do Senhor, que estava
no caminho (...).
Mas,
a que vêm estas reminiscências? Vêm para lembrar que não é de hoje que os
homens de imaginação colocam os animais a falar ou ao menos a manifestar
sentimentos que seriam inerentes apenas aos seres humanos, geralmente de
lealdade. É o que se pode ver também na novela Asno de ouro em que seu
autor, Lucius Apuleio (125d.C-170d.C), filósofo romano nascido em Madaura, na
atual Argélia, Norte da África, conta como o personagem Lúcio, na Grécia, ao
tomar uma poção por engano na casa de uma mulher versada em artes mágicas é
transformado em asno, mas sem que viesse a perder a sua inteligência. Raptado
por um bando de salteadores, Lúcio passa por provações, trabalhando como burro
de carga, até que volta à condição humana. Na forma de asno, porém, tem a
oportunidade de ouvir relatos de homens e mulheres e testemunhar a precariedade
da vida humana. Essas aventuras acabam por constituir uma fábula sobre o pecado
e a expiação.
II
Não
se sabe se foi a partir desses exemplos que o poeta potiguar David de Medeiros
Leite (1966) imaginou o seu livro de poemas Ruminar (Rumiar), que saiu
em edição bilíngue em 2015 pela editora Sarau das Letras, de Mossoró-RN, e
Trilce Editores, de Salamanca, com tradução para o espanhol pelo poeta peruano
Alfredo Pérez de Alencart (1962), radicado há muitos anos em Salamanca e
professor universitário desde 1987. O Asno de ouro, aliás, é citado por
Alencart no prefácio que escreveu para esta obra, para lembrar que igualmente
David de Medeiros Leite faz com que animais também falem, adquirindo a forma
humana. “Em Ruminar, primeiro quem fala é o gado; depois, o vaqueiro que
cuida do rebanho”, observa Alencart.
De
fato, o autor apresenta, de forma poética, a relação homem-animal no contexto
do sertão nordestino, colocando num primeiro momento o que seria a visão do
gado, com suas inquietações que vão desde a preocupação com suas crias, até o
questionamento quanto a sua situação de servo ou escravo do ser humano. Em
seguida, os poemas mostram a visão do vaqueiro, sua preocupação com as tarefas
cotidianas e até mesmo seu apego a superstições comuns ao homem sertanejo. Tudo
perpassado por um lirismo transparente e puro, com versos moldados em formas
breves e livres.
Um
bom exemplo da primeira parte é um dos três poemas que dão título à obra,
“Ruminar III”: A gemedeira do carro de boi/ faz o homem,/ de beira da
estrada,/ admirar nossa passagem./ O ruído também/ nos serve/ de contrapeso/ ao
fardo arrastado./ Entre/ a faina e o ruminar/seguimos aviltando/ vergastadas/ – transferidas, talvez –/ dos
que sustentam/ em confusas mãos/ capatázios látegos.
O
que encanta nos poemas de David de Medeiros Leite é a maneira como o poeta
extrai seiva lírica da matéria mais humilde, como se pode constatar nos versos
de “Sujeitos (ruminam)”, peça escrita em memória do poeta popular, cantor e
improvisador cearense Antônio Gonçalves da Silva (1909-2002), mais conhecido
como Patativa do Assaré. Vale a pena reproduzi-lo por inteiro: Para
confidência/ elegi a vaca Estrela./ Com ela, meu desabafo diário/ em regozijos
e dissabores./ E como sou compreendido!/ O boi Fubá,/ com cara enfadada,/ fica
com despeitos./ Dou de ombros! Também os escuto/ decodificando seus humores,/
desgostos e contemplares./ Sou capaz de decifrar/ o olhar bovino/ desde
menino./ E isso aprendi com meu avô,/ que dizia:/ “Nem carece encará- los – eles não gostam –/ só precisa mirá-los/ de soslaio/
e verá/ a profundidade/ que carregam/
nos silêncios/ e breves mugidos”.
III
Nascido
em Mossoró-RN, David de Medeiros Leite, graduado em 1999 pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN), mestre (2008) e doutor (2011) em Direito
pela Universidade de Salamanca (USAL), na Espanha, é advogado, jurista e gestor
com atuação em diversos cargos na administração pública e professor da UERN
desde 2004, onde também desenvolve pesquisas, especialmente na área de Direito
Público.
Foi
pró-reitor de Gestão de Pessoas na UERN e é assessor jurídico da presidência do
Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte. Foi ainda diretor
científico da Fundação de Apoio à Pesquisa no Estado do Rio Grande do Norte
(Fapern). Em 2005, em parceria com o escritor Clauder Araújo, criou a editora
Sarau das Letras. Além de livros de poemas, tem publicado biografias e livros
de crônicas e de História com temas ligados ao Nordeste, em especial à cidade
de Mossoró.
É
autor de Companheiro Góis – dez anos de saudade, biografia (Coleção
Mossoroense, 2001), Os carmelitas em Mossoró, em coautoria com Gildson
Souza Bezerra e José Lima Dias Júnior (Coleção Mossoroense, 2002), Ombudsman
mossoroense (Sebo Vermelho, 2003), Duarte Filho: exemplo de dignidade na
vida e na política, biografia, em coautoria com Lupércio Luiz de, Azevedo
(Sarau das Letras, 2005), Incerto caminhar (Sarau das Letras, 2009), Cartas
de Salamanca (Sarau das Letras, 2011), Casa das lâmpadas (Sarau das
Letras, 2013), Mossoró e Tibau em versos – antologia poética, em
coautoria com Edilson Segundo (Sarau das Letras, 2014), Rio do fogo, em
coautoria com Bruno Lacerda (2017); Mi Salamanca: guía de un poeta
nordestino, com tradução e prólogo de Alfredo Pérez Alencart (2018), Aldemar
Duarte Leite: centenário de nascimento, biografia (2018), e História da Liga Operária de Mossoró,
em coautoria com José Edílson Segundo e Olivá Leite da Silva Júnior (2018).
Na
área de Direito, é autor ainda de Presupuesto participativo en municipios
brasileños: aspectos jurídicos y administrativos (Editorial Académica
Española, 2012) e Participação política e cidadania – Amicus Curiae,
audiências públicas parlamentares e orçamento participativo, em coautoria
com José Armando Pontes Dias Júnior e Aurélia Carta Queiroga da Silva (2018). Adelto
Gonçalves – Brasil
Ruminar
(Rumiar), de David de Medeiros
Leite, com tradução e prólogo de Alfredo Pérez Alencart. Mossoró-RN: Sarau de
Letras Editora; Salamanca-Espanha: Trilce Ediciones, 80 páginas, 2015. E-mails:
clauderarcanjo@gmail.com davidmleite@hotmail.com
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na
São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Belo texto, mestre Adelto Gonçalves. Conciso, direto e arguto, como tudo que nasce da sua pena literária.
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