A criação literária de Natália Correia possui duas componentes fundamentais: o pendor lírico, ao aprofundar os sentimentos mais íntimos, e a sátira escaldante e corrosiva para ajuste de contas com poetas, escritores, artistas, políticos e outras pessoas que detestava. (Texto publicado originalmente na revista Tempo Livre edição de 4 de Outubro, 2023, Lisboa.)
Natália
Correia pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer um nome
para as identificar na amplitude da sua criação literária e artística e na
singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Vieira (da Silva),
Agustina, Amália. Nasceu nos Açores na ilha de São Miguel, na Fajã de
Baixo, uma freguesia do interior, próximo de Ponta Delgada. Pai e mãe
entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o
Brasil.
A
mãe de Natália, a professora primária Maria José Oliveira formara-se no
ideário cívico e cultural da I República, adotando princípios laicos e
tendências libertárias, o que era raro na época e, ainda, muito mais raro
nos Açores. Além do exercício do magistério, colaborou em jornais e
revistas. Mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas,
incutindo-lhes os valores da democracia e a aproximação com a modernidade.
Radicou-se, em 1934, definitivamente, em Lisboa. Quis dar às filhas – para
triunfarem na vida – as oportunidades que não existiam nos Açores.
Natália
ganhou notoriedade nos anos 40. Conciliou o jornalismo, a literatura e a
política. Aderiu à oposição democrática; teve programas no Rádio Clube
Português, escreveu em jornais e revistas. Assinou, em 1945, as listas do MUD.
Todavia, ao contrário da maioria dos jovens intelectuais e políticos da sua
geração – caso Mário Soares, Salgado Zenha – não ingressou no MUD Juvenil,
dominado pelo Partido Comunista.
Os
primórdios literários de Natália Correia refletem aspetos genéricos do neorrealismo.
O romance Anoiteceu no Bairro e o livro de versos Rio de Nuvens
são dois exemplos. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e
político, nos anos 50. Seguiu outro caminho que prosseguiu, com variantes
óbvias. Passou a ficar próxima do surrealismo.
Manteve
relações pessoais e literárias com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas,
Alexandre O’Neill, Manuel de Lima e Mário Henrique Leiria. Acrescente-se Luís
Pacheco, editor dos surrealistas e de livros de poesia de Natália, desta
segunda fase: Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958) e Comunicação
(1959). É um documento humano repleto de inquietações e de perplexidades.
Já o Canto do País Emerso (1961) constitui a transição para o
combate político.
Publicou,
com êxito, muitos outros livros de poesia, de ficção, de teatro, de ensaio e
de crónicas ocasionais. Se a identificação de Natália Correia com Lisboa
foi muito intensa, o vínculo com os Açores foi igualmente profundo. Não
Percas a Rosa, um dos seus livros mais famosos, regista as reminiscências
visuais, auditivas e gustativas que remontavam à infância e ao começo da
adolescência, na ilha de São Miguel.
Na
linhagem das Cantigas de Escárnio e Maldizer, concebeu as Cantigas
de Risadilha. Para enfrentar todos os poderes e todos os convencionalismos.
Ficaram célebres os versos para arrasar o deputado do CDS, João Morgado
quando se pronunciou, na Assembleia da República, acerca da legislação sobre
o aborto. Morgado disse categoricamente: «o ato sexual é para fazer filhos».
Natália, deputada do PSD, não se conteve e fez, de um jato, um poema que saiu
na íntegra no dia seguinte, no Diário de Lisboa.
Natália
declamou com a maior ênfase: «Já que o coito – diz Morgado –/ tem como fim
cristalino,/ preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o
varão/ sexual petisco manduca,/ temos na procriação/ prova de que houve
truca-truca./ Sendo pai só de um rebento, / lógica é a conclusão/ de que o
viril instrumento/só usou–parca ração!–/uma vez. E se a função/ faz o
órgão – diz o ditado –/ consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!»
Lisboa
era a sua cidade adotiva. Juntamente com o marido Alfredo Machado e com a
escultora Isabel Meyrelles criou, em 1971, uma sociedade para instalar um bar,
restaurante/café-concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza,
um edifício histórico do bairro. Ficou a chamar-se o Botequim. Evocava a
tradição literária, política e boémia, que remontava aos primeiros cafés
de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage e aos antecedentes da
revolução liberal e da independência do Brasil.
Encontrava-se
Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que
deram brado em todo o País. Desencadeara no consulado de Salazar e na
«primavera marcelista» duas ruidosas polémicas que a levaram à barra do
Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo motivado pela introdução e
coordenação da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965). O
segundo processo devido à responsabilidade editorial das Novas Cartas
Portuguesas (1972) da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e
Maria Isabel Barreno. Ambos os livros foram objeto do alarme da Censura e da
imediata apreensão da PIDE. Foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de
guerrilhas judiciais. O 25 de Abril determinou o ponto final.
Em
torno de Natália, o Botequim concentrou todas as noites, poetas, escritores e
artistas das mais variadas tendências. Políticos de todos os quadrantes.
Deputados, ministros (alguns futuros presidentes da República). Diplomatas
portugueses e estrangeiros. Espiões nacionais e internacionais para se
inteirarem dos bastidores do processo revolucionário e contrarrevolucionário.
Representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores.
Durante
mais de 20 anos a irradiação magnética de Natália proporcionou essa
atmosfera irrepetível que Fernando Dacosta recriou no seu livro O Botequim
da Liberdade (2013). Outra obra de referência obrigatória é a Fotobiografia
de Natália (2006) da autoria de Ana Paula Costa. Recentemente, surgiu a
biografia romanceada por Filipa Martins e com o título expressivo O Dever
de Deslumbrar.
Trinta anos depois da morte e ao comemorar-se a 13 de setembro o centenário do nascimento, o legado cultural de Natália Correia perdura. Celebrou a vida como expressão de euforia, de afirmação de coragem pessoal e cívica, de rebeldia aparatosa, de inconformismo colérico. A sua poesia é sempre dominada por dois extremos: a confidência lírica e o sarcasmo feroz: a riqueza metafórica, o jogo dos paradoxos, o luxo ornamental, a exuberância do barroco e a interpelação simbólica. Uma Natália ávida de todas as experiências visíveis e invisíveis, em partilha contínua do profano com o sagrado. António Valdemar – Portugal in “Blog de São João del-Rei”
António Valdemar – Jornalista, carteira profissional número UM e
investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio
correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3.
Do
mesmo autor:
Cem anos de Natália Correia: a criação literária e a
intervenção política de uma mulher única
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