Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

domingo, 8 de outubro de 2023

Natália, entre dois extremos

A criação literária de Natália Correia possui duas componentes fundamentais: o pendor lírico, ao aprofundar os sentimentos mais íntimos, e a sátira escaldante e corrosiva para ajuste de contas com poetas, escritores, artistas, políticos e outras pessoas que detestava. (Texto publicado originalmente na revista Tempo Livre edição de 4 de Outubro, 2023, Lisboa.)


Natália Correia pertenceu ao reduzido número de mulheres que basta só dizer um nome para as identificar na amplitude da sua criação literária e artística e na singularidade da sua dimensão humana – Natália, Sophia, Vieira (da Silva), Agustina, Amália. Nasceu nos Açores na ilha de São Miguel, na Fajã de Baixo, uma freguesia do interior, próximo de Ponta Delgada. Pai e mãe entraram em rutura quando Natália tinha alguns meses. O pai emigrou para o Brasil.

A mãe de Natália, a professora primária Maria José Oliveira formara-se no ideário cívico e cultural da I República, adotando princípios laicos e tendências libertárias, o que era raro na época e, ainda, muito mais raro nos Açores. Além do exercício do magistério, colaborou em jornais e revistas. Mas, desde sempre, preocupou-se com a educação das filhas, incutindo-lhes os valores da democracia e a aproximação com a modernidade. Radicou-se, em 1934, definitivamente, em Lisboa. Quis dar às filhas – para triunfarem na vida – as oportunidades que não existiam nos Açores.

Natália ganhou notoriedade nos anos 40. Conciliou o jornalismo, a literatura e a política. Aderiu à oposição democrática; teve programas no Rádio Clube Português, escreveu em jornais e revistas. Assinou, em 1945, as listas do MUD. Todavia, ao contrário da maioria dos jovens intelectuais e políticos da sua geração – caso Mário Soares, Salgado Zenha – não ingressou no MUD Juvenil, dominado pelo Partido Comunista.

Os primórdios literários de Natália Correia refletem aspetos genéricos do neorrealismo. O romance Anoiteceu no Bairro e o livro de versos Rio de Nuvens são dois exemplos. Demarcou-se, todavia, deste movimento literário e político, nos anos 50. Seguiu outro caminho que prosseguiu, com variantes óbvias. Passou a ficar próxima do surrealismo.

Manteve relações pessoais e literárias com Mário Cesariny, Cruzeiro Seixas, Alexandre O’Neill, Manuel de Lima e Mário Henrique Leiria. Acrescente-se Luís Pacheco, editor dos surrealistas e de livros de poesia de Natália, desta segunda fase: Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958) e Comunicação (1959). É um documento humano repleto de inquietações e de perplexidades. Já o Canto do País Emerso (1961) constitui a transição para o combate político.

Publicou, com êxito, muitos outros livros de poesia, de ficção, de teatro, de ensaio e de crónicas ocasionais. Se a identificação de Natália Correia com Lisboa foi muito intensa, o vínculo com os Açores foi igualmente profundo. Não Percas a Rosa, um dos seus livros mais famosos, regista as reminiscências visuais, auditivas e gustativas que remontavam à infância e ao começo da adolescência, na ilha de São Miguel.

Na linhagem das Cantigas de Escárnio e Maldizer, concebeu as Cantigas de Risadilha. Para enfrentar todos os poderes e todos os convencionalismos. Ficaram célebres os versos para arrasar o deputado do CDS, João Morgado quando se pronunciou, na Assembleia da República, acerca da legislação sobre o aborto. Morgado disse categoricamente: «o ato sexual é para fazer filhos». Natália, deputada do PSD, não se conteve e fez, de um jato, um poema que saiu na íntegra no dia seguinte, no Diário de Lisboa.

Natália declamou com a maior ênfase: «Já que o coito – diz Morgado –/ tem como fim cristalino,/ preciso e imaculado/ fazer menina ou menino;/ e cada vez que o varão/ sexual petisco manduca,/ temos na procriação/ prova de que houve truca-truca./ Sendo pai só de um rebento, / lógica é a conclusão/ de que o viril instrumento/só usou–parca ração!–/uma vez. E se a função/ faz o órgão – diz o ditado –/ consumada essa exceção,/ ficou capado o Morgado!»

Lisboa era a sua cidade adotiva. Juntamente com o marido Alfredo Machado e com a escultora Isabel Meyrelles criou, em 1971, uma sociedade para instalar um bar, restaurante/café-concerto, no largo da Graça, no rés-do-chão da Vila Souza, um edifício histórico do bairro. Ficou a chamar-se o Botequim. Evocava a tradição literária, política e boémia, que remontava aos primeiros cafés de Lisboa, do século XVIII, ao tempo de Bocage e aos antecedentes da revolução liberal e da independência do Brasil.

Encontrava-se Natália envolvida, em 1971, em controvérsias políticas e literárias que deram brado em todo o País. Desencadeara no consulado de Salazar e na «primavera marcelista» duas ruidosas polémicas que a levaram à barra do Tribunal Plenário de Lisboa. O primeiro processo motivado pela introdução e coordenação da Antologia da Poesia Erótica e Satírica (1965). O segundo processo devido à responsabilidade editorial das Novas Cartas Portuguesas (1972) da autoria de Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno. Ambos os livros foram objeto do alarme da Censura e da imediata apreensão da PIDE. Foi julgada e condenada, ao cabo de nove anos de guerrilhas judiciais. O 25 de Abril determinou o ponto final.

Em torno de Natália, o Botequim concentrou todas as noites, poetas, escritores e artistas das mais variadas tendências. Políticos de todos os quadrantes. Deputados, ministros (alguns futuros presidentes da República). Diplomatas portugueses e estrangeiros. Espiões nacionais e internacionais para se inteirarem dos bastidores do processo revolucionário e contrarrevolucionário. Representantes da FLAD, o movimento da independência dos Açores.

Durante mais de 20 anos a irradiação magnética de Natália proporcionou essa atmosfera irrepetível que Fernando Dacosta recriou no seu livro O Botequim da Liberdade (2013). Outra obra de referência obrigatória é a Fotobiografia de Natália (2006) da autoria de Ana Paula Costa. Recentemente, surgiu a biografia romanceada por Filipa Martins e com o título expressivo O Dever de Deslumbrar.

Trinta anos depois da morte e ao comemorar-se a 13 de setembro o centenário do nascimento, o legado cultural de Natália Correia perdura. Celebrou a vida como expressão de euforia, de afirmação de coragem pessoal e cívica, de rebeldia aparatosa, de inconformismo colérico. A sua poesia é sempre dominada por dois extremos: a confidência lírica e o sarcasmo feroz: a riqueza metafórica, o jogo dos paradoxos, o luxo ornamental, a exuberância do barroco e a interpelação simbólica. Uma Natália ávida de todas as experiências visíveis e invisíveis, em partilha contínua do profano com o sagrado. António Valdemar – Portugal in “Blog de São João del-Rei”

António Valdemar – Jornalista, carteira profissional número UM e investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências de Lisboa e sócio correspondente português para a ABL-Academia Brasileira de Letras-cadeira nº 3.

Do mesmo autor:

Cem anos de Natália Correia: a criação literária e a intervenção política de uma mulher única


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