O centenário da morte do poeta permite revisitar a sua obra repleta de testemunhos implacáveis acerca de Portugal e do comportamento dos portugueses e sobre a ausência das soluções necessárias para ultrapassar as crises. (Publicado originalmente no jornal As Artes entre As Letras, edição de 25 de Outubro de 2023, pp. 6 e 7)
Os
grandes acontecimentos nacionais e internacionais que se verificaram no tempo
de Guerra Junqueiro (1850-1923), refletiram-se na conduta do homem e na obra do
poeta. Basta citar o Finis Patriae (1890) e a Pátria, (1896)
dois livros de combate, onde procurou retratar ou caricaturar as tendências
dominantes no país real e as singularidades do temperamento e do carácter dos
portugueses.
Espetador
e interveniente nas guerras e nas guerrilhas, que agitaram a vida política,
social e cultural portuguesas, Junqueiro acompanhou de perto as consequências
do Ultimatum de 1890 e da Revolução Republicana do 31 de Janeiro.
Os ataques desferidos por ocasião da ditadura de João Franco levaram-no à
barra dos Tribunais. Este consulado político, que decorreu entre maio de 1906
e acabou com o Regicídio (1 de fevereiro de 1908), precipitou o fim da
Monarquia e abriu caminho para a instauração da República. Junqueiro também
seguiu de perto os anos agitados da República: a repetição de erros crassos,
desvios graves e as violências sangrentas, ainda assistiu a mais duas
ditaduras, a de Pimenta de Castro (28 de janeiro de 1915 a 14 de maio de 1915)
e a de Sidónio Pais (9 de maio de 1918 a 14 de dezembro de 1918) que deixaram
feridas abertas. A 28 de maio de 1926 – Junqueiro havia falecido a 7 de julho
de 1923 – implantava-se ainda mais outra ditadura portuguesa no século XX. A
tomada do poder pelos militares, seguida pela ditadura de Salazar que se
estendeu por mais de quatro décadas, até ser derrubada pelo 25 de Abril.
A
publicação de sucessivas edições do Finis Patriae e da Pátria
desencadeou uma controvérsia política, enquanto o aparecimento d’A Velhice
do Padre Eterno (1885), circunscreveu-se a uma polémica sem precedentes,
no âmbito da igreja católica. A ferocidade da sátira envolveu desde as mais
altas hierarquias até ao pároco da aldeia. Denunciou a conduta religiosa que,
em nome da fé e em nome de Deus, mergulhava nas malhas obscuras da política
quotidiana, para favorecer interesses institucionais e materiais e reforçar o
poder em todas as instâncias. O panfleto da autoria do Padre Sena Freitas, Autópsia
da Velhice do Padre Eterno, atingiu o auge das contestações que se
mantiveram depois da morte de Junqueiro. Estabeleceu tamanha confusão que,
dificilmente, se poderia concluir que Junqueiro se limitava a combater a
superstição, o medo e o terror nas consciências. A existência de Deus e a
figura de Cristo, nunca foram postas em causa. Mas o salazarismo –
“orgulhosamente só” – ignorou o Concílio Vaticano II promovido por João
XXIII e executado por Paulo VI.
Pátria e pia
Já
o Finis Patriae e a Pátria constituem um ataque implacável à
dinastia de Bragança concentrada, fundamentalmente, no rei D. Carlos, na corte
que o cercava, nos partidos que se alternavam nos Governos e nas instituições
comprometidas numa permuta de malabarismos movidos através dos caciques
nacionais e locais. Se ambos os poemas são escaldantes, encontra-se um texto
muito mais explosivo integrado como apêndice da Pátria. Ultrapassou a
crítica vigorosa de Ramalho, em numerosos volumes, as Farpas; a ironia
penetrante de Eça, nas suas grandes obras e nas crónicas ocasionais.
Assemelhava-se à fúria bravia que percorre os Gatos de Fialho.
Perante
a sociedade que o rodeava, Junqueiro não hesitava em alertar numa comparação
com o episódio da ressurreição descrito na Bíblia: «se Cristo, entre
ladrões, fosse crucificado, em Portugal, ao terceiro dia, em vez do Justo,
ressuscitariam os bandidos. Ao terceiro dia? Que digo eu! Em 24 horas andavam
na rua, sãos como perros, de farda agaloada e a Grã Cruz de Cristo». E
quais os motivos que davam lugar a esta situação degradante? Junqueiro – e
optamos por transcrever as suas próprias palavras – responsabilizava os
partidos que alternavam no exercício da governação, (o Partido Progressista
e o Partido Regenerador) permaneciam «sem ideias, sem planos, sem
convicções, incapazes na hora do desastre, de sacrificar uma gota de sangue,
vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e perverso, análogos nas
palavras, idênticos nos atos, iguais um ao outro».
Perante
esta e outras evidências, Junqueiro não resistia a advertir: «Da mera
comuna de estômagos não resulta uma Pátria, resulta uma Pia». Assim deplorou
a influência nefasta de «uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até
a medula», «sem palavras, sem vergonha, sem carácter»; «pantomineiros e
sevandijas, capazes de toda a infâmia, da mentira à falsificação, da
violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a
indiferença geral, escândalos monstruosos (...)».
A
sociedade encontrava-se em manifesto declínio: a «parasitagem burocrática»,
a «advogalhada de São Bento», misturadas com «traficâncias», «corrupção
visceral, glorificações mercenárias, apoteoses aviltantes revestidas de
ironia céptica, galhofa cínica, humor sibarita e riso canalha». Eis
porque – escrevia Junqueiro – abundavam «os quadrilheiros que infestam
Lisboa e os sub-quadrilheiros que infestam as províncias». Reclamava
soluções cáusticas: «anulá-los, esmagá-los num dia, numa hora, sem pena e
sem remorso, vazando-os logo – atascadeiro de baixezas, lodo de malandros –
pelo buraco infecto duma comua. Depois pregar a tampa. Um colector in pace, um
cano de esgoto jazigo de família.» ** A justiça ficava «ao arbítrio
da Política, torcendo-lhe a vara a ponto de fazer dela um saca-rolhas».
Mudança radical
O
homem português em face da crise, caracterizava-se, sem margem para
equívocos:
«Um
povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo,
burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes
de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia de um coice,
pois que nem já com orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em
catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para
onde vai (...)».
Predomina
«um pessimismo canceroso e corrosivo, minando as almas, cristalizado já em
fórmulas banais e populares – tão bons são uns como os outros, corja de
pantomineiros, cambada de ladrões, tudo uma choldra». «O português,
apático e fatalista, ajusta-se pela maleabilidade da indolência a qualquer
estado ou condição. Capaz de heroísmo, capaz de cobardia, toiro ou burro,
leão ou porco, segundo o governante. (...) Povo messiânico, mas que não gera
o Messias. Não o pariu ainda. Em vez de traduzir o ideal em carne, vai-o
dissolvendo em lágrimas. Sonha a quimera, não a realiza».
Se
atacava ferozmente a classe dominante e a indiferença do povo, Junqueiro
também se mostrava bastante incrédulo, em relação à maioria da juventude:
«Deparava uma geração nova das escolas, entusiasta, irreverente,
revolucionária, destinada, porém, como as anteriores, viva maré dum
instante, a refluir anódina e apática ao charco das conveniências e dos
interesses». A reforma na área da justiça impunha-se mas preconizava a
urgência de uma transformação radical no domínio da educação e do ensino,
desde a família à escola e à Universidade, a fim de preparar outra geração
com a dimensão moral, política e cultural para realizar um projeto de futuro.
«Os homens que há muito dirigem os destinos da nação» – insistia
Junqueiro – «quase sempre democratas vazios aos vinte anos, e cínicos redondos
aos quarenta, são incapazes de um plano de Governo. Eles, francamente, visam,
apenas, salvar o seu interesse, o seu egoísmo e as suas lantejoulas de
medíocre». Assim resumia a «fatalidade inexorável que, em momentos
cruciais, se torna indisfarçável no comportamento individual e na relação
colectiva do homem português, dentro do seu próprio País.».
«A águia baixou a milhafre»
O
consumo de aspas, nesta visão retrospetiva, terá sido excessivo. Perdia-se,
contudo, o cunho pessoal e intransmissível de Junqueiro. Em matéria tão
polémica e tão delicada, podemos ainda lembrar que, perante a conjuntura que
se vivia, na altura, «a águia baixou a milhafre». «O milhafre é
útil, depura e limpa» – concluía. «Os Gatos foram, em parte, uma obra
de justiça, por vezes de cólera. Mas o rancor dos bons denota ainda bondade.
Só os grandes idealistas desceram a grandes satíricos. Cristo dava chicotadas».
Cem anos depois da morte de Junqueiro – que foi, de imediato, consagrado no Panteão Nacional – não parece possível recuperar a sua obra literária. A geração de Fernando Pessoa que se afirma a partir de 1915 na revista Orpheu elegeu entre os poetas do passado próximo Cesário Verde, Gomes Leal, Camilo Pessanha e Antero. Um dos principais representantes da Seara Nova que não se identificava com o modernismo e as vanguardas – trata-se, concretamente, de Raul Proença – classificava a obra de Junqueiro, em especial as interpelações que se multiplicam nos seus livros mais contundentes de «trovoada de lata». Seja como for, o que não resta dúvida é que perdura na criação literária de Junqueiro a veemência do protesto e a coragem da opinião, sempre que nos confrontamos com a efervescência política e a degradação social e que se tem repetido e acentuado nestes dias de angústia e de perplexidade que estamos a viver. António Valdemar – Portugal in “Blog de São João del-Rei”
António Valdemar - Jornalista, investigador, sócio efetivo da Academia das Ciências
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