Foi notícia no dia 12 de Setembro a declaração do presidente da república a tomar a data como “início das comemorações do centenário de Amílcar Cabral”. De imediato, a comunicação social pública surgiu na sua onda de costume a tecer loas à figura do líder do PAIGC e à luta de libertação na Guiné-Bissau secundada pela Fundação Amílcar Cabral a clamar por gratidão eterna dos cabo-verdianos para com os “libertadores”
Ora,
o 12 de Setembro não é reconhecido como feriado nacional para ser objecto de
declarações oficiais e sabe-se que decisões em matérias de comemorações nos
países com o sistema político de feição parlamentar são fundamentalmente do
executivo. Em Cabo Verde, por exemplo, já foram tomadas sob a forma de
resolução do governo (Resolução 27/2006 de 26 Junho, Centenário da Claridade) e
em Portugal também as comemorações dos 50 anos do 25 de Abril foram
determinadas por resolução do governo (Resolução 70/2021 de 4 de Junho.
Talvez
ciente de um faux pas, ou lapso do PR a ultrapassar os seus poderes,
apareceram posteriormente outras vozes a perguntar o que é que o governo e o
parlamento iriam programar para essas comemorações. São perguntas que procuram
preencher o vácuo criado e servem certamente para pressionar os outros órgãos
de soberania a agir no sentido pretendido e de acordo com o quadro já
estabelecido. Nas declarações do PR quer-se que ainda hoje Amílcar Cabral, o
líder fundador e ideólogo do PAIGC, seja força inspiradora para realizar os
sonhos daqueles que lutaram pela independência. Isso poderá ter sentido em
projectos totalitários, mas não numa república assente nos princípios da
soberania popular, no pluralismo de expressão e no respeito pelos direitos e
liberdades individuais.
De
facto, a procura do bem comum nas sociedades livres resulta do processo
democrático e não da concretização dos sonhos de alguns. Aliás, do conhecimento
histórico e da experiência própria em Cabo Verde, sabe-se no que dá seguir por
esse caminho. O desastre do que foi o regime de partido único na Guiné-Bissau e
o atraso que representou para Cabo Verde – até hoje Cabo Verde é um dos países
mais atrasados em comparação com outros pequenos estados insulares, os SIDS -
resultaram do projecto do PAIGC que, como se veio a constatar ao longo de
década e meia, era mais um projecto de poder de alguns, camuflado em projecto
de libertação.
A
recomendação do PR de seguir Cabral no “pensar com as nossas próprias
cabeças” também não faz muito sentido. No contexto em que foi expressa a
frase adequava-se aos regimes políticos previstos que posteriormente seriam
estabelecidos pelo PAIGC na Constituição da Guiné-Bissau de 1973 e na
Constituição de Cabo Verde de 1980. Nesses regimes não há pluralismo, apenas se
prevê um partido político e os direitos fundamentais são exercidos como a lei ordinária
no momento determinar. Forças do conformismo ideológico, ameaças de ostracismo
social e o perigo de exílio ou mesmo de eliminação física garantem que “pensar
com as nossas próprias cabeças” passa a significar, de facto, “pensar com a
cabeça do partido, ou seguir a linha do partido”.
O
ponto de partida do regime democrático é outro. Ninguém tem a verdade absoluta
e assegura-se a possibilidade de haver pensamento independente, não se
inspirando em figuras históricas de matriz ideológica totalitária, mas sim num
ambiente político de liberdade de expressão e liberdade de informação, de
pluralismo e de alternâncias pacíficas de governos. Também não cabem num quadro
democrático apelos que se abeiram da idolatria do tipo que Amílcar Cabral
nos permita mobilizar energias, capacidades e competências para a realização
dos sonhos daqueles que lutaram pela independência (...)
Diz-se
amiúde que os países ou nações precisam dos seus mitos fundadores para terem
uma identidade própria, para manter vivo o espírito de união na resposta às
ameaças existenciais e às adversidades e também para renovar os laços comuns
com vista à construção de um futuro de prosperidade. Tem sido essa a mensagem
passada em vários países africanos para justificar a veneração oficial dos chamados
“libertadores e pais da independência” e inculcar nas gerações sucessivas o
dever de gratidão eterna para com eles. Uma gratidão que na generalidade dos
casos, e em primeiro lugar, os desresponsabiliza dos regimes ditatoriais
implantados, dos sofrimentos indiscritíveis infligidos e do enorme atraso
provocado por governação desastrosa e corrupta.
A
situação crítica que se vive em vários países da África dá conta do embuste que
isso foi, da mesma forma como noutras paragens a desagregação da Jugoslávia
depois da morte do marechal Tito e da União Soviética com o fim do regime do
partido comunista, o partido demiurgo que produzia Pais dos Povos. A
Guiné-Bissau, no dia 24 de Setembro, vai completar cinquenta anos que adoptou a
constituição que criou o regime de partido único e logo de seguida por Lei nº
4/73 proclamou Amílcar Cabral Fundador da Nacionalidade. Pelas vicissitudes da
história desse país nas décadas seguintes não se poderá dizer que a narrativa
da nação forjada na luta, do partido como factor de cultura e do líder do
partido como fundador da nacionalidade contribuiu para criar identidade,
espírito de união e laços comuns que poderiam tirar a Guiné-Bissau do grupo dos
países mais pobres do mundo. Muito pelo contrário.
Pior
acabou por acontecer em Cabo Verde quando também se instituiu o partido único
e, por uma publicação no B.O. de 7 de Julho de 1975, suplemento, que se
convencionou chamar de Lei, se proclamou Amílcar Cabral como fundador e
militante nº1 do PAIGC (artigo 1º) e como Fundador da Nacionalidade (artigo
2º). O povo das ilhas, que de há muito tinha uma identidade e uma consciência
da nação que já era traduzida designadamente na sua língua, música e
literatura, ganhava um PAI por imposição política. Explica claramente as razões
desse primeiro acto do poder nas ilhas uma frase atribuída ao filósofo,
economista e sociólogo alemão Karl Marx: “Se você conseguir isolar as
pessoas de sua história, elas poderão ser facilmente persuadidas”. O
partido único durou 15 anos e só terminou com a chamada terceira vaga da
democracia que deitou abaixo, nos fins dos anos oitenta e início de noventa,
regimes autoritários e totalitários em todos os continentes.
Com
a adopção da Constituição de 1992, Cabo Verde erigiu-se numa república não
baseada em sonhos ou projectos de poder de alguns, mas sim num sistema de
princípios e valores que tem o seu fundamento no respeito pela dignidade humana
e no reconhecimento da inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos
individuais. As democracias liberais e constitucionais, com os seus valores de
pluralismo, tolerância e de promoção da inclusão têm demonstrado que é possível
fortalecer a ideia de nação, conviver com o multiculturalismo e desenvolver o
espírito cosmopolita sem comprometer a liberdade e a prosperidade. Não há,
portanto, necessidade de se inspirar em figuras históricas com lastro
ideológico datado para reforçar os laços necessários à construção do futuro
comum. É preciso não mais cortar o povo da sua história porque ninguém mais o
embala com estórias para lhe roubar a liberdade. Humberto Cardoso – Cabo Verde
in “Expresso das Ilhas”
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