Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 10 de maio de 2019

Nelson Urt: do jornalismo à ficção

                                                        


                                                          I
Depois de uma carreira de três décadas em grandes veículos de comunicação de São Paulo, como O Estado de S.Paulo, revista Placar (Editora Abril),  Diário Popular e ESPN Brasil, entre outros, o jornalista Nelson Urt, 65 anos, voltou em 2004 para a sua Ladário natal, antigo distrito e hoje cidade vizinha a Corumbá, no Pantanal do Estado do Mato Grosso do Sul, onde continuou a exercer sua profissão nas redações do Diário Corumbaense e do Correio de Corumbá e como autônomo, além de dedicar-se aos estudos acadêmicos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

A par disso, em fevereiro de 2019, decidiu criar uma editora, a Maria Preta Cartonera, pela qual acaba de lançar Amor e Morte em Tempos de Chumbo, que reúne um conto inédito e crônicas, além de poesias e artigos escritos ao longo dos últimos dez anos. Juntamente com o livro de Urt, a Maria Preta Cartonera lançou Paixão e Morte no Bordel, com contos dos jornalistas e historiadores Luiz Fernando Licetti, Silas de Almeida e Nelson Urt.

O mergulho de Urt na ficção, porém, não deixa de ser um retrato bem acabado de uma realidade vivida por jornalistas e outros intelectuais, de modo geral, na cidade de São Paulo nos anos 60 e 70, durante os tempos de chumbo provocados pelo regime militar (1964-1985). Com um texto enxuto e pacientemente elaborado de quem dedicou os seus melhores anos à escrita de reportagens na área esportiva, o jornalista, agora ficcionista, reconstitui no conto que dá título ao livro as peripécias de Marcus, uma espécie de alter ego, fotógrafo do Diário da Noite, periódico do empresário Assis Chateaubriand (1892-1968), dono do conglomerado Diários Associados, magnata das comunicações entre o final de 1930 e o começo da década de 1960.

À época da história recuperada por Urt, Chateaubriand, advogado e membro da Academia Brasileira de Letras, já havia desaparecido e seu império jornalístico começava a desabar para dar lugar a outro, o do empresário Roberto Marinho (1904-2003), dono do jornal O Globo, do Rio de Janeiro, e da Rede Globo de Televisão. Nas ruas, o que respirava eram tempos de angústia, com perseguição aos inimigos do regime, como o jornalista Juca, chefe de reportagem da revista Placar, formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), que fora detido, pois acusado de pertencer a um movimento de esquerda. Juca, o amigo de Marcus, por pouco não teria tido o destino do jornalista Vladimir Herzog (1937-1975), diretor de jornalismo da TV Cultura, emissora estatal do governo de São Paulo, que seria torturado até à morte nas dependências do órgão de repressão.

“Outros suspeitos de subversão sentiram na pele os horrores dos métodos dos torturadores, que aplicavam choque elétrico, queimavam o corpo com ponta de cigarro, davam bofetões no rosto e expunham a vítima aos limites da resistência afogando-a em baldes d´água”, descreve o autor, reconstituindo os passos do fotógrafo Marcus, agora também preocupado com a sua amiga Rosana, igualmente jornalista e perseguida política, com quem costumava dançar na pista do Bar Avenida, no centro da capital paulista, ao som de blues e jazz. Descendente de ucranianos, RosaYushchenko, porém, teria melhor sorte: conseguiria embarcar para Londres, onde reconstituiria a vida longe de Marcus, mas com uma lembrança inesquecível e palpável, o filho que nasceria daquela relação fortuita.

                                                           II
Entre as crônicas, uma que se destaca é “Na solidão das ruas, o Natal de Rosinha”, em que Urt reconstitui a vida de uma moradora de rua, que sobrevive do lixo que sobra da sociedade de consumo, o que mostra a preocupação do autor com os excluídos. Aliás, o próprio autor confessa sua fixação “em perseguir incansavelmente a contestação, a controvérsia e a reconstrução da história, tentando quebrar paradigmas, tabus e preconceitos”, como observa na crônica que encerra o livro, “Dez anos de jornalismo, história e literatura”. Por isso, para definir o autor e suas peças literárias, nada melhor que as suas próprias palavras: “(...) Busco publicar aquilo que eleve a alma e defenda a dignidade do ser humano, e que possa contribuir para um mundo melhor e mais justo”.

Essa preocupação se vê no olhar terno e, ao mesmo tempo, revoltado com que o jornalista e agora ficcionista dirige aos poucos indígenas que não foram dizimados pela civilização ocidental e ainda habitam as terras do Pantanal, dos quais procura recuperar suas histórias. “Fico feliz quando converso com Dona Dalva, o cacique Severo e outros guatós que, vindos da aldeia Uberaba, ancoram o barco no porto de Corumbá”, confessa, lembrando ainda que os bairros negros de Corumbá, como Saroba, ainda escondem verdades sobre a escravidão na região, mas que “aos poucos vão saindo da escuridão e ganhando as páginas dos livros”, graças à leitura das poesias de Lobivar Matos (1915-1947) e de Benedito C. G. Lima (1949), “poeta da resistência”, jornalista, historiador, trovador e fundador do movimento negro em Corumbá, autores que hoje são objeto de estudo do jornalista/acadêmico.

                                               III
Criada por Nelson Urt em Ladário, a Maria Preta Cartonera Editora foi inspirada nos projetos de livros artesanais com capa de papelão (daí a origem  castelhana do nome cartón), criados a partir de 2002 como uma saída para a grave crise editorial na Argentina e que se propagaram mundialmente como literatura underground (ou subterrânea), especialmente na Espanha, México, Bolívia, Chile e Peru.

Segundo o material de divulgação preparado por Jota Etcheverria, da Navepress, em Mato Grosso do Sul, o maior representante desse tipo de literatura autônoma, que sobrevive fora dos grandes mercados livreiros, é Douglas Diegues, autor de poesias escritas em “portunhol selvagem” e criador de Yiyi Jabo Cartonera, em Ponta Porã-MS. No Brasil, segundo Etcheverria, a Vento Norte Cartonero, de Santa Maria-RS, é uma das referências nesta linha literária que tem por objetivo despertar o gosto pelo livro e pela leitura entre as grandes massas, facilitando o acesso às obras literárias por meio de oficinas e rodas de conversa nas escolas. 

Como conta Urt na apresentação que fez para o seu livro, a fonte inspiradora para o nome da editora artesanal foi uma catadora de lixo que vive nas ruas de Corumbá com um lenço branco na cabeça, sem documento, sem nome e sobrenome. É conhecida como Maria Preta. Ao tentar entrevistá-la, Urt diz que recebeu apenas um sorriso doce e silencioso, como o de uma criança, que nunca mais conseguiu esquecer. Diz que, certa vez, o dono de uma empresa de lixo reciclável lhe contou que nunca havia comprado nada de Maria Preta, mesmo porque o que ela colhe não seria para vender. Lembra ainda que nunca os funcionários especializados em população de rua conseguiram atraí-la para passar uma noite no centro de acolhimento e que, por isso, seu cadastro continua incompleto.

Segundo Urt, Maria Preta gosta mesmo é da solidão das ruas, “onde seu corpo curvado espalha a ternura dos que nada devem, nada temem, nada perdem”. E conclui: “É o eterno caminhar para o nada, que podemos interpretar como um caminho espiritual. Ou pura poesia”. Por isso, o jornalista resolveu dar o nome pelo qual aquela figura popular é conhecida à editora cartonera que fundou, que segue o exemplo da congênere Dulcineia Catadora, criada em 2007 em São Paulo e que funciona dentro de uma cooperativa de reciclagem, aliando a literatura à ação social, pois possibilita aos próprios catadores de lixo a elaboração de seus livros. A capa do livro é sempre moldada com sobras de caixas de papelão atirados ao lixo.  Os livros da Maria Preta Cartonera estão à venda por R$ 18 aos sábados, das 9 às 11 horas, dentro do projeto Passa na Praça que a Arte te Abraça, na Praça Independência, em Corumbá, mas podem ser obtidos também por via postal.

Em Santos-SP,  em 2012, por iniciativa do poeta Ademir Demarchi, editor da conceituada Revista Babel, foi lançada a Sereia Ca(n)tadora, que já editou vários livros, como A morte de Herberto Helder e outros poemas, de Marcelo Ariel, Hi-Kretos, de Paulo de Toledo, Olho por olho, de Regina Alonso, e O amor é lindo, do próprio Demarchi, entre outros, todos feitos de forma artesanal, com capas pintadas uma a uma em papelão reciclado.

                                               IV
Nelson Urt cursou Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social Casper Libero, em São Paulo, e graduou-se em História na UFMS, campus Pantanal, em Corumbá. Em 2018, começou a fazer o mestrado de Estudos Fronteiriços da UFMS, com um projeto de pesquisa sobre os dois livros e influências deixados pelo poeta corumbaense Lobivar Matos.

Urt é ainda autor do livro Estação das Mariposas (e-book no site da Amazon) e redator do blog Nave Pantanal (nelsonurt.blogspot.com.br), que, desde 2008, reúne crônicas e notas de seu dia a dia no jornalismo. Desenhista e letrista de origem, escreve e ilustra manualmente títulos usando guache e nanquim. Adelto Gonçalves - Brasil

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Amor e Morte em Tempos de Chumbo, de Nelson Urt. Ladário-MS: Maria Preta Cartonera, 72  páginas, R$ 22 (preço já acrescido do frete, com depósito no Banco Brasil, agência 0014, c/c 42.113-8), 2019. E-mail: nelsonurt@gmail.com
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Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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