I
Depois
de uma carreira de três décadas em grandes veículos de comunicação de São
Paulo, como O Estado de S.Paulo,
revista Placar (Editora Abril), Diário
Popular e ESPN Brasil, entre outros, o jornalista Nelson Urt, 65 anos,
voltou em 2004 para a sua Ladário natal, antigo distrito e hoje cidade vizinha a
Corumbá, no Pantanal do Estado do Mato Grosso do Sul, onde continuou a exercer
sua profissão nas redações do Diário
Corumbaense e do Correio de Corumbá e como autônomo, além de dedicar-se
aos estudos acadêmicos na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).
A
par disso, em fevereiro de 2019, decidiu criar uma editora, a Maria Preta
Cartonera, pela qual acaba de lançar Amor
e Morte em Tempos de Chumbo, que reúne um conto inédito e crônicas, além de
poesias e artigos escritos ao longo dos últimos dez anos. Juntamente com o
livro de Urt, a Maria Preta Cartonera lançou Paixão e Morte no Bordel, com contos dos jornalistas e
historiadores Luiz Fernando Licetti, Silas de Almeida e Nelson Urt.
O
mergulho de Urt na ficção, porém, não deixa de ser um retrato bem acabado de
uma realidade vivida por jornalistas e outros intelectuais, de modo geral, na
cidade de São Paulo nos anos 60 e 70, durante os tempos de chumbo provocados
pelo regime militar (1964-1985). Com um texto enxuto e pacientemente elaborado
de quem dedicou os seus melhores anos à escrita de reportagens na área esportiva,
o jornalista, agora ficcionista, reconstitui no conto que dá título ao livro as
peripécias de Marcus, uma espécie de alter
ego, fotógrafo do Diário da Noite,
periódico do empresário Assis Chateaubriand (1892-1968), dono do conglomerado Diários Associados, magnata das
comunicações entre o final de 1930 e o começo da década de 1960.
À
época da história recuperada por Urt, Chateaubriand, advogado e membro da
Academia Brasileira de Letras, já havia desaparecido e seu império jornalístico
começava a desabar para dar lugar a outro, o do empresário Roberto Marinho
(1904-2003), dono do jornal O Globo,
do Rio de Janeiro, e da Rede Globo de Televisão. Nas ruas, o que respirava eram
tempos de angústia, com perseguição aos inimigos do regime, como o jornalista
Juca, chefe de reportagem da revista Placar,
formado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), que fora
detido, pois acusado de pertencer a um movimento de esquerda. Juca, o amigo de
Marcus, por pouco não teria tido o destino do jornalista Vladimir Herzog
(1937-1975), diretor de jornalismo da TV Cultura, emissora estatal do governo
de São Paulo, que seria torturado até à morte nas dependências do órgão de
repressão.
“Outros
suspeitos de subversão sentiram na pele os horrores dos métodos dos
torturadores, que aplicavam choque elétrico, queimavam o corpo com ponta de
cigarro, davam bofetões no rosto e expunham a vítima aos limites da resistência
afogando-a em baldes d´água”, descreve o autor, reconstituindo os passos do
fotógrafo Marcus, agora também preocupado com a sua amiga Rosana, igualmente
jornalista e perseguida política, com quem costumava dançar na pista do Bar
Avenida, no centro da capital paulista, ao som de blues e jazz. Descendente
de ucranianos, RosaYushchenko, porém, teria melhor sorte: conseguiria embarcar
para Londres, onde reconstituiria a vida longe de Marcus, mas com uma lembrança
inesquecível e palpável, o filho que nasceria daquela relação fortuita.
II
Entre
as crônicas, uma que se destaca é “Na solidão das ruas, o Natal de Rosinha”, em
que Urt reconstitui a vida de uma moradora de rua, que sobrevive do lixo que
sobra da sociedade de consumo, o que mostra a preocupação do autor com os
excluídos. Aliás, o próprio autor confessa sua fixação “em perseguir
incansavelmente a contestação, a controvérsia e a reconstrução da história,
tentando quebrar paradigmas, tabus e preconceitos”, como observa na crônica que
encerra o livro, “Dez anos de jornalismo, história e literatura”. Por isso,
para definir o autor e suas peças literárias, nada melhor que as suas próprias
palavras: “(...) Busco publicar aquilo que eleve a alma e defenda a dignidade
do ser humano, e que possa contribuir para um mundo melhor e mais justo”.
Essa
preocupação se vê no olhar terno e, ao mesmo tempo, revoltado com que o
jornalista e agora ficcionista dirige aos poucos indígenas que não foram
dizimados pela civilização ocidental e ainda habitam as terras do Pantanal, dos
quais procura recuperar suas histórias. “Fico feliz quando converso com Dona
Dalva, o cacique Severo e outros guatós que, vindos da aldeia Uberaba, ancoram
o barco no porto de Corumbá”, confessa, lembrando ainda que os bairros negros
de Corumbá, como Saroba, ainda escondem verdades sobre a escravidão na região,
mas que “aos poucos vão saindo da escuridão e ganhando as páginas dos livros”,
graças à leitura das poesias de Lobivar Matos (1915-1947) e de Benedito C. G.
Lima (1949), “poeta da resistência”, jornalista, historiador, trovador e
fundador do movimento negro em Corumbá, autores que hoje são objeto de estudo
do jornalista/acadêmico.
III
Criada
por Nelson Urt em Ladário, a Maria Preta Cartonera Editora foi inspirada nos
projetos de livros artesanais com capa de papelão (daí a origem castelhana do nome cartón), criados a partir de 2002 como uma saída para a grave crise
editorial na Argentina e que se propagaram mundialmente como literatura underground (ou subterrânea),
especialmente na Espanha, México, Bolívia, Chile e Peru.
Segundo
o material de divulgação preparado por Jota Etcheverria, da Navepress, em Mato
Grosso do Sul, o maior representante desse tipo de literatura autônoma, que
sobrevive fora dos grandes mercados livreiros, é Douglas Diegues, autor de
poesias escritas em “portunhol selvagem” e criador de Yiyi Jabo Cartonera, em
Ponta Porã-MS. No Brasil, segundo Etcheverria, a Vento Norte Cartonero, de
Santa Maria-RS, é uma das referências nesta linha literária que tem por
objetivo despertar o gosto pelo livro e pela leitura entre as grandes massas,
facilitando o acesso às obras literárias por meio de oficinas e rodas de
conversa nas escolas.
Como
conta Urt na apresentação que fez para o seu livro, a fonte inspiradora para o
nome da editora artesanal foi uma catadora de lixo que vive nas ruas de Corumbá
com um lenço branco na cabeça, sem documento, sem nome e sobrenome. É conhecida
como Maria Preta. Ao tentar entrevistá-la, Urt diz que recebeu apenas um
sorriso doce e silencioso, como o de uma criança, que nunca mais conseguiu
esquecer. Diz que, certa vez, o dono de uma empresa de lixo reciclável lhe
contou que nunca havia comprado nada de Maria Preta, mesmo porque o que ela
colhe não seria para vender. Lembra ainda que nunca os funcionários
especializados em população de rua conseguiram atraí-la para passar uma noite
no centro de acolhimento e que, por isso, seu cadastro continua incompleto.
Segundo
Urt, Maria Preta gosta mesmo é da solidão das ruas, “onde seu corpo curvado
espalha a ternura dos que nada devem, nada temem, nada perdem”. E conclui: “É o
eterno caminhar para o nada, que podemos interpretar como um caminho
espiritual. Ou pura poesia”. Por isso, o jornalista resolveu dar o nome pelo
qual aquela figura popular é conhecida à editora cartonera que fundou, que
segue o exemplo da congênere Dulcineia Catadora, criada em 2007 em São Paulo e
que funciona dentro de uma cooperativa de reciclagem, aliando a literatura à
ação social, pois possibilita aos próprios catadores de lixo a elaboração de
seus livros. A capa do livro é sempre moldada com sobras de caixas de papelão
atirados ao lixo. Os livros da Maria
Preta Cartonera estão à venda por R$ 18 aos sábados, das 9 às 11 horas, dentro
do projeto Passa na Praça que a Arte te Abraça, na Praça Independência, em
Corumbá, mas podem ser obtidos também por via postal.
Em
Santos-SP, em 2012, por iniciativa do
poeta Ademir Demarchi, editor da conceituada Revista Babel, foi lançada a Sereia Ca(n)tadora, que já editou
vários livros, como A morte de Herberto
Helder e outros poemas, de Marcelo Ariel, Hi-Kretos, de Paulo de Toledo, Olho
por olho, de Regina Alonso, e O amor
é lindo, do próprio Demarchi, entre outros, todos feitos de forma
artesanal, com capas pintadas uma a uma em papelão reciclado.
IV
Nelson
Urt cursou Jornalismo na Faculdade de Comunicação Social Casper Libero, em São
Paulo, e graduou-se em História na UFMS, campus Pantanal, em Corumbá. Em 2018,
começou a fazer o mestrado de Estudos Fronteiriços da UFMS, com um projeto de
pesquisa sobre os dois livros e influências deixados pelo poeta corumbaense
Lobivar Matos.
Urt
é ainda autor do livro Estação das
Mariposas (e-book no site da Amazon) e redator do blog Nave
Pantanal (nelsonurt.blogspot.com.br), que, desde 2008, reúne crônicas e
notas de seu dia a dia no jornalismo. Desenhista e letrista de origem, escreve
e ilustra manualmente títulos usando guache e nanquim. Adelto Gonçalves - Brasil
Amor e Morte
em Tempos de Chumbo, de Nelson Urt. Ladário-MS: Maria Preta
Cartonera, 72 páginas, R$ 22 (preço já
acrescido do frete, com depósito no Banco Brasil, agência 0014, c/c 42.113-8), 2019.
E-mail: nelsonurt@gmail.com
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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