I
A exemplo do que já fizera em Dicionário de personagens da obra de José Saramago (Blumenau-SC:
Editora da Fundação Universidade Regional de Blumenau – EdiFurb, 2012), levantamento
de 354 protagonistas que perpassam os romances e peças teatrais do Prêmio Nobel
de Literatura de 1998, feito a partir de
pesquisa que durou 15 anos e contou com a colaboração de mais de oito dezenas
de seus alunos, a professora, contista, ensaísta e crítica Salma Ferraz acaba
de lançar Dicionário de personagens da obra
de Paulina Chiziane (São Paulo: Todas as Musas, 2019), publicado com
recursos do Ministério da Cultura, através da Lei de Incentivo à Cultura.
A
obra é resultado de um trabalho coletivo que durou cinco anos e foi realizado
por uma equipe coordenada pela professora Salma Ferraz, incluindo 53 alunos de
graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com o
auxílio de duas alunas da Pós-Graduação em Literatura Brasileira da mesma UFSC,
Patrícia Leonor Martins e Márcia Mendonça Alves Vieira. Como diz na
apresentação que escreveu para este livro Tania Macedo, professora titular de
Literaturas Africanas de Língua Portuguesa e diretora do Centro de Estudos
Africanos da Universidade de São Paulo (USP), este trabalho constitui uma
espécie de “mapa” da escrita da autora moçambicana Paulina Chiziane (1955) que
vai muito além daquilo que o título da obra deixa entrever.
Além
de relacionar personagens que aparecem em vários livros de Paulina, o Dicionário traz uma fortuna crítica e
uma biografia da autora, bem como duas entrevistas concedidas por ela para
órgãos de imprensa do Brasil e do exterior e dois ensaios de especialistas. Um
dos responsáveis por um desses ensaios é este articulista, autor de “O feminismo
negro de Paulina Chiziane”, originalmente publicado em Passagens para o Índico: encontros brasileiros com a literatura
moçambicana, de Rita Chaves e Tania Macedo, organizadoras (Maputo:
Marimbique Conteúdos e Publicações, 2012, pp. 33-41). O outro ensaio é “Adão e
Eva na obra de Paulina Chiziane”, de António Manuel Ferreira, professor
associado com agregação do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade
de Aveiro. Ao final, o livro traz ainda uma fortuna crítica de textos
acadêmicos dedicados à obra da autora moçambicana.
Como
Paulina Quiziane é autora de mais de dez livros publicados em Portugal e
Moçambique, incluindo obras em co-autoria (dois volumes de ensaios e um livro
de poemas), as autoras decidiram concentrar os estudos nos cinco romances da
escritora: Balada de amor ao vento
(1990), Ventos do apocalipse (1993), Sétimo juramento (2000), Niketche: uma história de poligamia (2002) e O alegre canto da perdiz (2008), além dos personagens dos contos
“As andorinhas” (2013) e “As mãos dos pretos” do livro As Cicatrizes do amor, este último incluído também na Antologia do conto moçambicano,
organizado por Nelson Saúte (2007).
II
Para
quem não sabe, é preciso que se diga que Paulina, entre as escritoras de todo o
mundo, é uma das vozes mais fortes e lúcidas em favor da emancipação feminina, pois
denuncia com todas as letras “as ideologias ditadas pelo poder sob a máscara da
criação divina que permitem ao homem ser governador dos destinos da mulher”. No
artigo “Eu, mulher... por uma nova visão do mundo”, que serve de apresentação
para este livro, a escritora conta que foi a condição social da mulher que a
inspirou a escrever seus contos e romances.
Ela
conta que, quando começou a escrever, muitas pessoas a consideraram uma mulher
frustrada, desesperada, destituída de razão. “Foi um momento terrível para mim.
Mas, por outro lado, estas atitudes tiveram um efeito positivo porque
forçaram-me a demonstrar pela prática que as mulheres podem escrever e escrever
bem”. Aliás, como este articulista já escreveu há tempos, a literatura
produzida por mulheres mostra outros ângulos que os escritores homens não
conseguem ver.
Nascida
em Manjacaze, na província de Gaza, região Sul de Moçambique, Paulina viveu no
campo até os sete anos de idade, quando se mudou para os subúrbios da cidade de
Maputo, onde frequentou estudos superiores de Linguística na Universidade
Eduardo Mondlane, sem concluí-los. Nasceu numa família de protestantes onde se
falava as línguas chope e ronga. Aprendeu a língua portuguesa na escola de uma
missão católica. Participou ativamente da política à época da independência de
seu país como membro da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), tendo
sido eleita em 1994. Depois, trocou a vida partidária para se dedicar à escrita
e ao trabalho na Cruz Vermelha. Hoje, vive em Matola, cidade próxima a Maputo, onde
escreveu sua obra debaixo de estrondos e ameaças de morte por causa de
confrontos entre tropas governamentais e rebeldes.
Em
Balada de amor ao vento, seu primeiro
romance, Paulina recupera a história dos povos rongas e chopes, que ouviu em
sua infância, principalmente pela voz de sua avó. A narrativa ocorre exatamente
nessa região, a de Gaza, considerada a mais machista do Moçambique, onde a
mulher, além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao marido tem de
fazê-lo de joelhos. Por isso, pode-se dizer que a literatura que Paulina produz
traz o olhar do feminismo negro, que é diferente do feminismo branco,
especialmente o europeu, porque muito mais trágico.
III
Entre
as centenas de personagens da obra Paulina, uma das mais carismáticas é Rami,
narradora e protagonista de Niketche: uma
história de poligamia, livro que recebeu o Prêmio José Craveirinha de 2003.
Tanto que, entre todos os verbetes, é o que mais espaço ocupa no livro (cinco
páginas). O nome verdadeiro de Rami é Rosa Maria, uma mulher do Sul, bela e
inteligente, que durante a juventude havia sido disputada por vários homens,
mas que se casou com Tony que, seguindo a tradição local, sempre teve muitas
mulheres, ainda que a esposa sempre lhe tivesse sido fiel.
Neste
livro, aliás, o leitor pode encontrar o ponto central da literatura
questionadora do mundo produzida por Paulina. Aqui se pode ler o seguinte: “Até na Bíblia a mulher não presta. Os
santos, em suas pregações antigas, dizem que a mulher nada vale, a mulher é um
animal nutridor de maldade, fonte de todas as discussões, querelas e
injustiças. É verdade. Se podemos ser trocadas, vendidas, torturadas, mortas,
escravizadas, encurraladas em haréns como gado, é porque não fazemos falta
nenhuma. Mas se não fazemos falta nenhuma, por que é que Deus nos colocou no
mundo? E esse Deus, se existe, por que nos deixa sofrer assim? (...)”.
IV
Com
mais de uma dezena de livros publicados, Salma Ferraz, professora titular da
UFSC em Florianópolis, é graduada em Letras pelas Faculdades Integradas
Hebraico-Brasileira Renascença de São Paulo (1987), com mestrado (1995) e
doutorado (2002) pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho
(Unesp). Foi bolsista da Fundación Carolina na Universidad Autónoma de Madri
(2009). Fez pós-doutoramento na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em
2013. Dirige o Núcleo de Estudos Comparados entre Teologia e Literatura (Nutel)
da UFSC.
É
autora de O quinto evangelista: o desevangelho
segundo José Saramago (Brasília: UNB, 1988); Maria Madalena: das páginas da Bíblia para a ficção, org.
(Maringá-PR: Eduem, 2011); As malasartes
de Lúcifer: textos críticos de Teologia e Literatura, org. (Londrina-PR:
Editora da Universidade Estadual de Londrina, 2012); As faces de Deus na obra de um ateu: José Saramago (Blumenau-PR: EdiFurb,
2012); Dicionário machista: três mil anos
de frases cretinas contra as mulheres
(São Paulo: Jardim dos Livros, 2013); Sobre
o vampirismo: de Drácula a crepúsculo: a saga do vampiro na cultura ocidental,
org. (São Bernardo do Campo-SP: Todas as Musas, 2017); e Teologia do riso: humor e mau humor no Cristianismo, org. (João
Pessoa-PB: Eduepb, 2017), entre outras obras.
Patrícia
Leonor Martins, graduada em Letras pela UFSC (2005), tem mestrado em Literatura
(2017) e é doutoranda em Literatura na UFSC. Foi professora nas disciplinas de
Comunicação e Expressão e Metodologia Científica do Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), de 2011 a 2013. Pesquisadora
do Nutel e bolsista do programa da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (Capes), elabora estudo sobre a diabo enquanto personagem na
literatura russa.
Márcia
Mendonça Alves Vieira, graduada em Letras pela UFSC, é mestranda na mesma
universidade. Pesquisadora das obras e das vidas de Friederich Nietzsche,
Walter Benjamin e Martim Heidegger, é revisora crítica e textual da Revista UOX, do curso de Letras do
Centro de Comunicação e Expressão da UFSC. Tem contos e poemas publicados na Revista Mafuá (2016). Adelto Gonçalves - Brasil
__________________________________
Dicionário de personagens da obra de Paulina
Chiziane, de
Salma Ferraz, Patrícia Leonor Martins e Márcia Mendonça Alves Vieira. São Paulo: Editora Todas as Musas, 1ª ed.,
320 págs., 2019. E-mail: todasasmusas@gmail.com
Site: www.todasasmusas.org
______________________________________________________
Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em terras d´el-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os vira-latas
da madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário