O
ataque terrorista contra cristãos e turistas no Sri Lanka deixou-nos o amargo
na boca que todo o terror deixa. Talvez poucas vezes pensemos naquela ilha — e,
no entanto, há muito de português por lá…
A
terra dos Fonsekas e Fernandos
Hoje, chamamos «Sri Lanka»
àquele país. É dos poucos países sem um nome próprio em português (as formas
aportuguesadas «Sri Lanca» ou «Seri Lanca» são praticamente desconhecidas). É
um país estrangeiro como poucos.
E, no entanto, se aterramos
nessa ilha em forma de lágrima e folhearmos uma lista telefónica, encontramos
apelidos como: Silva, Fernando, Pereira, Almeida, Costa, Fonseka…
São nomes relativamente
comuns. O actual governo do Sri Lanka tem um ministro de apelido Fernando e
outro de apelido «Perera» (uma variante de «Pereira»).
Esta ilha distante tem por lá
mais de português do que pensamos à primeira vista. Não nos esqueçamos: logo na
primeira estrofe d’Os Lusíadas, há uma referência à Taprobana, que serve para
apontar quão longe chegaram os Portugueses. A Taprobana, como aprendemos na
escola, é a ilha onde está esse país a que hoje chamamos Sri Lanka. Também não
convém esquecer que há um antigo nome para a ilha, de sonoridade bem mais
portuguesa: Ceilão.
Portugueses
na Taprobana
Portugal já lá esteve metido
até aos cabelos. O nosso reino governou parte da ilha, andou metido em guerras
internas, levou para lá muita gente e deixou por alguns vestígios — a começar
pelos tais nomes. Mas não foram só os nomes. Saímos de Ceilão no século XVII e,
no entanto, algumas famílias ainda usam, em casa, um crioulo português.
O crioulo português do Sri
Lanka já quase desapareceu, sob o peso das duas línguas oficiais — cingalês e
tâmil — e do inglês. Já ninguém o escreve, mas ainda há umas dezenas de pessoas
que o falam. (Esta página descreve um pouco a língua e os esforços para a
preservar.)
Reparemos na frase «Vosse
quanto vez ja caza?» — significa «Quantas vezes já se casou?».
A sensação é de português
malfalado, mas o que temos é, na verdade, um sistema gramatical completo e
sistemático.
Por exemplo, o tempo e o modo
do verbo, em vez de serem assinalados pela flexão verbal, são indicados por
partículas próprias. O passado é apontado pela partícula «ja» (como na frase
acima), o presente pela partícula «te» e o futuro pela partícula «lo». Assim,
«ja olha» significa «olhei», «te folga» significa «folgam» e «lo leva»
significa «levarei» (os exemplos que usei estão nesta página).
O
que é um crioulo?
Este é um dos muitos crioulos
de base portuguesa espalhados pelo mundo. Os crioulos são línguas
interessantíssimas — registam em forma de gramática e léxico o contacto entre
povos.
A palavra «contacto» talvez
seja um pouco limpa de mais para designar tudo o que esconde. Falamos de
comércio, guerras, tratados, escravos… No caso do crioulo português do Sri
Lanka, a língua surgiu não só no seio das famílias mistas, como também das
conversas entre as crianças e os escravos que para lá levámos.
Quando pessoas com línguas
diferentes entram em contacto, o resultado raramente é a incompreensão mútua.
Ou melhor, é habitual que haja essa barreira inicial, mas não dura muito:
rapidamente, os dois lados aprendem pedaços da língua do outro lado, criando —
se o contacto for continuado — aquilo que os linguistas chamam de pidgin, ou seja, uma língua de contacto.
Não é a língua materna de ninguém: serve apenas para as situações de
comunicação entre pessoas de línguas diferentes.
Pois, se em determinado
território esse pidgin se torna tão
importante que as famílias começam a falá-lo com os filhos, haverá uma geração
que aprende esse falar como língua materna. É aí que surge uma nova língua —
que chamamos, habitualmente, «crioulo». Ou seja, a palavra «crioulo» não
designa uma língua em particular, mas antes um tipo de língua.
Quando o cérebro das crianças
aprende o crioulo, aprende-o como qualquer outra língua humana — para um
falante dum crioulo, a sua língua é tão completa e útil como qualquer outra
língua para os seus falantes. É uma língua que permite dizer tudo o que quisermos,
com gramática bem definida, léxico e tudo o mais de que se faz um idioma.
O crioulo mais falado e
conhecido no mundo é o cabo-verdiano, que deverá, mais cedo do que tarde,
tornar-se numa das línguas oficiais de Cabo Verde. Há, aliás, um crioulo de base
portuguesa que já é oficial nalgumas ilhas das Caraíbas: o papiamento.
Não devemos cair no erro de
achar que um crioulo é uma língua menor. Afinal, há quem diga que o inglês
passou por fases de crioulização — muito do que é hoje a língua dos ingleses
nasceu do contacto entre anglo-saxões e viquingues e, séculos depois, entre
anglo-saxões e normandos.
A teoria da origem crioula do
inglês é controversa. No entanto, pensemos na nossa língua. Antes do latim de
onde veio o português, tivemos o itálico; antes do itálico, o indo-europeu;
antes do indo-europeu, outras línguas, que não conhecemos, numa sucessão que
vem do fundo dos muitos milénios desde a origem da linguagem humana. É bem
provável que, num qualquer momento da história das línguas que vieram a dar ao
português, tenha havido um crioulo metido ao barulho, um povo que entrou em
contacto com outro povo, nascendo daí uma outra língua, diferente das duas
línguas-mãe…
Palavras
portuguesas além da Taprobana
Pois nós, que andámos pelo
mundo inteiro, fomos grandes criadores de crioulos — o que não implica um
talento especial, apenas a vontade de falar com quem encontramos, por boas e
más razões. Seja como for, as palavras que designam os crioulos em muitas
línguas europeias nasceram da nossa palavra «crioulo», com origem na palavra
«cria» — o que talvez se ligue às crianças
da casa que aprendiam a língua ou aos criados
que a falavam… Crias, crianças, criados, crioulos…
Uma língua de crianças e
criados, falada por portugueses e cingaleses, com séculos de História. Está, no
entanto, e ao contrário de outros crioulos, a desaparecer.
Ora, mesmo a língua mais
falada na ilha — o cingalês — tem mais de uma centena de palavras portuguesas.
Quando olhamos para a língua escrita a sensação é, claro, de estranheza. As
letras são muito diferentes das nossas. A palavra para escola é, por exemplo, «ඉස්කෝලය». E,
no entanto, se ouvirmos a palavra, temos «iskōlaya», que teve origem no português.
Há palavras de origem portuguesa muito comuns, como «sumānaya» («semana»),
«avuelā» (avó paterna) e «baila» — que é o nome de um estilo musical típico do
Sri Lanka, muito influenciado pela música portuguesa.
Na ilha, há de facto muitos
outros vestígios portugueses: a música, os apelidos, algumas tradições e a
religião de uma minoria, que se viu agora atacada. Marco Neves – Portugal in "Certas Palavras"
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