Começamos
nos referindo ao filme de Alex Garland, Guerra Civil, mesmo porque um dos
atores principais é o ator brasileiro Wagner Moura e por mostrar um grupo de
jornalistas acostumados com coberturas perigosas em busca de um furo. Mas
principalmente por tratar de um risco iminente: o de uma verdadeira guerra
civil começar nos Estados Unidos, depois de novembro. O próprio Donald Trump
reforçou essa probabilidade numa de suas frases pronunciadas ao sair do
julgamento, a que está sendo submetido por seu gosto pelo sexo pago, fraqueza
que não incomoda seus seguidores fundamentalistas.
O
filme, cujo roteiro já havia sido escrito há quatro anos, acabou se
beneficiando do atraso da produção causado pelo surto do Covid, e estreou em
plena polarização da política norte-americana, quando pelo menos dois livros já
haviam tratado de uma secessão nos EUA. Quem leu os livros ou acompanhou as
entrevistas concedidas por seus autores saiu frustrado com o filme, onde não
existe nenhuma informação sobre a origem da guerra nem sobre quem são os
contendores e porque estão se matando.
Não
é um filme no qual existe debate de ideias, mas apenas ações, no caso
tiroteios, bombas, helicópteros e o trajeto do carro no qual viajam os
jornalistas, de Atlanta a Washington, em meio a destruições e riscos. Vão
tentar uma entrevista com um presidente prestes a ser deposto, num terceiro
mandato inexistente na realidade americana, onde também seria improvável uma
anunciada união entre Califórnia e Texas.
Deixando
de lado essa ficção guerreira, da qual não se sabe quais as razões
determinantes, vamos ao risco real contado no livro A Próxima Guerra Civil! *
pelo canadense Stephen Marche, bem sintetizado por ele mesmo nas entrevistas
concedidas por ocasião do lançamento. Com um adendo, o livro foi escrito antes
da atual guerra de Israel contra o Hamas e da impressão dominante de uma
próxima vitória do ex-presidente Donald Trump contra Biden nas eleições de
novembro nos EUA.
O
autor nega ser um livro de ficção, mas um ensaio de antevisão baseado em
documentos, entrevistas com políticos de tendências diversas inclusive
milicianos da extrema-direita, militares, funcionários do serviço de
informação, agentes do FBI, etc.. São fatores determinantes do atual clima de
polarização a conspiração política, a politização da Corte Suprema, o declínio
das instituições, o surgimento do supremacismo branco e a transformação do
fundamentalismo religioso evangélico em força política de extrema-direita.
De
acordo com Stephen Marche, já existia um clima de tensão política na posse de
Trump em janeiro de 2017 com a presença de líderes de grupos extremistas como
os Proud Boys e os Oath Keepers. Esse clima se agravou e teve uma primeira
explosão na invasão do Capitólio, em 6 de janeiro de 2021, na tentativa dos
seguidores de Trump de impedir a diplomação dos eleitos a pretexto de fraude
eleitoral.
Outro
sintoma foi a anulação pela Suprema Corte, em 24 de junho do ano passado, da
decisão no caso Roe V. Wade em 1973, que permitia às mulheres abortarem durante
os três primeiros meses da gravidez, abrindo o caminho para uma severa
proibição total do aborto por um grande número de Estados norte-americanos.
Os
grupos de extrema-direita bem armados acreditam em teorias delirantes como
acordos passados pelo governo com extraterrestres e se sentem legitimados por
Trump. Neonazistas procuram se infiltrar nas escolas, instituições, exército,
polícia, utilizando uma tática de normalização de linguagem.
Para
Stephen Marche, a condenação ou não de Trump pela justiça provocará reações. No
caso de condenação e prisão, 40% dos norte-americanos o considerarão como um
prisioneiro político.
Desintegração dos EUA
O
autor novaiorquino Douglas Kennedy não prevê exatamente uma guerra civil mas
massacres e movimentos de populações dentro do atual território até uma
separação por muros dos Estados, com nomes diferentes: Confederação Unida, uma
ditadura religiosa digna da época da Inquisição, e a República Unida, com um
sistema de vigilância tecnológica ultra avançado.
O
título do livro é Et C'est Ainsi Que Nous Vivrons **, mostrando os EUA
geograficamente separados, com o sul conservador, evangélico e fiel às leis
bíblicas a ponto de queimar na fogueira quem não as cumpre. E o norte democrata
vivendo num mundo controlado. Os dois países vivem em luta e se espionam.
Numa
entrevista, Douglas Kennedy conta como teve a ideia do livro num jantar com um
amigo colega de universidade, agora um golden boy da Wall Street, rico e
progressista, favorável aos movimentos feministas e gays. Falaram sobre a
Suprema Corte fundamentalista com os novos ministros nomeados por Trump e que
iriam acabar com o aborto nos EUA, como aconteceu. E num certo momento, o amigo
disse não suportar mais o conservadorismo e reacionarismo desses bandidos do
Midwest que querem decidir o destino de todos e acabar com o modo de vida
laico. E ajuntou - "um dia desses vamos parar de subvencionar essa gente e
nos divorciaremos!"
Para
Douglas Kennedy existem dois EUA que se detestam, e num de seus livros No País
de Deus, ele conta uma viagem aos Estados do Sul, a "chamada cintura de
Deus". Para seu livro, chamado por alguns como história de espionagem, ele
escolheu o ano de 2045 para a secessão norte-americana, cem anos depois da
vitória sobre o nazismo e do começo do domínio global norte-americano. Para
ele, a eleição de Trump em 2016 marcou o início do fim do domínio americano, do
qual a China acabará se aproveitando com a retomada de Taiwan.
Ainda
sobre Trump, o escritor acha alucinante e surrealista ser Donald Trump,
"um bandido e um gangster", o favorito para as eleições de novembro.
Mas isso, segundo ele, deriva da falta de educação do povo alimentado pelo
mundo alternativo da Fox News. Apenas 20% lê jornais e recebe boa instrução,
enquanto a educação pública e a cultura foram desvalorizadas depois da ofensiva
contra o Estado por Ronald Reagan.
Ao
concluir não posso deixar de ter visto muita coincidência com a situação
brasileira, não quanto a uma guerra civil, talvez desejada pelos patriotas
bolsonaristas, porém no risco de uma secessão por alguns Estados do Sul.
Entretanto, isso talvez será evitado com a tragédia ambiental atual, que
reforçará a união nacional e talvez acabe com a predominância do negacionismo
quanto às mudanças climáticas, mudando o quadro político na região, apesar da
pressão mentirosa das fake-news. Os EUA tiveram o 6 de janeiro, nós
tivemos o 8 de janeiro, tanto lá como aqui no Brasil a extrema-direita se
reforçou ao se unir com o fundamentalismo religioso. Uma diferença fundamental,
que nos salvou: o Supremo Tribunal Federal permaneceu independente, ao
contrário do ocorrido nos EUA. Mas uma ameaça existe: a bancada evangélica
entrou com uma proposta de emenda constitucional junto ao presidente da Câmara
Arthur Lyra, para ser proibido todo tipo de aborto, mesmo no caso de incesto e
estupro. Rui Martins – Suíça
______________
Rui Martins é
jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador
do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas,
que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos
emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu Dinheiro sujo da
corrupção, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto
Carlos, A rebelião romântica da Jovem Guarda, em 1966. Foi colaborador do
Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de
Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de
Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso
de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.
*
The Next Civil War, by Stephen Marche, Simon & Schuster UK, tradução
portuguesa pela editora Livros Zigurate
** Et C'est Ainsi Que Nous Vivrons, par Douglas
Kennedy, Édition Belfond - sem tradução portuguesa.
Entrevistas
com Stephen Marche e Douglas Kennedy no jornal suíço Le Temps e outros
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