Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

segunda-feira, 27 de maio de 2024

Raquel Naveira: crônicas que se avizinham da poesia

Em seu novo livro, a autora reúne textos que primam pela sensibilidade e pela emoção

                                                                                                            

                                                          I

Se para o professor Massaud Moisés (1928-2018) “a crônica oscila entre a reportagem e a literatura, entre o relato impessoal, frio e descolorido de um acontecimento trivial, e a recriação do cotidiano por  meio da fantasia”, como se lê em A criação literáriaprosa II (São Paulo, Editora Cultrix, 2015, p.105), o livro Manacá (Guaratinguetá-SP, Editora Penalux, 2021), de Raquel Naveira (1957), não só preenche todos esses requisitos como vai além. Reúne crônicas que se avizinham da poesia, reconstituindo passagens e experiências de uma vida multifacetada, sem perder o lirismo que é a qualidade inata de todo grande poeta. E que a colocam entre os melhores prosadores da literatura brasileira de hoje.

Pantaneira, a cronista mostra-se indelevelmente apegada à flora e a fauna, como o leitor pode intuir a partir do título da obra, Manacá, como deixa claro na crônica de abertura do livro. Trata-se de uma “planta do cerrado, de terra árida, de beleza primitiva”, que tem sido reverenciada por muitos poetas, como Fagundes Varela (1841-1875) e Mário de Andrade (1893-1945), e artistas, como as pintoras Tarsila do Amaral (1886-1973) e Anita Malfatti (1889-1964), e que ainda pode ser vista não só no Pantanal e em outras regiões do Centro-Oeste como na Serra do Mar, entre a cidade de São Paulo e o Litoral, apesar do avanço do agronegócio e suas mazelas.

A partir daí, a cronista imagina o que poderia ter sido uma reunião entre esses e outros poetas e artistas na casa do também poeta Guilherme de Almeida (1890-1969), acontecimento que poderia ter sido o embrião de um salão que haveria de ser o estopim da Semana de Arte Moderna de 1922.   

Dividida em seis seções – Vegetais, Criaturas, Reminiscências, Mistérios, Retratos e Desenlaces –, a obra traz crônicas bem trabalhadas que lembram os mais importantes autores desse gênero no Brasil, pois seu estilo fácil, ágil e poético atrai desde logo o leitor. O jeito escrever da cronista, nada rebuscado, com períodos curtos, sem solenidades, pode ser constatado neste excerto da crônica “Gigantes”:

“Dom Quixote, o célebre personagem de Cervantes (1547-1616), imaginou ver gigantes, mas eram moinhos. Os braços eram as pás que giravam o vento e moviam a mó. Às vezes, como o triste cavaleiro andante, concentro-me nos meus problemas, que são gigantescos. Tenho a impressão de que não suportarei mais, que serei espremida, moída e triturada. Em vão tento esconder com um sorriso as minhas dores. Uma pedra gigante esmaga meu peito. Aí me lembro que devo superar a aversão que me lançam e retribuir com perdão. Posso, afinal, matar gigantes e montar em dragões (...)”.

 

                                                II

Como observa o escritor Ronaldo Cagiano no prefácio que escreveu para este livro, “o quintal naveiriano é um caleidoscópio refletor de muitas andanças, entre as geográfico-territoriais e as afetivo-psicológicas, caminhos por onde o dreno da memória e o ducto da experiência didática, aliados de sua inquieta oficina, fazem e(s)coar páginas de sensibilidade, emoção e projeções estéticas”.

Diz mais o prefaciador: “Em Manacá, a autora dá continuidade a um processo de profunda imersão no que ela compartilha como seu (nosso) espaço de deambulação, na esteira de um sentimento drummondiano do mundo, pois como na voz do itabirano, a sua matéria também quer falar do “tempo presente, dos homens presentes, da vida presente”.

Em outras palavras: ao dominar a arte de escrever crônicas, Raquel Naveira não só mescla a tradição e a modernidade como também prepara o leitor para o futuro, ao avaliar os erros do passado e do presente, levando o leitor, que se torna seu íntimo amigo à medida que se deixa levar por suas deambulações, a refletir sobre suas experiências e aprendizado. Leia-se esta parte final da crônica “Porto geral” em que a autora reflete a partir da decadência do velho porto de Corumbá, no Mato Grosso do Sul, que antes apresentava um movimento fervilhante, pois por ele passavam “a riqueza, o progresso, os migrantes, a cultura da Europa e do Rio de Janeiro”:

 “Aquele barco no cais do porto poderia ter me levado numa longa travessia. Tremo toda. Haveria prazer em me deixar conduzir pela correnteza, certa de que não naufragaria em meio aos camalotes de flores lilases. Que avançaria em direção à luz. Mas voltei ao silêncio de meu quarto escuro, nesta terra de fronteira”.

Por aqui se vê que os textos de Raquel Naveira, como reconhece a autora na primeira crônica citada, seguem fielmente as instruções ou observações dos autores dos clássicos manuais de literatura que fizeram parte de sua formação – Massaud Moisés, Alfredo Bosi (1936-2021) e o português Vítor Manuel de Aguiar e Silva (1939-2022). O leitor, portanto, só terá a ganhar ao conhecer os textos desta autora.


                                                         III

Raquel Naveira, nascida em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, é professora universitária, escritora, ensaísta, poeta e crítica literária. Formada em Direito pela Universidade Católica Dom Bosco, na cidade de São Paulo, é mestre em Comunicação e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, também de São Paulo, e doutora em Língua e Literatura Francesa pela Universidade de Nancy, da França. 

Deu aulas de Literaturas Brasileira, Latina e Portuguesa na Universidade Católica Dom Bosco. Residiu no Rio de Janeiro, onde deu aulas na Universidade Santa Úrsula, e em São Paulo, na Faculdade Anchieta. Deu também aulas de pós-graduação na Universidade Nove de Julho (Uninove) e na Universidade Anhembi-Morumbi, de São Paulo. Ministrou palestras e cursos em escolas e em várias instituições culturais como Casa das Rosas, Casa Guilherme de Almeida e Casa Mário de Andrade, em São Paulo. Na Academia Paulista de Letras, participou do Ciclo de Memória da Literatura, discorrendo sobre o trabalho das romancistas Maria de Lourdes Teixeira (1907-1989) e Stella Carr (1932-2008).

É autora de mais de trinta livros de poesia, ensaios e romances, entre eles: Abadia, poemas (Editora Imago,1996), e Casa de tecla, poemas (Editora Escrituras, 1999), indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia, pela Câmara Brasileira do Livro. Escreveu ainda o livro infanto-juvenil Pele de jambo e o de ensaios Fiandeira. Além de Manacá, publicou outro livro de crônicas, Leque aberto, pela Editora Penalux.

Publicou também os romanceiros Guerra entre irmãos, poemas inspirados na Guerra do Paraguai (1864-1870), e Caraguatá, poemas inspirados na Guerra do Contestado (1912-1916), conflito armado entre os Estados de Santa Catarina e Paraná, a partir de luta entre posseiros e pequenos proprietários pela posse de um território, livro que se transformou no filme de curta-metragem Cobrindo o céu de sombra, monólogo com a atriz Christiane Tricerri, sob a direção de Célio Grandes. Lançou o CD Fiandeiras do Pantanal, em que declama seus poemas, acompanhada pela voz e a craviola da cantora Tetê Espíndola.

Pertence à Academia Sul-Mato-Grossense de Letras, à Academia Cristã de Letras, de São Paulo-SP, à Academia de Letras do Brasil, de Brasília, à Academia de Ciências de Lisboa e ao PEN Clube do Brasil. Escreve para várias revistas e jornais como Correio do Estado-MS, Jornal de Letras-RJ, Linguagem Viva-SP, Jornal da ANE-DF, e O Trem-MG, entre outros. Adelto Gonçalves - Brasil

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Manacá, crônicas, de Raquel Naveira, com prefácio de Ronaldo Cagiano. Guaratinguetá-SP: Editora Penalux, R$ 42,00, 130 páginas, 2021. Site: www.editorapenalux.com.br E-mail da editora: penalux@editorapenalux.com.br 

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Adelto Gonçalves, jornalista, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Editorial Caminho, 2003; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo – Imesp, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (Imesp/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (Imesp, 2015), Os vira-latas da madrugada (José Olympio Editora, 1981; Letra Selvagem, 2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imesp, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br



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