Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Malaca – “Um tesouro que não podemos perder”

A Associação Cultural Coração em Malaca (“Korsang di Melaka”) procura apoiar e defender a cultura portuguesa, através da preservação do kristang (crioulo em risco de extinção), da religião católica e das festas populares. Luísa Timóteo, presidente e fundadora, conversou com a Tribuna de Macau para partilhar a história da associação e dar a conhecer algumas das actividades que realizam


-Se a Associação Coração em Malaca tivesse um lema, qual seria?

-O lema maior que nós conseguimos alcançar foi a criação do Consulado Honorário, em Malaca. Em Julho de 2019, o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas foi a Malaca, e foi aí que foi declarado, presencialmente, que o consulado iria ser criado. Está criado, tem um novo embaixador e pensamos que o seu funcionamento comece de imediato, porque faz muita falta. É, de facto, uma pérola dentro de Malaca, tanto mais que se justifica pelo grande turismo que a cidade tem e também por ser património da Humanidade.

O segundo lema que temos é que Malaca seja reconhecida pela CPLP, que não se completa se não angariar esta comunidade portuguesa, não só como observadora, mas como parte integrante da CPLP. Malaca, que tem sido muito resistente, foi, de facto, onde tudo começou e é quase um dever que Portugal também se interesse e que a CPLP reconheça Malaca. Este é o lema maior que agora temos presente.

-Um lema que alerta a importância de defender o património cultural e o legado português…

-Porque todo o nosso passado tem uma história. Costumo dizer que Portugal tem excessos de mimos, porque no mundo inteiro, toda a gente nos recebe bem. Quando fui para Timor-Leste (estive lá três anos), numa visita à Tailândia, onde ninguém falava uma palavra portuguesa, quando me ouviam a falar, toda a gente sorria e me falava na Amália, no Eusébio… e eu acho que estas coisas são tão importantes. E é este mimo, este tesouro que nós não podemos perder. Portugal, às vezes, está um bocado distraído com a Europa e esquece-se que as comunidades europeias não conseguem, de maneira nenhuma, por si, fazer este trabalho das nossas comunidades portuguesas. Portanto, esta chamada de atenção da Associação Coração em Malaca (desde o seu nascimento em 2008) relembra que esta comunidade sozinha foi um povo muito resistente, muito perseguido pelos Holandeses, pelos Ingleses e conseguiu sobreviver sozinha, sem Portugal, porque nós saímos de lá no século XVII. E hoje eles têm o mesmo amor, a mesma paixão e defendem tudo o que é Portugal. Isto é fraternidade, não é palavra vã.

-Que tipo de actividades promovem para perpetuar a influência da cultura portuguesa? Quais são os principais costumes que procuram manter na cidade?

-Quando chegámos a Malaca, em 2009, ouvimos a comunidade e os seus líderes, e tudo o que eles nos solicitaram é aquilo que nós temos sempre como base. Primeiro o apoio às tradições e à cultura, o apoio à religião católica, às danças tradicionais do nosso folclore e à gastronomia.

Quando estive lá, via que as pessoas mais idosas não tinham bengalas, nem cadeiras de rodas, camas articuladas, e esta foi uma conquista que nós conseguimos com os fundos da AMI [Assistência Médica Internacional]. Hoje, as pessoas têm camas articuladas porque o centro de saúde as adquiriu e depois, quando a pessoa já não precisa, devolve o material ao centro, e as pessoas vão rodando entre si.

Eles têm uma sede enorme de dizer que estão ali, que têm algum património feito por eles, como é o Museu do Bairro Português de Malaca. E nesse museu não está lá uma figura do Afonso de Albuquerque, que também é um lema que nós temos: conseguir arranjar um busto ou uma bela fotografia, ou um quadro do Afonso de Albuquerque. Eles desenharam-no num cartão que está à porta do museu, só que o cartão quando faz vento abana, mas o Afonso de Albuquerque não cai! Eles veneram essa figura. As crianças dizem que o Afonso de Albuquerque foi o tio, o avô e o pai, porque lhes deixou os nomes, eles têm os nomes portugueses. Outra das coisas que eles afirmam e que têm visível é que se o Afonso de Albuquerque não existisse, eles também não existiam, esta é uma verdade.

De facto, a Malásia hoje, tem as culturas quase todas do mundo, porque foi naquela fronteira aberta onde não se pagava nada e em que toda a gente fazia as trocas dos seus bens e das suas tradições, que tudo se misturou. Eu admiro muito a Malásia porque é um palco, ou seja, é um painel enorme de todas as civilizações e continuam todos a dar-se bem ao lado do Bairro Português de Malaca. Constantemente outras comunidades da Malásia se juntam e todos se dão bem. Isto é fraternidade.

– Durante muitos anos, na era dos Descobrimentos e dos navegadores, Malaca era uma paragem obrigatória para as rotas do Mar da China. De que forma é que esta localização estratégica contribuiu para o estabelecimento dos portugueses?

-Era importantíssima e ainda é. Todas as transacções marítimas se fizeram e fazem por ali, e quando nós estamos em Malaca é uma delícia, de vez em quando aparecem montes de pessoas que se juntam no Bairro Português de Malaca e que já são conhecidas, são pessoas que vão de barco desde Marrocos, desde a Argentina e param ali, e toda a gente conversa. Estão ali uma semana para poderem compartilhar com os indivíduos de Malaca, do Bairro. Isto é muito bonito, eles chamam-se todos irmãos e é uma fraternidade. Eu recordo-me de ver um dos indivíduos de um barco, com o qual falei muito e que dia seguinte me trouxe uns brincos. E achei piada porque as nossas rotas, que fazíamos antigamente e no tempo dos descobrimentos, iam com várias coisas, vários artigos para se vender. E, portanto, achei aquilo uma delícia, porque me foi buscar um sentimento muito valioso: a partilha entre todos os povos. É uma maravilha que só se encontra em Malaca, só se encontra nas comunidades portuguesas, e este é um tesouro que nós nunca podemos abandonar.

-Como nasceu a Associação Cultural Coração em Malaca?

-A associação foi criada a partir da minha estadia em Timor-Leste. Quando era muito pequenina, juntamente com os meus irmãos, ouvíamos as histórias que o meu pai nos contava nos serões depois do trabalho, sobre os Descobrimentos portugueses. Os homens da terra que se aventuram no mar, sem o conhecer. E falava que as pessoas morriam, que os barcos eram afundados, mas que nós continuávamos e que chegámos até Malaca. E quando fui para Timor-Leste, os meus irmãos disseram-me “vê lá se vais a Malaca, porque o pai queria que tu lá fosses!”

Estive um mês em Malaca, no ano de 2006. E quando cheguei lá senti que aquela era a minha terra. Cheguei ao Bairro Português de Malaca e estava um funeral a passar, os sinos tocavam, tal como assisti no funeral do meu pai, na minha aldeia, e aquilo chocou-me muito. Comecei a chorar, não fui capaz de resistir. O funeral era exactamente igual ao nosso, o padre na frente, as freiras… e quando o funeral acabou as pessoas vieram ter comigo e disseram “vossemecê portuguesa de Portugal”, e ainda chorei mais, não fui capaz de responder. Acenei com a cabeça que sim e eles disseram “nós portugueses de Malaca”. Eu era portuguesa de Portugal e eles eram portugueses de Malaca. Isto chegou e bastou para eu pensar que nunca mais os podia abandonar.

Eles pediram-me imenso que quando chegasse a Portugal dissesse ao meu governo que eles estavam lá e que nunca mais viram ninguém de Portugal. O último estadista que eles se lembravam de lá estar tinha sido o Sarmento Rodrigues, que nunca mais esqueceram. Lembro-me que, enquanto não criei a associação, no avião já vinha a escrever ao Jorge Sampaio, que era o presidente na altura, dizendo que não nos podíamos esquecer de Malaca e ele respondeu-me que sim. Entretanto houve eleições e ele saiu de imediato, passámos ao Cavaco Silva.

Nunca mais descansei, e desde 2006 até 2008 foi um trabalho incessante que tive para criar a Associação. Primeiro, porque não tinha ninguém que quisesse fazer parte, diziam que eu era maluca, que Malaca estava no fim do mundo, que ninguém se lembrava de Malaca, e que nem o governo se interessava. Optei por ir buscar pessoas, não da minha zona, mas que estiveram comigo em Timor e que também conheciam Malaca, que deram a volta por lá. A Associação foi criada no dia 12 de Junho de 2008. Porquê 12 de Junho? Porque foi a primeira vez que se festejou, não em Malaca, mas na Malásia em Kuala Lumpur, o 10 de Junho.

-Que memórias e conquistas valem a pena destacar?

-No dia em que criei a Associação, foi-nos concedida uma bolseira para ir para Malaca, apoiar as actividades culturais, e levou com ela um grande mestre das danças folclóricas, que esteve lá um mês. Para eles foi um sonho que nunca pensariam ver, porque gostam de dançar, mas querem renovar as danças, querem renovar as letras e ele fez lá, de facto, um bom trabalho. O mestre Costa Machado foi um exemplo muito grande. A nossa bolseira também fez um bom trabalho, e até agora, todos os anos, vamos tendo lá bolseiros. No ano de 2019 foi interrompido, em 2020 também não estiveram lá e eu sinto que eles estão muito abandonados, na medida em que não está lá ninguém presente. Portugal não está no terreno.

-A pandemia da COVID-19 afectou o desempenho da associação?

-Claro, porque os nossos bolseiros que estavam lá vieram embora em Março de 2019 e até hoje ainda não conseguiram voltar. Portanto, estamos assim num impasse muito desagradável, mas pronto não podemos fazer mais. Eles estão bem, não têm lá nenhum vírus, estão completamente protegidos. O governo também lhes pediu para eles não saírem, não andarem muito e as visitas a Malaca também têm sido reduzidas, o que lhes dá um prejuízo muito grande, porque vivem só do turismo.

-Quantos portugueses há em Malaca? Como está distribuída a comunidade lusa na cidade?

-A comunidade do Bairro tem cerca de 1200 pessoas a viver, mas eles são mais de 10 mil espalhados por todas as ilhas, e inclusivamente Singapura.

-A relação de Portugal com Malaca remonta a 1509, quando Diogo Lopes Sequeira, a mando do rei D. Manuel I, aportou na cidade. Hoje, 512 anos volvidos, como é que tem evoluído a defesa do património cultural português, assim como a preservação das raízes portuguesas?

-Eles querem que tudo quanto seja português não seja esquecido e têm muito desgosto de não terem lá um padre. Até já ao Vaticano pedi, ao Papa Francisco, um padre português para Malaca. O Papa respondeu, através do seu secretariado, que eu tivesse calma. Mas depois fez uma coisa lindíssima, mandou o embaixador do Vaticano estar presente na festa de São Pedro. Ele fez a profissão, fez as bênçãos, e as pessoas ficaram completamente fascinadas. Isto é outro lema que nós temos, e que gostaríamos muito: consolidar uma presença portuguesa é muito importante. Porque eles também têm aborrecimentos, também têm algumas dúvidas e gostam de estar informados. E os padres fizeram-lhes sempre muita falta porque foram, de facto, os grandes mestres e os grandes heróis dos nossos Descobrimentos, porque ensinavam, criaram o colégio, ensinaram a ler e ensinaram o português.

-O kristang, crioulo de origem portuguesa ainda é o idioma da comunidade?

-É o idioma em casa, toda a gente fala o kristang, os pequeninos e tudo não têm nenhum problema. Mas quando vêm para fora, às vezes, os pais dizem “fala kristang” e eles dizem “tenho vergonha”.

-Porque é que o papiá kristang (falar cristão) está em extinção?

-Está em extinção, primeiro pelo esquecimento, o nosso, de Portugal para com Malaca. Porque Malaca tem pessoas que falam português ainda correctamente, os mais novos têm dificuldade porque a língua obrigatória é o inglês, e nós viemo-nos embora e não deixamos o português como língua obrigatória. Nós [Associação] comprometemo-nos a fazer um dicionário para poder ajudar em três línguas – inglês, malaio e português – para eles poderem assimilar. Só que tudo isto precisa de ter um professor, de ter alguém presente ou que assiste, pelo menos nas escolas, ser uma disciplina que fosse também obrigatória, ter uma avaliação para eles poderem frequentar. É isto que também nos falta, porque eles querem saber português. Susana Martinho – Macau in “Jornal Tribuna de Macau”





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