A Associação Cultural Coração em Malaca (“Korsang di Melaka”) procura apoiar e defender a cultura portuguesa, através da preservação do kristang (crioulo em risco de extinção), da religião católica e das festas populares. Luísa Timóteo, presidente e fundadora, conversou com a Tribuna de Macau para partilhar a história da associação e dar a conhecer algumas das actividades que realizam
-Se a Associação Coração em Malaca tivesse um lema, qual
seria?
-O
lema maior que nós conseguimos alcançar foi a criação do Consulado Honorário,
em Malaca. Em Julho de 2019, o secretário de Estado das Comunidades Portuguesas
foi a Malaca, e foi aí que foi declarado, presencialmente, que o consulado iria
ser criado. Está criado, tem um novo embaixador e pensamos que o seu
funcionamento comece de imediato, porque faz muita falta. É, de facto, uma
pérola dentro de Malaca, tanto mais que se justifica pelo grande turismo que a
cidade tem e também por ser património da Humanidade.
O
segundo lema que temos é que Malaca seja reconhecida pela CPLP, que não se
completa se não angariar esta comunidade portuguesa, não só como observadora,
mas como parte integrante da CPLP. Malaca, que tem sido muito resistente, foi,
de facto, onde tudo começou e é quase um dever que Portugal também se interesse
e que a CPLP reconheça Malaca. Este é o lema maior que agora temos presente.
-Um lema que alerta a importância de defender o
património cultural e o legado português…
-Porque
todo o nosso passado tem uma história. Costumo dizer que Portugal tem excessos
de mimos, porque no mundo inteiro, toda a gente nos recebe bem. Quando fui para
Timor-Leste (estive lá três anos), numa visita à Tailândia, onde ninguém falava
uma palavra portuguesa, quando me ouviam a falar, toda a gente sorria e me
falava na Amália, no Eusébio… e eu acho que estas coisas são tão importantes. E
é este mimo, este tesouro que nós não podemos perder. Portugal, às vezes, está
um bocado distraído com a Europa e esquece-se que as comunidades europeias não
conseguem, de maneira nenhuma, por si, fazer este trabalho das nossas
comunidades portuguesas. Portanto, esta chamada de atenção da Associação
Coração em Malaca (desde o seu nascimento em 2008) relembra que esta comunidade
sozinha foi um povo muito resistente, muito perseguido pelos Holandeses, pelos
Ingleses e conseguiu sobreviver sozinha, sem Portugal, porque nós saímos de lá
no século XVII. E hoje eles têm o mesmo amor, a mesma paixão e defendem tudo o
que é Portugal. Isto é fraternidade, não é palavra vã.
-Que tipo de actividades promovem para perpetuar a
influência da cultura portuguesa? Quais são os principais costumes que procuram
manter na cidade?
-Quando
chegámos a Malaca, em 2009, ouvimos a comunidade e os seus líderes, e tudo o
que eles nos solicitaram é aquilo que nós temos sempre como base. Primeiro o
apoio às tradições e à cultura, o apoio à religião católica, às danças
tradicionais do nosso folclore e à gastronomia.
Quando
estive lá, via que as pessoas mais idosas não tinham bengalas, nem cadeiras de
rodas, camas articuladas, e esta foi uma conquista que nós conseguimos com os
fundos da AMI [Assistência Médica Internacional]. Hoje, as pessoas têm camas
articuladas porque o centro de saúde as adquiriu e depois, quando a pessoa já
não precisa, devolve o material ao centro, e as pessoas vão rodando entre si.
Eles
têm uma sede enorme de dizer que estão ali, que têm algum património feito por
eles, como é o Museu do Bairro Português de Malaca. E nesse museu não está lá
uma figura do Afonso de Albuquerque, que também é um lema que nós temos:
conseguir arranjar um busto ou uma bela fotografia, ou um quadro do Afonso de
Albuquerque. Eles desenharam-no num cartão que está à porta do museu, só que o
cartão quando faz vento abana, mas o Afonso de Albuquerque não cai! Eles
veneram essa figura. As crianças dizem que o Afonso de Albuquerque foi o tio, o
avô e o pai, porque lhes deixou os nomes, eles têm os nomes portugueses. Outra
das coisas que eles afirmam e que têm visível é que se o Afonso de Albuquerque
não existisse, eles também não existiam, esta é uma verdade.
De
facto, a Malásia hoje, tem as culturas quase todas do mundo, porque foi naquela
fronteira aberta onde não se pagava nada e em que toda a gente fazia as trocas
dos seus bens e das suas tradições, que tudo se misturou. Eu admiro muito a
Malásia porque é um palco, ou seja, é um painel enorme de todas as civilizações
e continuam todos a dar-se bem ao lado do Bairro Português de Malaca.
Constantemente outras comunidades da Malásia se juntam e todos se dão bem. Isto
é fraternidade.
– Durante muitos anos, na era dos Descobrimentos e dos
navegadores, Malaca era uma paragem obrigatória para as rotas do Mar da China.
De que forma é que esta localização estratégica contribuiu para o
estabelecimento dos portugueses?
-Era
importantíssima e ainda é. Todas as transacções marítimas se fizeram e fazem
por ali, e quando nós estamos em Malaca é uma delícia, de vez em quando
aparecem montes de pessoas que se juntam no Bairro Português de Malaca e que já
são conhecidas, são pessoas que vão de barco desde Marrocos, desde a Argentina
e param ali, e toda a gente conversa. Estão ali uma semana para poderem
compartilhar com os indivíduos de Malaca, do Bairro. Isto é muito bonito, eles
chamam-se todos irmãos e é uma fraternidade. Eu recordo-me de ver um dos
indivíduos de um barco, com o qual falei muito e que dia seguinte me trouxe uns
brincos. E achei piada porque as nossas rotas, que fazíamos antigamente e no
tempo dos descobrimentos, iam com várias coisas, vários artigos para se vender.
E, portanto, achei aquilo uma delícia, porque me foi buscar um sentimento muito
valioso: a partilha entre todos os povos. É uma maravilha que só se encontra em
Malaca, só se encontra nas comunidades portuguesas, e este é um tesouro que nós
nunca podemos abandonar.
-Como nasceu a Associação Cultural Coração em Malaca?
-A
associação foi criada a partir da minha estadia em Timor-Leste. Quando era
muito pequenina, juntamente com os meus irmãos, ouvíamos as histórias que o meu
pai nos contava nos serões depois do trabalho, sobre os Descobrimentos
portugueses. Os homens da terra que se aventuram no mar, sem o conhecer. E
falava que as pessoas morriam, que os barcos eram afundados, mas que nós
continuávamos e que chegámos até Malaca. E quando fui para Timor-Leste, os meus
irmãos disseram-me “vê lá se vais a Malaca, porque o pai queria que tu lá
fosses!”
Estive
um mês em Malaca, no ano de 2006. E quando cheguei lá senti que aquela era a
minha terra. Cheguei ao Bairro Português de Malaca e estava um funeral a
passar, os sinos tocavam, tal como assisti no funeral do meu pai, na minha
aldeia, e aquilo chocou-me muito. Comecei a chorar, não fui capaz de resistir.
O funeral era exactamente igual ao nosso, o padre na frente, as freiras… e
quando o funeral acabou as pessoas vieram ter comigo e disseram “vossemecê
portuguesa de Portugal”, e ainda chorei mais, não fui capaz de responder.
Acenei com a cabeça que sim e eles disseram “nós portugueses de Malaca”. Eu era
portuguesa de Portugal e eles eram portugueses de Malaca. Isto chegou e bastou
para eu pensar que nunca mais os podia abandonar.
Eles
pediram-me imenso que quando chegasse a Portugal dissesse ao meu governo que
eles estavam lá e que nunca mais viram ninguém de Portugal. O último estadista
que eles se lembravam de lá estar tinha sido o Sarmento Rodrigues, que nunca
mais esqueceram. Lembro-me que, enquanto não criei a associação, no avião já
vinha a escrever ao Jorge Sampaio, que era o presidente na altura, dizendo que
não nos podíamos esquecer de Malaca e ele respondeu-me que sim. Entretanto
houve eleições e ele saiu de imediato, passámos ao Cavaco Silva.
Nunca
mais descansei, e desde 2006 até 2008 foi um trabalho incessante que tive para
criar a Associação. Primeiro, porque não tinha ninguém que quisesse fazer
parte, diziam que eu era maluca, que Malaca estava no fim do mundo, que ninguém
se lembrava de Malaca, e que nem o governo se interessava. Optei por ir buscar
pessoas, não da minha zona, mas que estiveram comigo em Timor e que também
conheciam Malaca, que deram a volta por lá. A Associação foi criada no dia 12
de Junho de 2008. Porquê 12 de Junho? Porque foi a primeira vez que se
festejou, não em Malaca, mas na Malásia em Kuala Lumpur, o 10 de Junho.
-Que memórias e conquistas valem a pena destacar?
-No
dia em que criei a Associação, foi-nos concedida uma bolseira para ir para
Malaca, apoiar as actividades culturais, e levou com ela um grande mestre das
danças folclóricas, que esteve lá um mês. Para eles foi um sonho que nunca
pensariam ver, porque gostam de dançar, mas querem renovar as danças, querem
renovar as letras e ele fez lá, de facto, um bom trabalho. O mestre Costa
Machado foi um exemplo muito grande. A nossa bolseira também fez um bom
trabalho, e até agora, todos os anos, vamos tendo lá bolseiros. No ano de 2019
foi interrompido, em 2020 também não estiveram lá e eu sinto que eles estão
muito abandonados, na medida em que não está lá ninguém presente. Portugal não
está no terreno.
-A pandemia da COVID-19 afectou o desempenho da
associação?
-Claro,
porque os nossos bolseiros que estavam lá vieram embora em Março de 2019 e até
hoje ainda não conseguiram voltar. Portanto, estamos assim num impasse muito
desagradável, mas pronto não podemos fazer mais. Eles estão bem, não têm lá
nenhum vírus, estão completamente protegidos. O governo também lhes pediu para
eles não saírem, não andarem muito e as visitas a Malaca também têm sido
reduzidas, o que lhes dá um prejuízo muito grande, porque vivem só do turismo.
-Quantos portugueses há em Malaca? Como está distribuída
a comunidade lusa na cidade?
-A
comunidade do Bairro tem cerca de 1200 pessoas a viver, mas eles são mais de 10
mil espalhados por todas as ilhas, e inclusivamente Singapura.
-A relação de Portugal com Malaca remonta a 1509, quando
Diogo Lopes Sequeira, a mando do rei D. Manuel I, aportou na cidade. Hoje, 512
anos volvidos, como é que tem evoluído a defesa do património cultural
português, assim como a preservação das raízes portuguesas?
-Eles
querem que tudo quanto seja português não seja esquecido e têm muito desgosto
de não terem lá um padre. Até já ao Vaticano pedi, ao Papa Francisco, um padre
português para Malaca. O Papa respondeu, através do seu secretariado, que eu
tivesse calma. Mas depois fez uma coisa lindíssima, mandou o embaixador do
Vaticano estar presente na festa de São Pedro. Ele fez a profissão, fez as
bênçãos, e as pessoas ficaram completamente fascinadas. Isto é outro lema que
nós temos, e que gostaríamos muito: consolidar uma presença portuguesa é muito
importante. Porque eles também têm aborrecimentos, também têm algumas dúvidas e
gostam de estar informados. E os padres fizeram-lhes sempre muita falta porque foram,
de facto, os grandes mestres e os grandes heróis dos nossos Descobrimentos,
porque ensinavam, criaram o colégio, ensinaram a ler e ensinaram o português.
-O kristang, crioulo de origem portuguesa ainda é o
idioma da comunidade?
-É
o idioma em casa, toda a gente fala o kristang, os pequeninos e tudo não têm
nenhum problema. Mas quando vêm para fora, às vezes, os pais dizem “fala
kristang” e eles dizem “tenho vergonha”.
-Porque é que o papiá kristang (falar cristão) está em
extinção?
-Está
em extinção, primeiro pelo esquecimento, o nosso, de Portugal para com Malaca.
Porque Malaca tem pessoas que falam português ainda correctamente, os mais
novos têm dificuldade porque a língua obrigatória é o inglês, e nós viemo-nos
embora e não deixamos o português como língua obrigatória. Nós [Associação]
comprometemo-nos a fazer um dicionário para poder ajudar em três línguas –
inglês, malaio e português – para eles poderem assimilar. Só que tudo isto
precisa de ter um professor, de ter alguém presente ou que assiste, pelo menos
nas escolas, ser uma disciplina que fosse também obrigatória, ter uma avaliação
para eles poderem frequentar. É isto que também nos falta, porque eles querem saber
português. Susana Martinho – Macau in “Jornal
Tribuna de Macau”
Sem comentários:
Enviar um comentário