Escritor percebeu antes de todo mundo que o país tinha se
transformado de modo profundo
Não
é exagero dizer que Rubem Fonseca, que morreu nesta quarta, aos 94 anos, no Rio
de Janeiro, depois de uma parada cardíaca, inventou o Brasil contemporâneo.
A
sensação é bem essa, invenção em vez de mero reflexo. Percebendo com imensa
lucidez e antes de todo mundo que o país tinha se transformado de modo
profundo, o escritor carioca nascido na cidade mineira de Juiz de Fora em 11 de
Maio de 1925 soube dar a isso uma resposta artística de grande originalidade.
De
predominantemente rural a maciçamente urbano, ao preço do aumento exponencial
da miséria e da deterioração das condições de vida em suas grandes metrópoles,
nos anos 1960 o Brasil já tinha feito essa travessia. Mesmo assim seguia, a seu
modo típico, meio sonâmbulo, encantado com uma literatura de matriz rural e
suburbana.
Quando
nós, seus leitores, descobrimos aqueles bandidos impenitentes, aquelas
histórias repletas de violência e ódio de classe vazadas em linguagem crua,
atravessadas de um senso de humor meio doentio e de uma desesperança de cortar
os pulsos —aquilo foi uma revelação espantosa. Era horrível, mas ressoava
profundamente verdadeiro.
Tão
original era a jogada fonsequiana, com um quê de indiscutível genialidade, que
seu modo de ver o mundo —violento, sombrio e temperado por jogos lúdicos um
tanto cínicos, estilo que o crítico Alfredo Bosi chamou de “brutalismo”— acabou
por virar uma espécie de paisagem mental coletiva da qual até hoje temos
dificuldade de escapar.
Até
porque basta olhar em volta para saber que seus fundamentos continuam lá, como
fraturas expostas.
Se
é impossível pensar a atmosfera do Segundo Reinado sem Machado de Assis, é
Rubem Fonseca quem, da estreia em 1963 com “Os Prisioneiros” até pelo
menos meados dos anos 1990, quando compôs a melhor parte de sua obra, nos deu a
letra do caos social e existencial que virou o Brasil urbano depois do êxodo
desordenado que esvaziou o campo e inchou as periferias das grandes cidades.
Ano
passado, numa conversa sem compromisso, de amigos, a historiadora e crítica
literária Heloísa Starling me apresentou esta charada brilhante, que reproduzo
em minhas próprias palavras —será Rubem Fonseca o maior retratista da tragédia
social brasileira, ou terá sido o Brasil que, inspirando-se em seus livros,
virou essa barra pesada? A pergunta é uma provocação, mas a perplexidade que
está em seu cerne tem um fundo de verdade.
No
conto mais famoso de Rubem Fonseca, “Feliz Ano Novo”, do livro homônimo
de 1975, assaltantes invadem o Réveillon de um grupo de ricos e se divertem ao
matar alguns deles, mas descrevem esses assassinatos num tom desprovido de
ênfase, quase de relatório.
A
coisa era —ainda é, mas hoje bem menos— de dar calafrios na alma. Sobretudo
porque, em seu aparente exagero desmedido, parecia antecipar uma verdade ainda
não de todo evidente na época.
A
proibição do livro pela ditadura militar, embora ele nada tivesse de
explicitamente político, soa mais curiosa quando se sabe que o autor tinha
integrado no início da década de 1960 o Instituto de Pesquisas Econômicas e
Sociais, “think thank” que apoiou o golpe de 1964. O escritor dizia ter
composto a ala democrática da instituição.
No
entanto, a proibição —que fez bem à popularidade do autor, desde então um raro
escritor nacional que soube aliar prestígio crítico e boa vendagem— não deixava
de revelar certa perspicácia do censor. Naquele momento, não havia nada de mais
potente e subversivo do que aquilo no mundo das letras pátrias.
Nenhum
escritor pode almejar mais do que essa fusão de seu texto à paisagem mental de
uma época.
Mais
do que o merecido prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, que
Fonseca ganhou em 2003, é esse traço que torna incontestável a presença do
autor de “Agosto” no andar mais alto do cânone brasileiro.
Fonseca
passou a ocupar um lugar tão grande que praticamente todos os escritores da
minha geração começamos a escrever sob seu sortilégio, quando não imitando
desavergonhadamente seu estilo. E isso ainda é dizer pouco.
A
sombra se espalhava para trás e para a frente no tempo, tanto para os mais
velhos quanto para os mais novos. No auge da carreira do criador do
advogado-detetive Mandrake, mesmo grandes autores de obra consolidada como
Sérgio Sant’Anna admitiam a força de sua influência. No outro extremo,
escritores mais novos do que eu, como Michel Laub, também se declararam seus
discípulos.
A
estética com influência do policial americano, embora Fonseca nunca tenha sido
exatamente um autor do gênero policial, comandou a criação de um mundo
ficcional em que a dimensão psicológica dos personagens, habitualmente tão
valorizada como fundamento da literatura realista, se via achatada entre a
pressão dos baixos instintos e a do meio brutalmente injusto.
Isso
vale tanto para o personagem despossuído que, em “O Cobrador”, se vinga
com violência fria da sociedade que lhe deve “comida, buceta, cobertor, sapato,
casa, automóvel, relógio, dentes”, quanto para o cidadão de bem que, no conto “Passeio
Noturno”, atropela gente por esporte com seu carrão.
Todas
as outras famosas marcas autorais fonsequianas —a obsessão com charutos e
anões, o machismo assumido com orgulho apenas meio irônico, a erudição
enciclopédica que frequentemente parecia mesmo pinçada de uma enciclopédia— são
aspectos secundários que o autor foi tecendo em torno de sua terrível sacada
principal. Visionário, ele foi o grande cantor de nosso pacto civilizatório
rompido.
Tão
marcante foi tal assinatura que era provavelmente inevitável que acabasse se
perdendo num certo maneirismo e nos contos pouco potentes dos últimos anos, nos
quais, adiando enquanto pôde o silêncio criativo, o grande escritor parecia se
divertir brincando de escrever à moda de Rubem Fonseca. Nada que diminua a
força daquela que é sem dúvida a mais original e influente obra literária
produzida no Brasil no último terço do século 20. Sérgio Rodrigues – Brasil in “Folha de
São Paulo”
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