I
Pequeno Dicionário Privativo (Porto, Edições Afrontamento, 2017), de Albano Martins
(1930-2018), foi o último livro lançado pelo autor, dono de vasta obra que
inclui mais de 34 livros de poesia, cinco de prosa, um de poesia e prosa,
quatro de literatura infanto-juvenil, dois em colaboração e 24 de traduções de
obras poéticas, além de sete que foram por ele organizados, bem como 25
Quadras de Natal, publicado em 2006 pela Universidade Fernando Pessoa, do
Porto, que foge a quaisquer dos gêneros acima. Se esta resenha só sai à luz
agora, três anos depois da publicação da obra, é por culpa deste resenhista
relapso, que recebeu o seu exemplar autografado ainda em abril de 2017, mas a
quem, ao saber 14 meses depois do passamento do poeta, faltou-lhe coragem para
a tarefa, pois sabia que dele nunca mais receberia resposta para o seu
trabalho.
Diga-se
que este livro é, na definição de seu autor exposta na dedicatória citada
acima, um “dicionário abreviado”, pois nem todas as letras do alfabeto estão
contempladas e que, por exemplo, só a letra A recebe oito verbetes-poemas. Mas,
como o próprio poeta deixou claro, não o moveu o desejo de formatar um
dicionário clássico, que pudesse ser consultado de quando em vez por algum
consulente. Foi, isso sim, a maneira que o poeta encontrou de reunir textos
que, com ligeiras alterações, foram pela primeira vez publicados no Jornal
de Letras, Artes e Ideias, de Lisboa, sem qualquer intenção de
dicionarizá-los.
Como
observa na nota que antecede o conteúdo, no livro foram ainda incluídos dois
textos – “Elegia para uma gata angorá” e “Infância” –, integrados na obra
inédita Caderno de Argolas, que encerra o volume As Escarpas do Dia
(Porto, Edições Afrontamento, 2010), já que,
em razão de sua estrutura narrativa, achavam-se “mais próximos dos textos
incluídos na segunda parte do mesmo volume”. Dessa maneira, dizia o autor, os
dois textos passavam a ser definitivamente incorporados ao Pequeno
Dicionário Privativo, “desvinculados do contexto onde anteriormente se
encontravam inseridos”.
II
Da
obra do poeta, pode-se lembrar o que observou Sônia Maria de Araújo Cintra, em
sua tese de doutorado “Paisagens poéticas na lírica de Albano Martins:
natureza, amor, arte”, defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), sob a orientação da
professora doutora Raquel de Sousa Ribeiro, mas que contou ainda com o apoio
informal do professor doutor Massaud Moisés (1928-2018): “(...) a lírica de
Albano Martins constitui e é constituída de paisagens poéticas, entendidas no
sentido de recriação verbal de formas do mundo interior e exterior por um
sujeito poético, e que se inscrevem num processo da existência e da linguagem,
através da origem, da erotização e da abstração artística e intelectual”.
(p.14).
Defendida
em 2016, obviamente, a então doutoranda não pôde incluir o Pequeno
Dicionário Privativo em sua alentada análise, mas, se tivesse tido a
oportunidade de fazê-lo, com certeza, alinharia alguns exemplos que podem ser
encontrados neste livro, que mostram a perícia artesanal, a destreza técnica e
os recursos inventivos de Albano Martins, ainda que não sejam especificamente
poesias em versos livres (ou não), mas verbetes poéticos, ou seja, palavras
dicionarizadas que se convertem em poemas, pois dotadas de ritmo. Veja-se, à
guisa de exemplo, o verbete “Árvores” em que o poeta recorda a infância em
Meimoa, freguesia do concelho de Penamacor, na província da Beira Baixa:
(...) Dormiram comigo, sentaram-se comigo
à mesa, foram comigo à escola. Envelheceram. Morreram todas. Cresce hoje a hera onde outrora havia seiva,
perfume de flores e de frutos. Sou também uma árvore, ainda de pé, mas, como
elas, já sem folhas e sem frutos. Como dizer de tudo isto sem nomear a infância
e escutar outra vez o trilo dos pardais nos ramos altos das árvores? (p.
16).
Veja-se
também a definição que dá no verbete “Mulher”: “Árvore, fruto, gomo, sumo. A
escala – a escada – da volúpia e do prazer. Por ela Orfeu desceu aos infernos.
Por ela o homem colhe esporas no abismo” (p. 38). Ou ainda no verbete
“Rosa”: “É também às vezes nome de mulher, talvez porque, sendo possuída, se
abre como uma flor. Se é esta quem possui, o seu nome verosímil é crisântemo.
Ou talvez agapanto. Ou talvez acanto, a flor do canto, a flor-espinho”. (p.
48).
III
Nos
textos de maior estrutura narrativa, a poesia da natureza continua ainda mais
acentuada, com referências à flora, como se percebe na peça que tem por título
“Este chão que me deu a seiva ou esta outra forma de agradecimento”: “(...) Já o disse, repito-o: foi este chão, o
chão da Rascoa, que me deu a seiva, me definiu o ser e moldou o carácter. Dele
vêm o sol que percorre a minha poesia e o sangue que sustenta as flores que
nela medram e vicejam. Depois do leite materno, foram os frutos da terra e as
águas da Meimoa que me alimentaram a infância. Eles e o vento que por ali
passava às vezes a galope, levando consigo as folhas das árvores, a espuma das
horas e a poeira dos dias”. (p. 64).
Na
poesia da natureza, também não faltam referência à fauna, como se vê na “Elegia
para uma gata angorá”: “(...) Trepava aos móveis, escalava os muros,
embrenhava-se pela pequena floresta das traseiras da casa, afiava as unhas no
tronco da araucária ou da buganvília (ou subia a esta para colher alguma flor
esquecida ou aspirar o seu perfume), mordia alguma erva tenra da passadeira,
espreitava atentamente o voo dos pássaros e dos mosquitos ou seguia, da janela,
os movimentos fugazes da rua. Envenenaram-na. Mataram-na. A morte é um ultraje
à beleza, e tu eras bela. Tu eras a Beleza. Aqui o deixo escrito, em jeito de
epitáfio, neste sombrio crepúsculo de verão, com as ondas lá embaixo construindo
os seus esquifes de espuma e os seus réquiens de sal e areia”. (p. 67).
IV
Nascido
na aldeia do Telhado, concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco, na
província da Beira Baixa, em Portugal, Albano Martins foi professor do ensino
secundário de 1956 a 1976 e licenciado em Filologia Clássica pela Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, exercendo funções docentes na Universidade
Fernando Pessoa, do Porto. De 1980 a 1993, quando se aposentou, foi funcionário
da Inspeção-Geral do Ensino. Foi um dos fundadores da revista Árvore e colaborador
assíduo das revistas Colóquio/Letras, da Fundação Calouste Gulbenkian,
de Lisboa, e Nova Renascença, do Porto, da qual foi secretário de
redação.
Estreou
em 1950 estreou com Secura Verde, que recebeu segunda edição em 2000.
Depois, foram tantos os títulos que sua obra foi por três vezes reunida em
volume: a primeira com o título Vocação do Silêncio (Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1990), com prefácio de Eduardo Lourenço; a segunda em
Assim São as Algas (Porto, Campo das Letras, 2000); e a terceira no já citado As
Escarpas do Dia, que recebeu prefácio de Vitor Manuel de Aguiar e Silva.
Seus poemas estão traduzidos em espanhol, inglês, chinês (cantonense) e
japonês.
Entre
os seus cinco livros de prosa, destacam-se aqueles dedicados ao estudo das
obras de Raul Brandão (1867-1930) e Cesário Verde (1855-1886). Entre os livros
que organizou, três são antologias de poetas: Eugênio de Castro (1869-1944),
David Mourão-Ferreira (1927-1996) e o brasileiro Lêdo Ivo (1924-2012). É
tradutor de poetas latinos, gregos do período clássico, espanhóis, italianos e
sul-americanos. Entre eles, salientam-se Giacomo Leopardi (1798-1837), Rafael
Alberti (1902-1999), Nicolas Guillén (1902-1989), Roberto Juarroz (1925-1995) e
Pablo Neruda (1904-1973).
A
tradução de Canto General, de Neruda, valeu-lhe, em 1999, o Grande
Prêmio de Tra¬dução APT/Pen Clube Português.
Por sua tradução de sete obras de Neruda, recebeu do governo chileno a
medalha da Ordem de Mérito Docente e Cultural Gabriela Mistral, no grau de
grande oficial. O último livro na área de tradução que publicou foi Poemas do
Desterro, do poeta romano Ovídio (43a.C.-18d.C.), em 2017. Adelto Gonçalves –
Brasil
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Pequeno Dicionário Privativo seguido de Um Punhado de
Areia, de Albano Martins.
Porto: Edições Afrontamento, 1ª edição, 78 páginas, 12 euros, 2017.
E-mail: comercial@edicoesafrontamento.pt
Site: www.edicoesafrotamento.pt
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela
Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo
(Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na
São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015), Os
Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora,
1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015) e O Reino, a Colônia e o Poder: o
governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797 (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2019), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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