Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

sábado, 24 de agosto de 2019

Os anos do padre Vieira no Maranhão

                                                            I
Depois de produzir um romance, O viúvo (Brasília, LGE Editora, 2005), que foi classificado por este crítico como “uma das poucas obras-primas do romance brasileiro deste início de século XXI”, o romancista, poeta e ensaísta Ronaldo Costa Fernandes (1952) acaba de mostrar que sua forja continua bem acesa, ao lançar, desta vez, Vieira na ilha do Maranhão (Rio de Janeiro, 7Letras, 2019), que constitui um tentativa exitosa de criar um gênero híbrido de crônica e romance, misturando história à ficção, como bem observou o contista Alexandre Arbex na apresentação que escreveu para este livro.

Sem pretender o foro de biografia do padre António Vieira (1608-1697), a obra procura reconstituir a passagem de oito anos, de 1653 a 1661, do missionário pelo Maranhão, onde sua voz ecoou por várias vezes no púlpito das igrejas para condenar o regime de escravidão a que os poderosos do local impunham aos indígenas. Trata também de recuperar os embates que o religioso teve de enfrentar contra a elite local, os chamados homens-bons, ou seja, os proprietários de terras que insistiam em fazer do Estado uma extensão de suas casas senhoriais, tal como ainda o fazem hoje muitos de seus descendentes.

Talvez porque carregasse em suas veias um pouco de sangue africano, pois seu pai, Cristóvão, de origem alentejana, saíra das entranhas da filha de uma mulata ou africana, Vieira sempre haveria de defender os perseguidos, inclusive, os judeus, o que lhe causaria muitas perseguições, especialmente em Portugal. Já a mãe de Vieira era uma lisboeta de quatro costados, embora não fosse oriunda de família rica.

Cristóvão, escrivão da Inquisição, mudou-se para o Brasil em 1614, para assumir cargo de escrivão em Salvador, na Bahia, mandando vir em 1618 a família, que incluía António e mais três filhos. Na Bahia, António iniciou seus estudos no Colégio dos Jesuítas de Salvador, ingressando na Companhia de Jesus como noviço em 1623, prosseguindo os seus estudos em Teologia, Lógica, Metafísica e Matemática.

A partir de 1627, passou a atuar como professor de Retórica em Olinda, retornando a Salvador para completar seus estudos, onde em 1634 seria ordenando sacerdote. Nesta época, já era conhecido pelos seus primeiros sermões, tendo fama de notável pregador. Em 1638, foi nomeado como professor de teologia do Colégio Jesuíta de Salvador.

Após a restauração da independência de Portugal em 1640, regressou a Lisboa iniciando uma carreira diplomática, pois integrava a missão que ia ao Reino prestar obediência ao novo monarca. A partir de então, começou a criar fama como pregador em razão da eloquência e firmeza com que fazia seus sermões. Por outro lado, suas pregações começaram a lhe causar dissabores, o que contribuiu para retornar à América portuguesa, desta vez estabelecendo-se no Maranhão em 1653, ano em que proferiu o famoso Sermão da Primeira Dominga de Quaresma com o qual tentou convencer os senhores de engenho a libertarem os seus escravos indígenas.

                                                 II
É a partir daqui que Costa Fernandes procura recuperar o que foi a estada de Vieira no Maranhão, criando outras personagens que gravitavam em torno do grande catequizador, como o mouro Omar Zaher, homem de dois metros de altura, que sonhava escrever um dicionário universal e vivia cercado de alfarrábios de outras línguas europeias; o holandês Johannes van Basselar, que trocara a civilização europeia pelo amor de uma indígena, chegando ao exagero de participar da atividade canibalista da nação nheengaíba; e o padeiro Bento, preso por atentar contra a vida do fidalgo Nogueira de Almeida, a quem considerava um curupira, acusando-o de ter “vomitado” a peste da bexiga negra no povo do Maranhão.

Outra personagem inolvidável é o sapateiro José Manuel Gordilho, casado com uma índia juruna, que era acusado de ter muita leitura e criar “profecias que só Vieira dava conta de entender em versos maltrapilhos e desencontrados”. O sapateiro era pai de Luzia, moça que tinha uma cabeça descomunal que não parava de crescer e inchar ainda que estivesse confinada num elmo de ferro.

Por esta amostra das personagens, o leitor pode estar certo de que vai encontrar neste livro uma narrativa pouco usual, multifacetada e polifônica, que se destaca por uma dicção peculiar, que procura reconstruir o português falado no século XVII, aproveitando também a linguagem que se lê nos sermões e cartas da personagem principal, o padre António Vieira, como se percebe no trecho abaixo:

(...) Os mais jovens, impetuosos, arrebanhados pela ideia mística, nunca ouviram palavras tão belas e deformantes. Um mundo de espetáculo onde em vez de circo ouvem-se apenas os saltos e malabares da palavra. E Vieira agora abusa de sua oratória e em tom mais grave e alto sentencia: “No Maranhão não é necessário ao demônio tanta bolsa para comprar todas as almas: não é necessário oferecer reinos, não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de pindoba e dois tapuias; e logo está adorado com ambos os joelhos. Oh que feira tão barata.”

Os colonos mais pobres assentiam com a cabeça, horrorizados com o poder do diabo. Os fidalgos bufavam, inquietos no banco incomodante. A maioria, contudo, ouvia certa música celestial onde não havia mais que a voz de Vieira.

Eis aqui um texto marcado por um tom satírico da primeira à última linha, numa linguagem que percorre ao mesmo tempo a História de Portugal e do Brasil e deixa à vista sua dimensão trágica que nos chega até hoje através de personagens que em sua pequenez não diferem muito daqueles de quatro séculos atrás. Levantando e recriando histórias, mitos e mistérios a partir de apurada pesquisa, esta obra oferece ao leitor uma oportunidade única para se conhecer um Brasil que parece surreal, mas que não difere, em muitos aspectos, daquele em que vivemos.

                                                III
Nascido em 1952 em São Luís, o maranhense Ronaldo Costa Fernandes é mestre em Literatura Hispano-americana pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutor em Literatura pela Universidade de Brasília. Deu aulas de literatura na Universidade Notre Dame (1977) e na Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante. Foi chefe do Setor de Arte e Cultura da Universidade Católica de Brasília de 1997 a 1998 e trabalhou na Secretaria Especial da Presidência da República em 1985.

Pertence ao quadro do Ministério da Cultura desde 1980. Foi coordenador da Fundação Nacional de Artes (Funarte), órgão ligado ao Ministério da Cultura, de 1995 a 2003. Cedido nesta época ao Senado Federal, trabalhou no Conselho Editorial da Casa. Dirigiu, durante nove anos, o Centro de Estudos Brasileiros da Embaixada do Brasil em Caracas. Foi, durante três anos e meio, professor-convidado de Literatura Brasileira na Universidade Central da Venezuela.

É membro desde 2005 da Academia Brasiliense de Letras, cadeira XVIII, cujo patrono é o poeta Cláudio Manuel da Costa (1729-1789). Recebeu, em 1996, a Medalha La Ravardière, comenda da municipalidade da cidade de São Luís. Desde 2006, é membro da Academia Maranhense de Letras. Ganhou os prêmios de Revelação de Autor da Associação Paulista de Críticos de Artes, Casa de las Américas e Guimarães Rosa.

Entre suas obras, estão os livros de poemas Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), que recebeu o Prêmio Bolsa de Literatura da Fundação Cultural do Distrito Federal, Andarilho (2000), Eterno passageiro (2004) e A máquina das mãos (2009), que ganhou o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Em 2007, lançou Manual de Tortura (2007), contos, e A Ideologia do personagem brasileiro (2007), ensaio.

Em 2010, lançou o romance Um homem é muito pouco e, em 2012, Memória dos porcos. Em 2014, publicou O difícil exercício das cinzas, seguido pelo livro de ensaios A cidade na literatura (2016). Em 2018, publicou Matadouro de vozes, conjunto de poemas que mescla “um tom filosófico com quase imperceptíveis – à primeira vista – apelos políticos e sociais incrustados nas entrelinhas de versos harmoniosos entre si”, segundo definição do crítico José Neres, em resenha publicada no jornal Correio do Estado, de Campo Grande-MS, em 7/5/2019. Adelto Gonçalves - Brasil


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Vieira na ilha do Maranhão, de Ronaldo Costa Fernandes. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2019, 218 páginas. E-mail: editora@7letras.com.br   Site: www.7letras.com.br
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Adelto Gonçalves, mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012),  Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br

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