Aproximamo-nos
de um grupo de crianças, que não terão mais de 9 anos. Não falam português em
casa, mas ali, no recinto da escola, comunicam e brincam em língua portuguesa.
Não têm qualquer vergonha das câmaras da televisão: “Vamos dizer o quê?”,
questiona uma menina. Um rapaz responde: “Está bem. Vamos dizer ‘Olá! Nós somos
alunos da Escola Portuguesa Ruy Cinatti de Díli”, dizem, virando-nos depois as
costas para brincarem, em português, que nas palavras do escritor moçambicano
Mia Couto, é “a língua nossa, essa que dá gosto a gente namorar”.
Para
Mia Couto, a língua portuguesa fazia os moçambicanos mais Moçambique. Também
para Ramos Horta, o português torna os timorenses mais Timor-Leste. O diplomata
considera que, a par da religião, as duas línguas oficiais são as fundações da
identidade timorense. “O pilar mais importante da identidade de um país vem da
língua. Aí, Timor-Leste têm duas línguas oficiais o tétum, que já é cada vez
mais influenciado pelo português, e o português propriamente dito”, diz.
Segundo
os dados dos Censos de 2015, cerca de 30,8% de timorenses falam português. Este
valor mostra uma subida significativa face a 2002, ano em que se registavam
apenas 5% de falantes da língua. O ex-Presidente da República timorense destaca
também o número crescente de falantes em português. “Sem dúvida que hoje o
português é mais falado do que no tempo português. Em 1974, menos de 10%,
talvez 5% de timorenses, é que falavam português. Hoje, cerca de 30% de
timorenses falam português, número este que atesta o crescimento de falantes em
português”, afirma. Fátima Marques, formadora portuguesa do Consultório da
Língua para Jornalistas (CLJ), chegou a Timor-Leste em 2002 e sente igualmente
a evolução do português no país. A professora justifica estes progressos com a
vontade dos timorenses em aprender e falar a língua. “Há diferenças ao nível da
vontade de aprender. Lembro-me que, quando cheguei, em 2002, os alunos sentiam
muitas dificuldades em se expressarem. Em casa, não conviviam com o português
e, na escola, a aprendizagem desta língua limitava-se a duas horas semanais. Ao
olhar para trás, verifico que essa vontade aumentou. A língua portuguesa já
deixou de ser aquela língua que causava estranheza e de difícil aprendizagem
para se tornar numa língua que pode ser uma mais-valia em termos profissionais”,
diz.
Ramos
Horta destaca igualmente a importância do português para o desenvolvimento do
tétum. “O tétum teve de evoluir rapidamente para fazer face às necessidades.
Após a independência, foi buscar centenas de vocábulos da língua portuguesa,
permitindo-lhe tornar-se mais funcional, rico e modernizado”, arma. O mesmo
defende a formadora Fátima Marques ao sublinhar que a língua tétum tem
recorrido a vários empréstimos do português para se enriquecer. A aquisição de
novos vocábulos constitui, segundo a formadora, uma ferramenta valiosa
para os falantes de tétum.
Para
muitos, o inglês podia ser a chave do desenvolvimento económico para
Timor-Leste. Ramos Horta rejeita, no entanto, esta ideia, afirmando que alguns
países, muito embora tenham adotado o inglês como língua oficial, registam
atualmente um índice económico e social inferior ao de Timor-Leste. “Dizem que
o inglês abriria as portas de Timor ao mundo. Deixem-me dizer que a Libéria é
um país anglófono há mais de cem anos e, no entanto, regista um índice
económico e social inferior ao de Timor-Leste. Ora se o inglês fosse a solução
para os problemas, a Libéria deveria ser agora equiparada a uma Singapura”,
refere.
Voltamos
à Escola Portuguesa Ruy Cinatti, onde a subdiretora, Lisete Fortunato, recorda
que, apesar de o português não ser a língua materna da maioria dos alunos,
todos os conteúdos lecionados, do pré-escolar ao ensino secundário, integram o
currículo português, acrescentando: “Na escola falamos única e exclusivamente o
português, dos três anos ao décimo segundo ano. Tentamos também que nos
intervalos os alunos falem apenas o português, o que nem sempre é possível. A
nossa maior estratégia é, de facto, usar o português dentro do recinto
escolar”. A subdiretora aponta ainda os principais problemas relativamente à
aprendizagem da língua: “As maiores dificuldades residem na compreensão,
interpretação de textos e também na expressão escrita. A solução passa por se
fazer um trabalho contínuo. É algo que tem de ser feito continuamente. Não
podemos querer resultados imediatos, tanto na leitura como na compreensão e
interpretação de textos e também na escrita. É necessário trabalhar
continuamente, quer aqui quer em casa”.
As
dificuldades no processo na aprendizagem do português em Timor-Leste não se refletem
apenas no ensino básico. Também se sentem no ensino superior. A professora e
Chefe do Departamento de Língua Portuguesa da Universidade Nacional Timor
Lorosa’e, Maria da Cunha, reconhece o pouco domínio do português. “O problema
reside na falta de recursos, não só na nossa faculdade como em toda a
universidade. Continuamos com lacunas ao nível do conhecimento da língua
portuguesa. Necessitamos de mais formações. Talvez a esperança esteja nos
nossos alunos que, mais tarde, nos vão substituir e ajudar a desenvolver a
língua portuguesa’’, diz. A professora lamenta ainda o facto de os alunos que
chegam à UNTL evidenciarem falta de conhecimentos básicos em língua portuguesa.
“Alguns dos alunos que aqui chegam vêm sem preparação, com lacunas graves ao
nível do português. Esta falta de conhecimentos básicos da língua dificulta a
sua aprendizagem no nosso departamento”, conta.
Em
Timor-Leste, a falta de hábitos de leitura, problema comum em todos os níveis
de ensino, do básico ao superior, tem também dificultado a aprendizagem da
língua portuguesa. Para contornar este problema, a Escola Portuguesa Ruy Cinatti
tenta promover a leitura junto dos seus alunos. “Para combater a falta de
hábitos de leitura, a escola desenvolve ao longo do ano letivo várias
atividades de promoção, como a hora do conto e o concurso de leitura. Dos mais
pequeninos, do pré-escolar, aos alunos do quarto ano do primeiro ciclo, eles
são também convidados a levar livros para casa e a lerem-nos na companhia dos
seus pais”, refere Lisete Fortunato.
Já
a Professora universitária Maria Cunha mostra um certo desânimo perante a falta
de meios para suprir esta lacuna, lembrando que a leitura é uma ferramenta
poderosa para a aquisição de novos conhecimentos. Sugere, por isso, ao
Ministério da Educação, Juventude e Desporto que desenvolva programas de
incentivo à leitura. “É verdade que em Timor-Leste não há hábitos de leitura. É
preciso, por isso, que o Ministério da Educação implemente atividades, que
disponibilize meios aos professores para que possam criar hábitos de leitura
nos seus alunos. Não se aprende uma língua só nas salas de aula”, diz.
Com
ou sem leitura, muitos timorenses dizem que aprender português é difícil. Para
Aniceto Alberto Carlos, aluno do quatro semestre da licenciatura de Língua
Portuguesa da UNTL, saber português não é uma tarefa impossível. “Apesar da
complexidade da gramática da língua portuguesa, não é motivo para se achar que
a língua portuguesa é difícil. Para mim, é possível contrariar esta dificuldade.
Basta querermos”. E sugere: “Quero aconselhar os jovens timorenses a aprenderem
a língua portuguesa, porque a sua presença no país é muito importante para o
desenvolvimento em todas as áreas no futuro”.
Para
que a língua portuguesa evolua em Timor-Leste é, pois, imperioso que as
instituições responsáveis apostem numa educação de qualidade. É o que defende o
Nobel da Paz, que desafia Portugal e Timor-Leste a investirem mais nesta área.
Destacando a qualidade dos Centros de Aprendizagem e Formação Escolar (CAFE),
sugere o seu alargamento para os postos administrativos. “Um bom exemplo de
ensino de qualidade têm sido os CAFE. São escolas timorenses, com o currículo
timorense, mas com professores altamente qualificados vindos de Portugal.
Contudo, acho que se deveria estender este projeto a todos os postos
administrativos. Caso contrário, estaremos a sacrificar toda uma geração”, afirma.
Apesar do esforço português, o Nobel da Paz aponta críticas a Portugal: “O
projeto CAFE traz qualidade ao nosso ensino, mas subsistem problemas de
organização, nomeadamente por parte de Portugal que não tem gerido a questão do
recrutamento dos professores. Estes têm chegado muito tarde, já com as aulas a
decorrer”.
No
entanto, não é apenas a escola que contribui para a divulgação de uma língua. A
comunicação social tem também um papel importante na sua difusão. Ramos Horta
refere, a este propósito, que, embora a política de língua do Estado timorense
seja consistente, é visível uma inconsistência na política de promoção do
português. Segundo o diplomata, falta criatividade à RTP Internacional. “Infelizmente
o canal português é pouco atrativo, não cativa os telespetadores. Ao contrário
do canal português, a televisão brasileira transmite programas atrativos, mais
alegre. As televisões portuguesas de uma maneira geral só conseguem cativar os
mais velhinhos. Se não soubermos usar a televisão de forma a captar os
interesses e atenção das crianças, torna-se mais difícil a disseminação desta
língua”, refere.
O
Consultório da Língua para Jornalistas (CLJ), um projeto que resulta da
parceria entre a Secretaria de Estado para a Comunicação Social e o Camões,
Instituto da Cooperação e da Língua, pretende melhorar as competências
linguísticas de português dos jornalistas. A formadora Fátima Marques lembra
que, apesar de no início do projeto os profissionais de comunicação social
sentirem muitas dificuldades no uso do português, sobretudo na expressão
escrita, existe agora uma maior motivação para aprender a língua. “O projeto
Consultório da Língua para Jornalistas surgiu da necessidade de dotar os
jornalistas timorenses de competências linguísticas na área da língua
portuguesa. Tem sido um percurso interessante. Embora ainda sintamos dificuldades
no que toca à aprendizagem do português, verificamos que a motivação é maior.
Os conteúdos que estão a ser elaborados e a saírem na comunicação social já
denotam evolução em termos de língua”, diz.
Existe
agora a consciência nos diferentes órgãos de comunicação social de que aprender
português contribui para a melhoria da escrita em tétum. Foi, por isso, que o
jornal Timor Post, um órgão privado que iniciou a publicação em 2002, enviou
cerca de dez editores para os cursos de formação em língua portuguesa. Um deles
foi o chefe de redação Carlos Malilaka de Jesus. “Apesar de a língua ser
difícil, sinto que me trouxe vantagens, pois posso compreender os conteúdos de
muitos documentos oficiais em português. O jornalista que não aprende português
terá muitas dificuldades em entender e escrever notícias sobre acontecimentos oficiais”,
defende. Também Ana Maria da Costa, jornalista e tradutora do Grupo Media
Nacional (GMN) e formanda do CLJ, reconhece a importância da língua para quem
trabalha como jornalista. “O motivo mais importante para um jornalista aprender
o português é a relação direta com o seu trabalho diário”, refere.
Segundo
Fátima Marques, apesar dos vários progressos verificados ao longo da formação,
ainda existem lacunas. Defende, por isso, a continuidade da formação, para que
os jornalistas possam evoluir, nomeadamente em áreas específicas. “Não podemos
ainda falar num domínio perfeito da língua. Já houve evolução desde o início do
projeto CLJ e sentimos uma maior motivação por parte dos jornalistas. Acreditamos
que essa evolução será mais significativa se o projeto tiver continuidade,
apostando em áreas mais específicas. Isto permitirá aos jornalistas uma melhor
preparação linguística para enfrentar os desafios jornalísticos”, diz. Ana
Maria da Costa, formanda do projeto, confirma os progressos na língua. “Estou a
frequentar o nível B2 e sinto que evoluí bastante no uso da língua. No entanto,
preciso de mais tempo para ampliar os meus conhecimentos linguísticos e poder
usar a língua de forma adequada na minha profissão”, conta.
Ramos
Horta insiste, por sua vez, num maior investimento nos media. “A comunicação
social, sobretudo os meios audiovisuais são instrumentos vitais para promoção
da cultura e de línguas. Por isso, é preciso que o nosso Governo disponibilize
mais meios financeiros, materiais nas televisões com o compromisso de que as
televisões produzam programas educativos pedagógicos bons. Para isso, poderiam
realizar contratos com produtores portugueses. Alguns já estão cá. Conhecem
Timor e são profissionais de media. Podem também contratar produtores
brasileiros”, diz.
Embora
a maioria dos timorenses ainda não fale português, são já visíveis progressos.
Ainda são muitas as dificuldades, mas, enquanto houver jovens como o Aniceto
Carlos, mantém-se a esperança de que um dia grande parte dos timorenses há de
dominar o português. “Acho que é importantíssimo aprender português”, diz com
convicção. Ainda que defenda que a língua portuguesa é complexa, também Carlos
de Jesus acredita que este fator não impede a sua aprendizagem e diz: “Nós, que
vivemos no tempo indonésio, tínhamos sempre o preconceito de que o português
era uma língua muito difícil para aprendermos. No entanto, considero que não
existem atualmente barreiras para aprender”. Para aprender o português, essa
língua complexa com que os timorenses começaram a namorar. In “GMN TV” –
Timor-Leste
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