Brasília,
São Paulo e Manaus — Há um caminho pouco ou nada explorado no Brasil. São mais
de 41 000km de hidrovias mal aproveitadas para o transporte de cargas e de
passageiros. A inversão de políticas públicas ao longo das últimas décadas leva
o país a atrasar o desenvolvimento econômico, emitir mais gases de efeito
estufa, ficar refém da insegurança e perder dinheiro. Tais fatores poderiam ser
reduzidos caso houvesse um equilíbrio entre as modalidades e os veículos
rodoviários, aeroviários e ferroviários.
Ao
longo do último mês, a reportagem do Correio visitou trechos de hidrovias
nacionais e conversou com passageiros, marinheiros, comandantes,
ambientalistas, empresários de pequeno e médio portes — ligados ou não a
entidades sindicais —, acadêmicos e autoridades estaduais e federais. O
resultado é um desenho de caminhos mal traçados e das contradições de um país.
O esboço começa no próprio orçamento para o setor. Dados dos últimos 10 anos
mostram o desequilíbrio entre os modais.
Os
números revelam que o orçamento para as hidrovias não chegam a 3% do
estabelecido para as rodovias, segundo números da Confederação Nacional da
Indústria (CNI) a partir de dados da Associação Contas Abertas. “Investimos
muito pouco em hidrovias. É importante dizer que não defendemos restrições a
outros modais, mas um balanceamento melhor”, diz Matheus de Castro,
especialista em infraestrutura da CNI. “A navegação apresenta um número de
acidentes menor, menos poluentes e uma capacidade de transporte vantajosa.”
A
série de reportagens iniciada hoje apresenta o desafio de aprofundar o debate
sobre as hidrovias, revelando inclusive eventuais danos ambientais caso não se
tenha maiores cuidados na implementação. Se falta dinheiro, sobram problemas.
Nas 12 regiões hidrográficas que compõem a malha hidrográfica brasileira há
pirataria, brigas com hidrelétricas e toda a sorte de percalços. Em Barra
Bonita, cidade a 300km da capital paulista, onde é possível navegar por um dos
trechos da hidrovia Tietê-Paraná, o Correio presenciou a euforia de turistas
com o transporte pelo rio, mas constatou o lamento de marinheiros com o descaso
da infraestrutura, principalmente na manutenção de sinalizações. Ali funciona
uma das eclusas — espécie de elevador de águas para barcos — inaugurada em
1973. Ao longo do curso de 2.400km, há outras quatro delas.
Norte
No
Amazonas, o transporte de cargas para exportação e a chegada de navios de
outros países com produtos importados se mistura com pequenos e médios
empresários. Estes, por sua vez, carregam víveres e outros produtos, para
abastecer a população ribeirinha do maior estado do Brasil, além de passageiros
portando bagagens e redes para atar sob o convés durante as várias noites que
passam entre rios e a Floresta Amazônica.
Não
à toa, a região é responsável por 62,9 milhões de toneladas dos 101,5 milhões
transportados em todo o ano de 2018. Em Manaus, na região central, também
conhecida como Manaus Moderna, o acesso aos barcos do Rio Negro se dá por meio
de balsas. Ao longe, se vê empurradores e barcaças transportando toneladas de
grãos, minérios, milhares de litros de combustível e outros produtos, enquanto
uma profusão de outras embarcações de diversos tamanhos, cores e nomes disputam
espaço e recolhem ou desovam cargas e passageiros em balsas enferrujadas e
presas à orla.
Em
algumas delas, o acesso se dá por tábuas. Em outras, não é possível entrar com
os calçados secos. Carregadores levam colchões, eletrodomésticos, frutas e
caixas, em meio a quiosques, vendedores e viajantes acompanhados de familiares.
Há música em todo local e, de tempos em tempos, ouve-se o apito de um veículo
que parte pelo rio.
Quando o clima afeta as navegações
A
hidrovia é o modal mais sensível aos efeitos das mudanças climáticas. Isso
porque, para permitir que as embarcações naveguem, é preciso um nível mínimo de
água nos rios, que diminui nas estiagens prolongadas, causando conflitos pelo
uso da água entre a navegação e a produção de energia ou entre outros usuários.
Foi
o que aconteceu na hidrovia dos rios Tietê-Paraná, quando a crise hídrica levou
ao fechamento da hidrovia por quase dois anos entre 2014 e 2015, causando
prejuízos ao setor de navegação e ao agronegócio. O rio São Francisco possui
1300km navegáveis. Durante a seca, entre Pirapora e Juazeiro (BA), embarcações
encalham em bancos de areia devido à redução do volume d’água.
O
transporte por rodovias, lembra o biólogo Alcides Faria, da ONG Ecologia e Ação
(Ecoa), também fica prejudicado quando há paralisação de caminhoneiros. “Não dá
para colocar todas as fichas em um único modal. É preciso diversificar.” Para
ele, a hidrovia que vale a pena é a chamada “hidrovia limpa”, ou seja, aquela
que não muda o curso natural do rio e que não necessita de dragagens constantes
para remover sedimentos acumulados. “O que é uma porta aberta para excesso de
gastos públicos e corrupção”, afirma. Ele cita o exemplo da hidrovia do
Paraguai, com cerca de 600km, mas com projeto de ampliação para mais de 1,2 mil
km para chegar até Cárceres (MT), passando pelo Pantanal, um ecossistema muito
sensível.
“Quando
a hidrovia tem que destruir as condições naturais do rio, retirar as curvas,
que controlam a velocidade da água, isso muda a vazão do rio, arrasta
sedimentos de fundo, prejudica a reprodução dos peixes, entre outros efeitos
negativos”, afirma. Ele conta que, quando o Pantanal está cheio, de dezembro a
maio, a navegação entre Corumbá até o rio da Prata é perfeita. É lá que a Vale
transporta minério nesse período. Depois de abril, o rio fica baixo e a
navegação deve ser adaptada. Já no Norte, entre o Mato Grosso e o Mato Grosso
do Sul, onde está localizado o Parque Nacional e a Estação Ecológica Taiamã, é
uma região muito alagada.
O
Pantanal é uma grande depressão, localizada na bacia do Alto Paraguai, com uma
elevação na borda onde passa a Ferronorte, paralela a hidrovia. Para ele, a
extensão da hidrovia para o Norte do Pantanal seria uma redundância ruim, com
desastroso impacto ambiental. “Lá, para ter navegação, conforme o projeto, é
preciso retificar e dragar o rio Paraguai, o que seria um desastre ambiental,
pois causaria o desaparecimento da fauna”, lamenta.
O
projeto original da hidrovia previa tornar a região navegável para embarcações
de até 3,3m de calado, em uma extensão de 3,4 mil km de Cárceres (MT) a Nueva
Palmira, no Uruguai. A Bolívia se ligaria à hidrovia por meio do canal do
Tamengo, em Corumbá (MT), mas com os estudos de impacto ambiental e o
contingenciamento de recursos, está parado.
Segurança
O
rio como passagem é feito há séculos. Os rios da Amazônia são navegáveis
praticamente durante todo o ano, mas a boa forma de usar hidrovias é causando o
mínimo de impacto possível sobre os ecossistemas aquáticos. Quanto menos
intervenção, melhor”, afirma Carlos Durigan, da ONG WCS (Associação da
Conservação da Vida Silvestre (WCS).
“É
preciso ter cuidado com a biodiversidade aquática; com a poluição gerada pelas
hidrovias; com a transformação dos leitos dos rios para aprofundamento de
canais, o que revolve sedimentos do fundo dos rios e causa problemas
hidrológicos. E é muito importante controlar os processos químicos, às vezes
alterados por poluição, às vezes, por intervenções, tanto para garantir a
produção dos peixes, como para quem consome o peixe e a água do rio”, afirma.
Para
intensificar o fluxo de embarcações, é preciso ter estudos sobre a capacidade e
suporte do rio, da capacidade de volume e de aumento do fluxo de embarcações,
ter medidas de prevenção de acidentes e de contingência para vazamento de óleo.
“Combustível em corpos d´água é um problema bem sério para a saúde das
pessoas”, afirma.
O
analista de Conservação da ONG WWF, Bernardo Caldas, lembra que há também uma
preocupação cênica com o uso das hidrovias, pois, algumas localidades, como o
Pantanal, por exemplo, são regiões turísticas. “Em regiões urbanas isso não é
tão impactante, mas em regiões de turismo ecológico pode haver um impacto e
pode levar à perda do interesse turístico, porque ninguém visita esses lugares
para ver navios e conteiners passando”, diz.
Crise e progresso inibiram hidrovias
O
crash da Bolsa de Nova York na quinta-feira negra, em 24 de outubro de 1929 e a
construção da nova capital por Juscelino Kubitschek durante a década de 1950
ajudam a compreender a primazia das rodovias no Brasil, bem como o sistemático
descaso com hidrovias e ferrovias. O primeiro evento resultou na crise do café
e no abandono de grande parte da infraestrutura ferroviária. Já a construção de
Brasília cumpriu o papel de trocar de vez os modais pelo asfalto. A opção de
políticos atendendo ao forte lobby de empresas automobilísticas americanas e
alemãs riscou o país de estradas e botou caminhões para rodar com carrocerias
lotadas de produtos que iriam muito melhor de barco.
Quem
explica é o mestre em engenharia de produção e professor de logística da
Faculdade de Tecnologia do Estado de São Paulo (Fatec), Marcos José Corrêa
Bueno. “O crash de 1929 fez o preço do café cair, o que provocou o declínio da
infraestrutura ferroviária. E o crescimento da estrutura rodoviária com JK, na
década de 1950 favoreceu a automobilística”, conta. A predileção por estradas,
já estava presente no governo de Washington Luiz (1926 a 1930), mas foi o mineiro
de Diamantina, fundador de Brasília quem, implantou o rodoviarismo.
Marcos
José destaca que não se trata de trocar rodovias por hidrovias e ferrovias.
“Todos os modais precisam ser recuperados no país. Só 12% das nossas rodovias
são asfaltadas. Por mais intermodalidade que você utilize. As duas pontas da
cadeia produtiva vão depender da rodovia”, destaca Marcos José. “Agora, a
infraestrutura portuária fluvial do país é precária. A gente devia utilizar
mais. Temos grandes empresas aproveitando esses recursos, como a Nestlè, a
Kibon e a Caixa”, pondera.
Influências externas
Doutor
em logística e transporte e professor da Universidade Federal do Amazonas
(Ufan), Antônio Jorge Cunha Campos está entre os que chamam a atenção para a
história a fim de compreender as dificuldades logísticas de transporte de carga
no país. “Em 1950, tivemos a vinda de grandes fabricantes de automóveis
americanas e alemãs. Teve uma grande força para influenciar que o Brasil
priorizasse o transporte rodoviário. Hoje, 62% do nosso transporte é por
rodovia. Não integramos os outros modais. Agora, quando olhamos nossa matriz de
exportação, exportamos produtos in natura e o modal aquaviário e ferroviário
são os mais aconselháveis para isso. Hoje, no setor hidroviário, nossa matriz é
em torno de 13,5%. No entanto, temos em torno de 60 mil km de rios navegáveis”,
aponta.
Consenso
entre especialistas, o desenvolvimento integrado de hidrovias, ferrovias e
rodovias (que nunca aconteceu no país), é fundamental para acelerar o
crescimento e reduzir os impactos ambientais do progresso. E nesse processo, a
navegação interna tem um papel crucial, pelo grande potencial de transporte de
carga com menor desmatamento e reduzida emissão de gás carbônico na atmosfera,
seguido pelas ferrovias e, por último, pelo asfalto, o que mais polui e menos
transporta. “Quando falamos em meio ambiente, o transporte rodoviário emite
muito mais CO2”, lembra Antônio Jorge. Claudia
Dianni, Leonardo Cavalcanti, Luiz Calcagno – Brasil in “Correio
Braziliense”
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