I
Letras
del Ecuador, revista de literatura lançada pela Casa
de la Cultura Ecuatoriana Benjamín Carrión (CCE), de Quito, em abril de 1945,
criou fama em toda a América Latina pela excepcional qualidade de seus artigos
e ensaios. Em 74 anos de existência, a publicação, que teve anunciada sua
última aparição em meados de 2012, com edição comemorativa por ter chegado ao
seu número 200, ressurgiu em abril de 2015, em seu formato original, tablóide,
para seguir ideia pioneira de seu fundador, Benjamin Carrión (1897-1979),
escritor, diplomata, político, professor da Universidade Central do Equador,
ex-ministro da Educação e promotor cultural, considerado o grande suscitador da
cultura de seu país. Trata-se de uma revista que continua a brindar os seus
refinados leitores com textos que surpreendem por suas reflexões no campo das
Ciências Humanas, com temáticas que nunca envelhecem.
Para
marcar essa trajetória que segue firme, a Casa de la Cultura Ecuatoriana
Benjamín Carrión vem lançando também volumes que resgatam a presença da
publicação em mais de sete décadas de produção literária e reúnem obras
publicadas nos cem primeiros números da revista Letras del Ecuador. Em
2010, saiu o volume de número 3 que traz ensaios que vieram à luz entre
dezembro de 1948 e maio de 1951 nos números de 39 a 67 da revista.
São
textos que constituem não só um amálgama do pensamento sobre a identidade do
homem equatoriano como “um espelho do realidade – drama e promessa – espiritual
e fática de todo um continente”, como observa o poeta, escritor e professor
Fabián Guerrero Obando, doutor em Jurisprudência pela Universidade Central do
Equador, na apresentação que escreveu para a quarta capa do tomo. Enfim, como
diz Obando, este volume condensa “uma boa parte dos grandes temas públicos do
século XX, locais, continentais e de dimensão universal”.
De
fato, o volume reúne textos de 39 ensaístas e os temas variam de análises sobre
autores equatorianos a estudos a respeito de autores universais, como Walt Whitman
(1819-1892), Guillaume Apollinaire (1880-1918), Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832), Thomas Stearns Eliot (1888-1965), Gabriela Mistral (1889-1957),
Ramón del Valle Inclán (1866-1936), Edgar Allan Poe (1809-1849), César Vallejo
(1892-1938), Antonio Machado (1875-1939), Sinclair Lewis (1885-1951), Blaise
Cendrars (1887-1961), e o pianista e compositor polonês Frédéric Chopin
(1810-1849), entre outros.
Entre
os ensaístas equatorianos que fazem parte deste volume estão Jorge Enrique
Adoum (1926-2009), César Dávila Andrade (1918-1967) e Jorge Carrera Andrade
(1903-1978), cujos poemas constam da Antologia Poética Ibero-americana
(Cuiabá, Associación de Agregados Culturales Iberoamericanos, 2006), traduzidos
por Fernando Mendes Vianna (1933-2006), José Jeronymo Rivera e Anderson Braga
Horta, além de Pio Jaramillo Alvarado (1884-1968) e o próprio Benjamín Carrión,
para citarmos apenas os mais conhecidos entre nós.
II
Um
dos melhores ensaios deste volume é aquele que, publicado na edição de número
39-40, de outubro-dezembro de 1948, aborda a vida e a obra do poeta T. S.
Eliot, Prêmio Nobel de Literatura de 1948, assinado por Jorge Enrique Adoum,
para quem a poesia do poeta inglês sempre haverá de transmitir uma “sensação de
desolação, de morte fria, solitária”. Ou seja: “Para sempre a terra será para
ele a terra devastada onde não há água, onde se busca um caminho, através de
tudo aquilo a que ele renunciou, por desorientação, por caracteres
contraditórios de sua vida. Renunciou a seu país de origem, convertendo-se em
britânico; renunciou ao seu tempo regressando à antiguidade; renunciou às
soluções que a experiência dos homens dava aos problemas do mundo, recorrendo à
fé e à humildade franciscana, distorcida e vestida de rima perfeita”.
Como
se sabe, Eliot, nascido nos Estados Unidos, é autor do poema “Terra devastada”
(1922), que se transformou em mito literário como o Ulisses (1922), de
James Joyce (1882-1941), ao mostrar a Europa arrasada depois da Primeira Guerra
Mundial (1914-1918), “os ideais e a fé triturados sob os cascos da cavalaria e
das forças motorizadas, o desconcerto geral e a dúvida”, nas palavras de Adoum.
III
De
César Dávila Andrade, o volume traz dois ensaios: o primeiro sobre o médico,
psiquiatra e escritor sueco Axel Munthe (1857-1949) e o segundo sobre Antonio
Machado”, poeta ligado ao Modernismo espanhol que, aliás, nada tem a ver com o
Modernismo brasileiro, constituindo um movimento artístico correspondente ao art
nouveau francês. De Machado, Andrade diz que “Don Antonio não aparecia por
Madri. Ele habitava e purgava a Espanha profunda, aquela que é difícil de
olhar; a recatada, aquela que viveu Cervantes, quando andava pelos pequenos
povoados; a que amou Juan Ruiz, quando se largava a vagar acompanhado de
ruidosos estudantes metidos a poetas; a que conheceu Federico, desde sua
carreta migrante, entre os magos da vida em sonho”.
Para
quem não sabe, não custa dizer que Juan Ruiz (c.1.284-c.1.351), também
conhecido como Arcipreste de Hita, é autor de uma das obras em versos mais
importantes da literatura medieval espanhola, Libro del buen amor
(1330). Já Federico, obviamente, refere-se ao poeta andaluz Federico García
Lorca (1898-1936), assassinado por uma horda fascista em Granada ao início da
Guerra Civil Espanhola (1936-1939). Já Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616)
é o famoso autor de Dom Quixote (1605), considerado o primeiro romance
moderno, um clássico da literatura ocidental.
O
breve ensaio dedicado à Axel Munthe, publicado no número 42, de fevereiro de
1949, foi escrito por Andrade quando o poeta ainda vivia, depois de uma vida
dedicada ao exercício da medicina em Paris e Roma, que o levaria, inclusive, a
tornar-se médico da família real sueca. Filantropo e defensor dos direitos dos
animais, por aqueles anos, Munthe, autor de O Livro de San Michele
(1929), sua obra mais famosa, andava numa luta intensa contra a propagação da
cólera em Nápoles. Descreve Andrade assim a figura do médico-poeta: “(....) Vai
andrajoso, insone, faminto, dando assistência aos coléricos. Sua figura
apostólica e romântica entra no Convento das Sepultadas Vivas e presencia a agonia
das estranhas enclausuradas. Presencia o aflorar das ratazanas enlouquecidas
que brotam aos milhares das cloacas romanas e devoram indistintamente
moribundos e cadáveres”.
IV
Já
de Jorge Carrera Andrade, o volume traz três ensaios: “Chateaubriand e os
índios”, “Grandeza e miséria do Existencialismo” e “Carta de navegar pela
poesia hispano-americana”. No primeiro ensaio, publicado no número 56-60 da
revista, abril-agosto de 1950, o poeta-ensaísta faz um resumo da vida de
François-René de Chateaubriand (1768-1848), escritor, ensaísta, diplomata e
político francês, de origem aristocrática, que se imortalizou por sua obra
literária pré-romântica.
Do
visconde de Chateaubriand, o quitenho lembra que ele deixou sua Saint-Maló
natal protestando contra a sociedade francesa e a corrupção de seu tempo e
declarando que preferia “o desterro das sociedades naturais” do Novo Mundo. E
reproduz o que o escritor francês escreveu a respeito dos indígenas que
conheceu: “Os jovens índios não reclamam nunca, nem tampouco discutem; não são
alvoroçados nem mexeriqueiros nem melancólicos, e em seu semblante se descobre
certa seriedade própria da tranquilidade de alma e certa nobreza filha da
independência”.
No
ensaio sobre o Existencialismo, publicado no número 62, de novembro-dezembro de
1950, Carrera Andrade faz um retrospecto do que estava sendo à época aquele
fenômeno literário, nascido de conversas entre intelectuais em mesas do Café de
Flore, um pequeno estabelecimento localizado no bairro parisiense de
Saint-German-de- Prés, onde pontificava o filósofo Jean Paul Sartre
(1905-1980). “O Existencialismo é uma escola literária, uma filosofia, uma
moral, um culto?”, indagava Carrera Andrade. E respondia: “(...) é tudo isso:
nasceu da literatura e vai se transformando em seita. Seu fundador e supremo
pontífice é Jean Paul Sartre, novelista, professor de filosofia, homem de
quarenta anos, com rosto de administrador de hotel ou de rentista aposentado”.
Carrera
Andrade, porém, ao final de seu trabalho, não deixa de condenar o vazio
existencial defendido por Sartre, citando o filósofo russo Fiodor Dostoievsky
(1821-1881), para lembrar que se a humanidade vier a perder a fé – a fé na
elevação do destino humano –, o mundo retrocederá à barbárie. E argumenta que,
com a frase “cada coisa a seu tempo”, frequentemente repetida por Sartre, caía
o véu que cobria o Existencialismo, deixando à mostra sua nudez, ou seja, “uma
teoria filosófica da vida cotidiana para o uso de gente ordinária, sem
espírito, sem moral, sem religião e sem idealismo”.
No
terceiro ensaio, publicado no número 66, de abril de 1951, Carrera Andrade,
como deixa claro o seu título, traça um retrospecto da poesia hispano-americana
desde a época do domínio espanhol no continente que dura de 1600 até 1830, mas
continua até 1900 dentro da tradição do colonialismo, nutrindo-se do
romanticismo hispânico. Em seguida, procura fazer uma “navegação por todo o
oceano da poesia hispano-americana” no período que vai de 1920 a 1950, que,
segundo ele, “é muito variado e oferece inumeráveis surpresas”.
É
um período que assinala a agonia do esplendor modernista, marcada por grandes
figuras como Leopoldo Lugones (1874-1938) na Argentina, José Maria Eguren
(1874-1942) no Peru, Medardo Ángel Silva (1898-1919) e Humberto Fierro
(1890-1929) no Equador, Guillermo Valencia (1873-1943) e Porfirio Barba Jacob
(1883-1942) na Colômbia e Ramón López Velarde (1888-1921) no México. É a época
também em que começam a se afirmar duas vozes que marcam o século XX na América
hispânica: o chileno Pablo Neruda (1904-1973), Prêmio Nobel de Literatura em
1971, e o mexicano Octavio Paz (1914-1998), Prêmio Nobel de Literatura em 1990.
Para
Carrera Andrade, a poesia de Neruda constituía, já à época, “a realização maior
do espírito sul-americano atual”, enquanto o livro Libertad bajo palabra
(1949), de Paz, era “uma das mais profundas realizações da lírica de nosso
tempo”. Adelto Gonçalves - Brasil
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Letras del
Ecuador 100: Ensayo, tomo III, selección
de ensayo de la revista Letras del Ecuador 1948-1951. Quito: Casa
de Cultura Ecuatoriana Benajmín Carrión, 2010, 564 páginas. E-mail: dpcce@hotmail.com Site:
www.cce.org.ec
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Adelto Gonçalves,
mestre em Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana e doutor
em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo
(USP), é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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