I
Após
uma espera de mais de três décadas, estão de volta os contos de Enfeitiçados todos nós (Florianópolis,
Editora Insular, 2018), livro do jornalista, contista e romancista Lourenço
Cazarré (1953), lançado em 1984 pela Editora Melhoramentos, de São Paulo,
depois que seu autor havia conquistado pela segunda vez o Prêmio Bienal Nestlé
de Literatura Brasileira, o mais importante concurso literário daquela época.
Mais: esta segunda edição traz outros três contos, publicados pela primeira vez
em 1986 em jornais e revistas, que, encorpados aos seis da edição original,
constituem uma bela mostra do trabalho de Cazarré, um dos mais talentosos e
originais contistas de sua geração.
Como observa o experiente jornalista
e escritor Geraldo Hasse no prólogo que escreveu para este livro, Cazarré não
“inventa” personagens nem enredos – no máximo, glamouriza-os, ao humanizá-los, acrescente-se –, mas “apenas
reprocessa histórias reais”. É o que se pode constatar no conto “O
expedicionário” em que o autor coloca a personagem a falar na linguagem
coloquial dos gaúchos para contar a sua própria história de soldado brasileiro
na Segunda Guerra Mundial (1939-1945), agora transformado num homem próximo aos
60 anos de idade, precocemente envelhecido, abandonado por todos e pela chamada
pátria:
“(...) Foi por essa gente que lutaste! Quando penso nisso, lágrimas vêm
turvar ainda mais esses olhos que o bolor dos anos enfraqueceu. (....) Teus
raiados olhos de enlouquecido – presos na inexistente bandeira jamais ultrajada
– não podem mais ver os picos nevados dos montes italianos. Teus rachados pés
de esmoleiro estão de novo sobre o húmus da terra que te engendrou, no ventre
de uma índia quando um negro a penetrou com a ardência de um sol africano. Por
que, guerreiro, te devolveram assim a tua terra, transformado num ídolo
enfeitiçado, símbolo de todas as guerras e de todas as brutalidades. Marcha, soldado, cabeça de papel”.
II
Nascido na cidade de Pelotas, no
interior do Rio Grande do Sul, Cazarré, buscou na gente humilde de sua terra
natal e de Bagé, cidade na fronteira com o Uruguai, onde passou parte da
infância, a maioria de suas personagens. Dessa maneira, pintou um retrato daquelas
cidades do tempo de sua juventude em contos que não perderam o viço, como se
pode ver no conto que dá título ao livro:
“(...) A praça fica repleta de pessoas afogueadas que se entreolham com
amarelados olhos vazios. Na fresca da noite, anunciada no ar abafado pelo
cheiro de erva-mate, os velhos vão para as calçadas com suas garrafas térmicas
e suas bocas chupadas e mostram à lua suas geométricas dentaduras enquanto seus
peitos encatarrados tentam conseguir um pouco de ar. O suor se transforma em
rios quando todos aqueles velhos insones pressentem que naquela noite não
resistirão ao apelo das forças primitivas e que, por fim, se transformarão em lobisomens. Assim aconteceu com o meu e com o teu avô, enquanto
nossas avós percorriam alucinadamente as contas negras dos rosários com seus
dedos ossudos e bondosos e murmuravam orações piedosas para a salvação de nossas
almas (...).
Por
aqui se vê também que Geraldo Hasse, no prólogo, ao comparar Cazarré ao inglês
Charles Dickens (1812-1870), ao russo Fiódor Doistoiévski (1821-1881) e aos
norte-americanos John Steinbeck (1902-1968), William Faulkner (1897-1962) e
Truman Capote (1924-1984), não exagera, pois o autor brasileiro é igualmente um
grande narrador das tragédias dos humilhados e ofendidos deste mundo.
E
não só: seus contos denotam uma marcante influência dos autores do realismo
mágico ou fantástico que tanto moveram os corações e mentes dos jovens
escritores brasileiros das décadas de 1970 e 1980, especialmente os argentinos
Julio Cortázar (1914-1984) e Jorge Luis Borges (1899-1986), o cubano Alejo Carpentier (1904-1980), a
chilena Isabel Allende, o mexicano Juan Rulfo (1917-1986), os uruguaios Mario
Benedetti (1920-2009) e Juan Carlos Onetti (1909-1994) e os brasileiros Murilo
Rubião (1916-1991) e José J. Veiga (1915-1999). E o conceito de influência
aqui, diga-se de passagem, segue o que afirmou o crítico Antonio Candido (1918-2017)
em Formação da Literatura Brasileira (1981), que se distingue de
coincidência ou plágio, mas envolve “assimilação recíproca”.
III
Formado
em Jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas (UCPel) em 1975, Cazarré,
depois de um breve período como operador de telex, trabalhou um ano como
repórter na sucursal de Pelotas dos jornais Correio
do Povo, Folha da Manhã e Folha da Tarde, que pertenciam à empresa Caldas Junior,
de Porto Alegre. Em junho de 1976, transferiu-se para Florianópolis, onde
permaneceu por seis meses como repórter da sucursal local da Caldas Junior,
antes de se transferir para a redação do jornal O Estado.
Como
escritor passou a ser reconhecido depois que ganhou a I Bienal Nestlé, em 1982,
com o romance O calidoscópio e a
ampulheta, em que conta as desventuras de um ditador livremente inspirado
em Getúlio Vargas (1882-1954), influenciado talvez pelos romances do colombiano
Gabriel García Márquez (1927-2014), do peruano Mario Vargas Llosa, do
guatemalteco Miguel Ángel Astúrias (1899-1974) e do espanhol (galego) Ramón
Maria del Valle-Inclán (1866-1936).
Em
1977, transferiu-se para Brasília, onde passou a trabalhar como redator do Jornal de Brasília. Por essa época, já
escrevia contos que publicava onde podia. Em 1979, começou a escrever Agosto, Sexta-Feira, Treze, seu primeiro romance, publicado
em 1981. Depois de um retorno ao Rio Grande do Sul, estabelecendo-se na praia
de Laranjal, na costa oeste da Lagoa dos Patos, onde viveu dos parcos recursos
acumulados com os empregos e os prêmios literários conquistados, voltou a
Brasília. Da época em que viveu com a mulher Luísa em Laranjal são os contos da
primeira edição de Enfeitiçados todos
nós.
Em
1983, na capital federal, passou a trabalhar em uma assessoria de imprensa na
Câmara dos Deputados. Depois, tendo sido aprovado em concurso para professor de
Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis,
retornou para Pelotas, mantendo-se em trânsito entre o Rio Grande de Sul e
Santa Catarina por alguns meses, até desistir da carreira e transferir-se
definitivamente para Brasília. Em 1987, exerceu por alguns meses a função de
chefe de editoração da Editora Universidade de Brasília, até que, em 1988, aprovado
por concurso público, assumiu o cargo de redator no Senado Federal, onde
trabalhou até se aposentar.
Autor
profícuo, Cazarré publicou mais de 40 livros, desde romances e coletâneas de
contos a novelas juvenis, entre os quais se destacam o romance A longa migração do temível tubarão
(2008) e as novelas Nadando contra a
morte (1998), Estava nascendo o dia
em que conheceriam o mar (2011) e Os
filhos do deserto combatem na solidão (2016). Adelto Gonçalves - Brasil
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Enfeitiçados todos nós, de Lourenço
Cazarré, com ilustrações de Enio Squeff. Florianópolis: Editora Insular, 120
páginas, R$ 30,00, 2018. E-mail: editora@insular.com.br Site: www.insular.com.br
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail:
marilizadelto@uol.com.br
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