Da Ponta do Ouro à foz
do Rovuma são 2515 quilómetros de uma costa esplendorosa e miraculosamente
virgem. Ou bem perto disso. Viagem país acima, mergulho após mergulho, sempre a
entrar e a sair do mar. À procura do mítico tubarão-baleia ou do próximo caril
de caranguejo, é impossível cansarmo-nos de Moçambique. O país visto por quem é
de lá.
É domingo de manhã
em Maputo e as ruas estão desertas, mas do outro lado da Avenida Julius Nyerere
alguém buzina e trava a fundo para me chamar: «Zé! Zé!». Há-de ser assim no bar
de um hostel do Tofo e a caminho do mercado em Vilanculos, na tarde em que paro
para fotografar a mulher sentada na âncora junto à icónica porta da Capitania
da ilha de Moçambique. Ou depois, já em Pemba, na esquina onde desço de chinelo
no pé para a praia de Wimbi, onde os turistas dos resorts ainda estão em
minoria e o Índico é sobretudo de quem nasceu aqui e nunca viu outro mar.
Tantos
anos depois, este país ainda se lembra do meu nome, ainda me trata por tu, no
seu espanto todo cheio de interjeições e de pontos de exclamação. Mas por mais
que eu o reconheça, e por mais que me reconheçam, é como se nunca estivesse
estado aqui: pela primeira vez, chego a Moçambique de férias e acredito que
posso atravessar o meu país como um estrangeiro. Pelo menos até ser
desmascarado pelas interjeições e pelos pontos de exclamação: da Ponta do Ouro
até à foz do Rovuma, ou mais exatamente de Maputo até ao Ibo, sempre com os pés
dentro do Índico, haverá boas razões para os usar.
País
acima, venho à procura do mítico tubarão baleia que se passeia nas calmas pelas
águas em frente ao Tofo e do caril de caranguejo que – é o que dizem, eu não
sei porque sou estrangeiro – virá para a mesa já pronto a comer (nada de
batalhas campais com martelos e demais artilharia pesada, como na Europa).
Venho
à procura das dunas de Bazaruto para confirmar (vendo tudo de cima, como quem
criou o mundo) que o Índico se esmerou especialmente aqui, e dos esplendorosos
mangais, para mim totalmente estrangeiros (serei sempre um maputeco e estes são
os meus antípodas), do arquipélago das Quirimbas, que se abrem para eu passar
na maré vaza e voltam a ser tragados pelo oceano horas depois, como num filme
com muitos efeitos especiais. São cinco da manhã, o chapa para em frente ao
Fatima’s Backpackers. Escolho um lugar à janela, do lado direito: quero ser o
primeiro a ver o Índico.
Quilómetro 501
Tofo, província de Inhambane
A
mancha de coqueiros a perder de vista, como um biombo que é preciso transpor
para finalmente ver o mar, depois de tanto suspense. O areal enorme onde os
meninos das redondezas passam os dias a vender água de coco (que aqui se chama
água de lanho), capulanas, espanta espíritos, castanhas de caju. E lá está
Moçambique a tratar-me por tu: desde que me conheço como gente que percorro as
ruas de Maputo sozinho com os meus amigos do bairro – brinquei com pneus, fiz
carrinhos de arame, joguei à bola, e se tivesse tido de vender alguma coisa
para levar dinheiro para casa também não teria sido um desprimor. O peixe
fresco das manhãs de mercado. O Índico sempre tão arrebatador e tão vivo.
Apareceram
novos hotéis, os estrangeiros construíram novas casas, o mercado passou a ter
novas instalações, os bares inventaram novos cocktails, e o mundo descobriu uma
nova atração, o tubarão baleia. Ainda assim, o Tofo continua a ser a estância
descontraída, mas sempre pronta para uma festa (a não ser na época baixa, a
ideal para quem quer ter a praia por sua conta) de há vinte anos. Desta vez,
porém, tenho encontro marcado com uma das mais assombrosas criaturas marinhas
que habitam os mares do planeta, e por isso a adrenalina vai em crescendo desde
o pequeno almoço na atmosférica esplanada do Fatima’s Nest, mesmo em cima do
areal, até à hora de empurrar o bote para o mar alto e fazer figas para que o
tubarão baleia ande por perto.
É
uma questão de sorte, mas também de persistência, e quanto mais ele se fizer
difícil (às vezes não aparece de todo…) maior será a epifania. Não há
interjeições nem pontos de exclamação que lhe façam justiça: nadar com o
tubarão baleia é uma experiência da ordem do milagre, sobretudo nestas águas
ainda intocadas pelo turismo de massas onde é possível tê lo só para nós e mais
quatro ou cinco pessoas, longe das multidões de mergulhadores e snorkellers que
o costumam rodear noutros dos seus habitats naturais.
Depois
de o ver, depois da fantasia que é tentar acompanhá lo mar adentro nem que seja
por uns minutos (porque a velocidade desta criatura não é para qualquer pulmão,
mesmo quando se trata, como foi o caso, de um macho jovem de «apenas» sete
metros de comprimento), talvez esteja cumprida a missão no Tofo, a não ser que
queiramos festejar o feito (queremos!) na esplanada de um dos melhores e mais
bonitos restaurantes de Moçambique, o Green Turtle, com caipirinhas de maracujá
e mojitos de manjericão, de olhar perdido no solitário dhow que acaba de se
fazer ao Índico. Longa vida ao tubarão baleia, que é boa gente como se costuma
dizer dos de Inhambane! E agora sigamos caminho.
Quilómetro 715
Vilanculos, província de Inhambane
Continuo
por terra mas em direção ao mar, com o Índico sempre à minha direita, por mais
que se esconda atrás da savana, das lojas de beira de estrada e das aldeias de
caniço. Quando volto a vê lo em Vilanculos, mudou de cor: é de um
verde-esmeralda de postal ilustrado, que há de tornar se ainda mais
fosforescente (parece Photoshop, mas é mesmo a realidade) à medida que for
prosseguindo para norte. Tal como no Tofo, tenho uma missão aqui: atravessar
pela primeira vez até às ilhas de Bazaruto. Não de avioneta, como muitos dos
que se isolam do mundo nas estâncias paradisíacas do arquipélago e nunca chegam
a saber que Vilanculos é uma cidade com vida própria, um mercado sempre cheio
do peixe fresco que vejo os pescadores a recolherem nas suas redes artesanais
(ou mesmo a apanharem à mão) desde que o Sol nasce até que o Sol se põe, e
febres de sábado à noite até às tantas. É para ir de barco mesmo, sem tirar os
pés do Índico, se o mar estiver de feição.
Talvez
o melhor de todo o arquipélago esteja debaixo do Índico, nos recifes de coral
tipo Disneylândia que, ultrapassada a «máquina de lavar» do ponto onde as águas
do canal se cruzam com o mar aberto, é possível observar em todo o seu
esplendor. Atenção que não é tudo nosso: por estas paragens há animais de todos
os tamanhos, incluindo os colossais dugongos, os últimos da costa africana.
Agora
que finalmente chego a este paraíso como um estrangeiro decido que o sítio de
onde o quero ver fica em terra firme: do alto da imensa duna que – surpresa! –
revela a imprevisível diversidade da ilha de Bazaruto, toda savana por dentro e
toda praia por fora, uma praia como as que supomos que terão existido no
princípio do mundo, quando ainda não fazíamos parte do ecossistema. Ou então
porque é sempre bom haver um plano B, dos imensos bancos de areia que a maré
baixa destapa na ilha de Benguerra e que a rasgam ao meio, confirmando que
nasceu para ser este venturoso portal para o Índico.
Estou
pronto para mais um caranguejo grelhado ali mesmo, em cima do carvão, e para
uma cerveja estupidamente gelada. E depois volto a apanhar o barco porque não
quero perder o fim da tarde na praia de Vilanculos. Até ao pôr-do-sol, as
mulheres virão vender o peixe acabado de pescar, os rapazes jogarão futebol com
o alarido digno de um clássico e serei capaz de provar aos mais velhos que sou
de facto moçambicano puxando pelo pouco que ainda me lembro do bitonga (ou
guitonga), o dialeto dominante em Inhambane. Os resorts cinco estrelas ficam do
lado de lá, mas acho que é esta a minha ideia de turismo de luxo.
Quilómetro 2265
Chocas-Mar, província de Nampula
Já não falo a língua: cheguei ao norte
do país, estou em território macua. É mais difícil provar que sou moçambicano,
riem-se do meu sotaque ou das minhas maneiras de estrangeirado, só acreditam
quando mostro o bilhete de identidade. Passaram-se mais de 1500 quilómetros e
apenas o Índico não mudou radicalmente, ainda que esteja cada vez mais
luminoso, mais incandescente (sou do sul mas tenho de admitir: o mar aqui é
outra coisa).
Por
uns dias desviei-me da costa, ou pelo menos da missão de não tirar os pés do
Índico. Distraí-me dele com os elefantes da Gorongosa, as igrejas e os
fantasmas da ilha de Moçambique. Mas antes de continuar a subir para o destino
final – o arquipélago das Quirimbas – recentro-me.
E
ainda bem que me recentro agora, porque até ao fim da viagem haverá mar e mar,
mas não haverá visão como a que me espera pouco depois de desembarcar na praia
de Chocas-Mar e de comprar meio quilo de amêijoas a quem passa: a visão que
desce sobre a praia quando chega um dhow carregado de mulheres vindas do
mercado e de repente o areal se transforma numa movimentada estrada a perder de
vista, onde roupas de todas as cores refletem o sol do meio dia e se afastam a
brilhar até desaparecerem no horizonte. É altura de voltar a abusar dos pontos
de exclamação.
Quilómetros 2468
Pemba, província de Cabo Delgado
É
científico: quanto mais a norte, mais o Índico se esmera. E como a ex-Porto
Amélia dos portugueses fica num dos pontos de Moçambique onde a costa mais se
encaracola, mais se recorta e mais se desdobra – estamos a falar da terceira
maior baía do mundo –, o que já era verdade antes aqui é verdade ao quadrado ou
ao cubo. Há praias para todos, para tudo: exclusivas ou do povo, selvagens ou
super equipadas, desertas ou apinhadas.
Mas quer estejamos numa de nos
enturmarmos na movida local da popular Wimbi, à procura de paz e sossego em
família numa villa da mais reservada Chuíba ou à procura do paraíso para
kitesurfers (e não só) de Murrebué, o mar será sempre uma experiência
hipnotizante. Tanto que de repente parece possível, e a certas alturas é mesmo,
caminhar sobre as águas indefinidamente, até ao infinito e mais além. Começo a
duvidar quando me dizem que ainda há um último lugar onde o Índico é mais impressionante.
Quilómetro 2547
Ibo, província de Cabo Delgado
No imaginário de qualquer moçambicano
nascido no sul do país (ou mesmo de qualquer moçambicano), o arquipélago das
Quirimbas é uma espécie de última fronteira. E é mesmo, confirmarei quando se
acabar o dinheiro e perceber que aqui não há ATM. A questão é que nada disso
importa quando se chega ao Ibo – até porque para lá chegar já houve uma viagem
de barco através dos mangais que lentamente nos foi desligando das coisas do
mundo, postas em suspenso algures numa realidade paralela.
Entreposto
comercial abastado nos anos negros do tráfico de escravos e da exploração do
trabalho forçado sob a égide da Companhia do Niassa (1890 1929), vila colonial
de muito mais relativa importância depois, o Ibo é hoje a testemunha singular
da ascensão e da queda de um império, cujas marcas ficaram para sempre gravadas
na arquitetura e no traçado urbano (e num herói local incontornável, o
historiador amador João Batista, sempre disponível para abrir o fascinante
arquivo que é a sua memória).
Ainda
que a maioria desse passado esteja em ruínas, ele continua vivo no nome das
ruas («Almirante Reis», lê se numa das mais centrais), na profusão de igrejas
(entretanto substituídas no quotidiano pelo predomínio das mesquitas, que dão
bem conta da influência suaíli), fortes e demais edifícios coloniais que se vão
reconvertendo ou morrendo de pé. Um dos mais fascinantes lugares de Moçambique,
o Ibo, é também um dos mais misteriosos. Afinal, conforme a maré, e os caminhos
entre os mangais que ela desvenda ou oculta, o Ibo abre-se e fecha-se ao
exterior.
Expandindo-se até à vizinha Quirimba (a
que é possível, em certas horas do dia, aceder a pé numa caminhada de várias
horas) e a outras ilhas descaradamente próximas da imagem mental que temos do
paraíso. Ou recolhendo-se para dormir, à noite, depois do mais avassalador pôr
do Sol
desta viagem de 2500 quilómetros que talvez tenha esgotado a minha reserva (e
era enorme) de pontos de exclamação. José
Sérgio – Moçambique in
“Plataforma Macau”
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