Pelo
catálogo da editora genebrina “La Joie de Lire” já passaram 17 obras de autores
de países de língua portuguesa, um número que tende a aumentar graças à
colaboração apaixonada do tradutor Dominique Nédellec
Numa rua pequenina do bairro
Eaux-Vives, em Genebra, há uma editora cujo nome diz tudo: La Joie de Lire. É
"a alegria da leitura" que norteia as escolhas editoriais desta casa
literária, criada por Francine Bouchet, em 1987, a pensar nos jovens leitores.
Pelo catálogo da editora suíça já passaram 17 obras escritas ou ilustradas por
13 autores lusófonos.
Este ano foram publicados
"Le Peuple de la Brume"
("Uma Vida no Céu", na
versão original), do escritor angolano José Eduardo Agualusa, e "Ombres" ("Sombras"), da ilustradora portuguesa Marta Monteiro. Outros
dois títulos de autores lusófonos deverão chegar às livrarias em 2018: "Balbúrdia", da portuguesa Teresa
Cortez, e "Vovô Gagá", da
brasileira Márcia Abreu.
Amor?
Trata-se de um caso de amor
pela língua portuguesa? Não exatamente. Francine Bouchet diz ter construído o
catálogo da Joie de Lire de forma "intuitiva". A editora confia no
seu "instinto", deixando-se surpreender, nunca fazendo concessões no
domínio da qualidade, tanto a da imagem como a do texto. A aposta da Joie de
Lire na lusofonia foi, portanto, um mero acaso.
"O que conta para nós é a
qualidade e a profundidade do texto e, claro, o prazer da leitura. O que
acontece é que, por sorte, temos encontrado várias obras lusófonas com estas
características. Trabalhamos com um tradutor excelente [Dominique Nèdellec],
que nos indica novas obras e nós avaliamos as propostas. É assim que funciona",
explica Francine Bouchet.
A confiança que Francine
deposita em Dominique Nèdellec é tanta que, certa vez, bastou o tradutor
enviar-lhe uma mensagem com um booktrailer (um vídeo que tem por objetivo
apresentar um lançamento literário) para a editora ponderar publicar a obra.
Tratava-se de "Se Eu Fosse um Livro", escrito por José Jorge Letria e
ilustrado por André Letria, uma obra "linda" que começa assim: “Se eu
fosse um livro, pediria a quem me encontrasse na rua para me levar para casa
consigo.”
"A Francine disse-me logo
que lhe parecia fantástico e que gostaria de ter acesso ao texto. Então traduzi
algumas frases, que mais parecem pequenos poemas, e ela decidiu logo entrar em
contacto com o André Letria, que também é responsável pela editora portuguesa
Pato Lógico", recorda Dominique. Para o tradutor, "trabalhar com a
Joie de Lire é um sonho" porque tradutor e editora têm em comum "uma
atitude de entusiasmo em relação ao texto".
O
tradutor francês que se apaixonou por Lisboa
Dominique Nèdellec é um dos
mais reputados tradutores da literatura portuguesa para o francês, sendo, por
exemplo, o responsável pela tradução da obra de António Lobo Antunes, publicada
em França pelas edições Christian Bourgois. Foi precisamente pela tradução de
"Que Cavalos São Aqueles que Fazem
Sombra no Mar?", de Lobo Antunes, que Dominique ganhou em 2015 o
prestigiado Prêmio Gulbenkian-Books.
A carreira de tradutor começou
"tarde" e de forma "autodidata". Dominique trabalhava como
organizador de eventos literários na Normandia, na França, e a tradução surgiu
como consequência de "uma paixão pela cidade de Lisboa". Depois de
passar férias com a mulher na capital portuguesa, ambos ficaram encantados com
a cidade. A família decidiu então mudar-se para lá. Para pôr o plano em
prática, começou a estudar a língua portuguesa sozinho. Todos os dias, após o
trabalho, Dominique debruçava-se sobre livros de português. Um ano depois,
estava pronto para a mudança. Chegou a Lisboa e tentou encontrar trabalho no
setor dos livros. Não teve sucesso.
Foi então que apostou na
tradução. Começou por traduzir textos técnicos, documentos comerciais,
relatórios de organizações internacionais e até discursos de políticos.
"Mas o meu objetivo sempre foi o de trabalhar na área literária",
sublinha Dominique. Como não tinha experiência, decidiu traduzir livros
portugueses por iniciativa própria e, depois, propor às editoras as traduções
já finalizadas.
"Na Suíça, a primeira
resposta positiva que recebi foi da Joie de Lire. Era "O Senhor Valery", do [escritor
português] Gonçalo M. Tavares. Li o livro, gostei muito, fiz a tradução logo a
seguir e a Francine aceitou a proposta. Foi a minha primeira tradução publicada
e, para o Gonçalo, foi o primeiro livro traduzido no estrangeiro. Foi muito
comovente", recorda.
O primeiro autor lusófono a
ser publicado na Joie de Lire foi Alice Vieira. Em 2000, chegava às livrarias a
tradução de "Os Olhos de Ana Marta",
um livro juvenil que aborda a questão do luto como um tabu na família. A obra
chegou às mãos de Francine por recomendação de uma colega portuguesa, Beatriz
Robillard, também ela bibliófila, e foi traduzida pela filha de Beatriz,
Marie-Amélie Robillard. Hoje, Alice
Vieira já conta com seis livros publicados na Suíça, sendo "La Charade des Animaux" (2012,
"A Charada da Bicharada" na
versão original) o mais recente deles.
Dominique não conhece outra
editora suíça que abrace a lusofonia de forma tão clara. "É uma
colaboração de 15 anos, comecei a trabalhar com eles em 2003, desde então nunca
paramos. O último título publicado é de José Eduardo Agualusa, um autor
angolano que vive entre o Rio de Janeiro, Lisboa e Luanda [cidades de
diferentes continentes unidas pela lusofonia]. Tenho muito orgulho de ter
traduzido este livro, ao nível simbólico é algo muito forte para mim",
afirma o tradutor.
"Para que saibam que a
literatura do seu país existe"
Com o apoio do Instituto
Camões, Alice Vieira veio à Suíça na época do primeiro lançamento para falar da
sua obra. Foi a escolas onde estudavam alunos de origem portuguesa e conversou
com jovens em diferentes cidades suíças. Da visita à Basileia, a autora recorda
o deslumbramento das crianças ao encontrarem uma família grande a conviver
dentro do livro "Voyage Autour de
Mon Nom" (2012, "Viagem à
Roda do Meu Nome" na versão original).
"Os meninos acharam uma
história maravilhosa porque havia muitos familiares, quase a ideia de um clã. A
vida cotidiana deles era apenas o pai e a mãe, e avós só no Natal, como bem
descreveu uma professora", conta Alice Vieira, aludindo à realidade das
famílias portuguesas que vivem na Suíça.
Francine aprecia a ideia de
fazer chegar obras de autores lusófonos aos jovens que, por terem nascido ou
crescido no estrangeiro, já praticamente só falam o francês. O ideal, afirma, é
que sejam bilingues e possam ler em português. "Mas sabendo que muitas
crianças e adolescentes não dominam a língua dos pais, acho importante que
tenham acesso a autores lusófonos em francês, para que pelo menos saibam que a
literatura do seu país existe", defende a diretora da Joie de Lire. Andréia A. Soares – Suíça in “Swissinfo”
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