I
Eufrásia
Teixeira Leite (1850-1930), nascida em Vassouras, no interior do Estado do Rio
de Janeiro, foi mulher avançada para o seu tempo, que viveu sua infância e
adolescência numa bela residência senhorial conhecida como a Casa da Hera e recebeu
educação esmerada, pois apreciava literatura de alto nível, especialmente os
textos do filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) e os contos e
poemas do norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849).
Ela
viveu um romance clandestino de 14 anos com Joaquim Nabuco (1849-1910),
advogado, diplomata e herdeiro de José Tomás Nabuco de Araújo Filho
(1813-1878), presidente da província de São Paulo (1851-1852), ministro da
Justiça (1853-1857) e senador do Império pela Bahia (1857-1878), a quem o filho
dedicou o livro Um estadista do Império, obra
seminal para se conhecer a história política brasileira daquela época.
Apesar
de pertencer à elite brasileira, que sempre se caracterizou por sua ancestral
maldade para com as classes menos favorecidas, Joaquim Nabuco destacou-se como
defensor da liberdade para os escravos, além de ter sido grande tribuno e combativo
jornalista, que despertava a ira dos conservadores que o consideravam um
"arrogante mulato nordestino e perigoso abolicionista". Foi também
intransigente defensor das reformas sociais de base, que até hoje o Brasil
ainda não conheceu.
Quem
quiser saber a fundo a história desse romance deve procurar ler o livro Eufrásia e Nabuco (Rio de Janeiro, Mauad
X Editora, 2012), da professora, historiadora e museóloga Neusa Fernandes
(1934), que pesquisou parte da correspondência trocada entre os amantes, que
hoje faz parte do acervo da Fundação Joaquim Nabuco. Quem ler essa
correspondência vai descobrir que uma forte atração uniu esses amantes, que
teriam sido separados por uma diferença ideológica intransponível. Eufrásia,
talvez apegada ao seu amor por Nabuco, morreria solteira, enquanto ele acabaria
casando com Evelina Soares Torres Ribeiro, aos 38 anos de idade.
Eufrásia,
ao lado da irmã Francisca Bernardina (1845-1899), era detentora de uma das
maiores fortunas da época, herdada dos pais, equivalente a 5% de todas as
exportações brasileiras. Pertencia a uma família latifundiária, escravocrata e
capitalista. Em 1872, depois da morte dos pais, as duas jovens decidiram morar
em Paris. O romance com Joaquim Nabuco teve início durante viagem de navio para
a Europa, em 1873, e duraria até 1887, quando Eufrásia remeteu sua última carta
a Nabuco. Filantropa, ela soube como valer a sua opinião e seus direitos numa
sociedade marcadamente machista, a uma época em que não havia nenhum movimento
de defesa dos direitos femininos.
II
Com
raro talento e incansável vocação para o trabalho de pesquisa, a professora Neusa
Fernandes desvenda os motivos que levaram à separação do casal. Além do
problema ideológico, que talvez fizesse Nabuco sentir-se culpado por amar uma
latifundiária e herdeira de vastas terras no Vale do Paraíba, segundo a
historiadora, Eufrásia, que aumentara a sua riqueza como investidora e era,
portanto, independente financeiramente, não só amava a liberdade de que
desfrutava como, provavelmente, não aceitaria ver sua fortuna usada em
campanhas abolicionistas.
Além
disso, já acostumada ao progresso e ao bem-estar, insistia em viver em Paris,
onde estava a maioria de seus interesses financeiros. Para piorar, a irmã de
Eufrásia, Chiquinha, era contrária ao relacionamento dela com Nabuco, a ponto
de ter conseguido desviá-la daquele que poderia ter sido o último encontro
marcado entre eles, o que seria, mais tarde, comentado pelos namorados em
correspondência trocada.
Por
outro lado, Nabuco era um conhecido perdulário, gastador inveterado, que vivia
nas mãos de agiotas, além de um emérito galanteador e conquistador de belas
mulheres. Como prova disso, a pesquisadora recolheu uma maledicência publicada
no Jornal do Commercio, do Rio de
Janeiro, de 14 de julho de 1886, em que Nabuco era chamado de “Narciso
desventurado, que vive a namorar-se de si mesmo (...) tem no cérebro projeto de
casamento rico”.
De
Eufrásia, o livro reproduz 14 cartas para Nabuco, escritas com caligrafia
esmerada. Numa delas, datada de Paris, 22 de janeiro de 1886, lê-se: “Como se engana pensando que enquanto sofre
eu estou indiferente, que se eu o amo posso deixá-lo em tão grande ansiedade,
eu que daria tudo para vê-lo feliz, que estou mergulhada nos prazeres e na
excitação de Paris e que gozando de tudo o que ele pode me dar, não tenho tempo
de pensar em mais nada que se eu estiver triste tenho a Ópera, o Bois, o mundo
para me consolar e distrair, mas não fui a nenhum desses lugares, não fiz uma
visita, só saí para compras indispensáveis, tenho mil saudades e nem penso em
outra coisa senão na Tijuca, no Hotel dos Estrangeiros e em tudo o que se passou
(...). (pág. 247).
Já
de Nabuco para a amada, não há cartas porque sua correspondência, a pedido de
Eufrásia, teria sido enterrada pelo advogado Raul Fernandes (1877-1968) – mais
tarde, ministro das Relações Exteriores (1946-1951 e 1954-1955) –, fato que
seria confirmado pelo sociólogo Gilberto Freyre (1900-19897) e pelo historiador
Américo Jacobina Lacombe (1909-1993).
III
Além
de muitas ilustrações, o livro traz uma breve biografia de Eufrásia que,
vivendo 38 anos em Paris, integrou-se à alta sociedade parisiense, exibindo nos
salões modelos do famoso estilista Charles Frederic Whort (1822-1897). Deixaria
em Vassouras a Casa da Hera, onde vivera até os 23 anos de idade, nas mãos de
dois empregados, que, como caseiros, trataram da sua conservação, inclusive de
uma biblioteca com 890 títulos, dos quais 90% em francês, e um acervo com 47
partituras para piano e muitos discursos de seu pai, o comendador Joaquim
Teixeira Leite (1812-1872), lidos na tribuna da Assembleia Legislativa e na
Câmara Imperial.
De
Nabuco, obviamente, o capítulo dedicado à biografia é mais alentado. Advogado,
literato, poeta, pesquisador da Amazônia, jornalista, diplomata, político e o
maior pensador do processo da abolição da escravatura, foi um cidadão do mundo,
tendo feito várias viagens a Europa. Dessa vida privilegiada, recolheu ideias
avançadas para o seu tempo, defendendo a justiça social e a reforma agrária,
embora nunca tenha deixado de ser monarquista, o que, a rigor, não constitui
contradição, tendo em vista o que resultou da república proclamada no bojo de
um improvisado golpe militar, que daria azo a outras intervenções desastradas
da caserna na história política do País.
Como
assinala a historiadora, em 14 de setembro de 1885, Nabuco faria um discurso na
Câmara dos Deputados em que denunciaria “a política do chicote” que fazia do
Brasil “um país de algumas famílias transitoriamente ricas e de dez milhões de
proletários”. Um discurso extremamente atual que talvez só merecesse um reparo:
hoje seriam mais de 100 milhões de proletários.
IV
Neusa
Fernandes, nascida no Rio de Janeiro, tem graduação em Pedagogia pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), 1960, e em Museologia pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UFRJ), 1968, além de mestrado
em História Social, 1999, e doutorado em História Social pela Universidade de
São Paulo (USP), 2002, e pós-doutorado pela UERJ, 2009. É pós-graduada em
História pela Universidade de Madri.
Professora
de História do Estado do Rio de Janeiro, título conquistado por meio de
concurso público, no qual obteve o primeiro lugar, atuou em várias
universidades cariocas. Foi pró-reitora de Pesquisa na Universidade Severino
Sombra, em Vassouras, e diretora do Museu da República, Museu do Primeiro
Reinado, Museu da Cidade e outras instituições. Pesquisadora do Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), presta serviços ao
Instituto Brasileiro de Medicina de Reabilitação. É vice-presidente do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio de Janeiro (IHGRJ) e membro do
Instituto Histórico e Geográfico de Vassouras (IHGV).
É
autora de 14 livros de História e de Museologia, entre os quais A Inquisição em Minas Gerais (Rio de
Janeiro, Mauad X, 2016), Efemérides Cariocas (Rio de Janeiro, 2016), em co-autoria com Olinio Gomes P.
Coelho (Rio de Janeiro, 2016), e Dicionário
Histórico do Vale do Paraíba Fluminense, em co-autoria com Irenilda Cavalcanti e Roselene de Cássia
Coelho Martins (Vassouras, IHGV/Nova Imprensa Oficial do Estado do Rio de
Janeiro, 2016). Adelto Gonçalves -
Brasil
Eufrásia e
Nabuco,
de Neusa Fernandes. Rio de Janeiro: Mauad X Editora/Instituto Histórico e
Geográfico de Vassouras, 336 p., 2012. Site: www.mauad.com.br
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Adelto Gonçalves
é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São
Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003), Tomás Antônio Gonzaga (Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras, 2012), Direito
e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial (Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas
da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1981;
Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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