I
Durante
largos anos, a imagem de Manuel Maria de Barbosa du Bocage (1765-1805) que
ficaria para a posteridade seria a de um poeta erótico, pornográfico e
chocarreiro. Nos últimos anos, porém, graças ao trabalho de estudiosos –
inclusive, deste articulista –, essa imagem tem sido substituída por um perfil
menos caricaturesco. Essa revisão ganha agora ainda mais força com a publicação
de Obras completas de Bocage: Poesias
Eróticas, Burlescas e Satíricas (Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda,
2017), com organização e notas do pesquisador setubalense Daniel Pires, que reúne
as composições de caráter fescenino do poeta, as de autoria duvidosa e as
indevidamente atribuídas a ele, acompanhadas por estudo introdutório fundamental
para uma melhor compreensão da dimensão do homem, da obra e do seu contexto.
Aliás,
as Poesias Eróticas, Burlescas e
Satíricas podem ser consideradas como o sétimo volume da obra completa de
Bocage, depois de terem sido publicadas inicialmente de maneira anônima em
forma de folheto no início do século XIX. Mas só foram, pela primeira vez
integradas na obra completa de Bocage em 2004, na edição preparada pelo mesmo
Daniel Pires para as Edições Caixotim, do Porto.
Nesta
nova edição, porém, os poemas foram divididos por Pires em três núcleos: o
primeiro contempla aqueles que são de Bocage, enquanto o segundo reúne aqueles
de autoria duvidosa e o terceiro é constituído por peças que não lhe pertencem,
mas que lhe foram atribuídas por editores pouco responsáveis ou ainda forjadas
por seus inimigos, entre eles Belchior Curvo Semedo (1766-1838) e José
Agostinho de Macedo (1761-1831), inclusive a famosa Ribeirada: poema em um só canto, de autor anônimo.
Como
diz Pires na conclusão da introdução que escreveu para este livro, é urgente
inverter aquela imagem desvirtuada de Bocage que ainda perdura junto a setores
menos ilustrados da população tanto em Portugal como no Brasil, ou seja, a do “Bocage
chocarreiro, protagonista de anedotas boçais, fura-vidas, promíscuo e
pornográfico”. Ou ainda: homem de caráter obsceno, licencioso, difamador,
libelista e devasso, que teria lido com sofreguidão alguns dos escritores
libertinos franceses dos séculos XVII e XVIII, como Donatien Alphonse François
de Sade, o marquês de Sade (1740-1814), e até o italiano Aretino (1492-1556),
“pena corrosiva e temida tanto pelo clero como pela nobreza”.
Em
oposição a esta caricatura, quem conhece a sua obra sabe que a imagem mais
adequada à realidade – aquela que deveria ter ficado para a posteridade – é a do
poeta genial, conhecedor profundo da literatura francesa, predominante em seu
tempo, tradutor rigoroso do latim e do francês, homem de paradigma cívico, muito superior àquela que ficou, a de “cidadão
que marcou múltiplas gerações de portugueses, influenciadas pela sua
irreverência, frontalidade, demanda de liberdade, humor corrosivo e pela
assunção inequívoca do corpo”, como observa o estudioso.
Para
tanto, Pires fez, mais uma vez, aquilo em que se tem mostrado um mestre
incomparável nas letras lusas de nossa geração: vasculhou arquivos e tratou de
mostrar que essa imagem fescenina, em grande parte, nasceu de um comportamento
nada ético de editores que, em busca do dinheiro fácil, trataram de atribuir à
pena de Bocage, praticamente, toda a poesia erótica e pornográfica que surgira
à época. Esses novos documentos colhidos nos arquivos confirmam essa trapaça da
história e devolvem ao poeta a verdadeira dimensão de sua obra.
II
Em
busca das fontes consultadas por Bocage, Pires leu no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo o processo inquisitorial de Bocage, que inclui a devassa feita à casa
de André da Ponte Quental, onde o poeta residia quando foi detido pelos
esbirros do intendente de Polícia, Pina Manique, em 1797. Nessa devassa, está a
relação dos títulos dos livros apreendidos, que inclui obras como Thérèse Philosophe, de Jean-Baptiste de
Boyer d´Argens, o marquês d´Argens (1704-1771), considerada “imoral” e
apreendida 12 vezes entre 1771 e 1789 pelas autoridades portuguesas. Depois, o
pesquisador deslocou-se até a Biblioteca Nacional Francesa, em busca de outros
livros inventariados pela polícia e que não são encontrados nos arquivos
portugueses.
O
pesquisador lembra que, no ano seguinte ao da morte de Bocage, aproveitando-se
da comoção que o seu desaparecimento causara, saíram duas edições de Rimas e, em 1812-1813, à época em que a
família real estava no Rio de Janeiro e a censura estava mais branda, a edição
em dois volumes de Obras Poéticas de
Manuel Maria de Bocage, feita pelo impressor Desidério Marques Leão sem
qualquer cuidado, apenas com fins claramente pecuniários.
III
Na
introdução, Pires diz que o poema erótico Cartas
de Olinda e Alzira saiu, sem dúvida, da pena de Bocage, mas dúvidas
persistem até hoje. Pires diz ainda que as afinidades de Cartas de Olinda e Alzira com Pavorosa
Ilusão da Eternidade colocam por terra a tese de que o texto não seria da
lavra de Bocage. Mas é claro que afinidades não provam nada, pois continua a
ser, no mínimo, estranho que alguém tenha dado, em 1825, Cartas de Olinda e Alzira como traduzidas de Voltaire por Bocage,
como se vê no códice 10576, pág.81, da secção de Reservados da Biblioteca
Nacional de Lisboa.
O
que intriga ainda mais é que Cartas de
Olinda e Alzira não tenham nenhuma referência a personalidades e geografia
portuguesas, enquanto na Pavorosa o
autor pelo menos introduz a si mesmo no poema quando cita seu nome arcádico
(Elmano). Poder-se-ia argumentar que a situação de clandestinidade a que estava
sujeito obrigaria o autor à prudência de não se revelar nos textos, mas essa
argumentação teria de ser válida também para a Pavorosa, que correu de mão de mão tanto quanto Cartas de Olinda e Alzira.
Além
disso, sabe-se que Bocage traduziu outros textos de Voltaire e de vários
autores franceses, como La Fontaine (1621-1695), Lesage (1668-1747), Evarist de
Parny (1753-1814), Racine (1639-1699), Rousseau (1712-1778), Bernardin de
Saint-Pierre (1737-1814), Anne-Marie Fiquet du Bocage, madame du Bocage
(1710-1802), François-Thomas-Marie de Baculard d'Arnaud, monsieur d´Arnaud
(1718-1805), e outros. E que Voltaire foi uma das influências que mais marcaram
as culturas que orbitavam em torno da cultura francesa. De uma coletânea
apreendida pelos esbirros de Pina Manique, constavam composições de Voltaire,
ao lado de outras de autores diversos e anônimas.
Só
que o suposto original de Voltaire de Cartas
de Olinda e Alzira nunca apareceu. E não tem sido por falta de pesquisas.
Florence Jacqueline Nys, autora de As Fontes
Francesas de Cartas de Olinda e Alzira de
Bocage (Braga, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade do Minho,
2005), fez exaustivas pesquisas não só em arquivos portugueses como em
bibliotecas de França. Igualmente o professor francês Jean-Michel Massa
(1930-2012), estudioso da obra de Machado de Assis (1839-1908), a pedido deste
articulista, deslocou-se várias vezes a arquivos franceses em busca de alguma
pista que levasse à conclusão sobre a possível autoria voltairiana daquele
poema. Todos os esforços foram infrutíferos.
IV
Em
sua introdução, Pires reconhece que a estrutura de Cartas de Olinda e Alzira é idêntica aos Ragionamenti, de Aretino, que “constituíram uma fonte úbere para os
libertinos dos séculos XVII e XVIII”, inclusive Voltaire. E que Thérèse Philosophe, do marquês d´Argens,
seria uma das obras que mais marcaram a lira de Bocage. De fato, na epístola
VII de Cartas de Olinda e Alzira, há
uma referência a uma Teresa francesa: “(...)
Como é vil a expressão, e é vil o gozo/ Que uma Teresa, que outras tais
francesas/ Em impuros bordéis gabar se ufanam!”. A diferença é que Thérèse Philosophe é um monólogo e Cartas de Olinda e Alzira um diálogo
entre duas protagonistas.
Para
Pires, a influência mais determinante em Bocage seria, isso sim, a do poeta
romano Ovídio (43a.C.-18d.C) em quem o poeta “se revia na sua poesia e no seu
percurso de vida”. Afinal, “ambos foram marginalizados pelo poder, sentiram o
peso indelével do ostracismo, apesar do seu inequívoco talento, e lapidaram
versos que a posteridade registou”.
Mas
não se pode esquecer que Florence Jacqueline Nys detectou outra influência
marcante em Cartas de Olinda e Alzira,
a de L´Académie des Dames, de Nicolas
Chorier (1612-1692), onde já havia um célebre par da literatura pornográfica:
Octavie e Tullia. Segundo a estudiosa, o tema e a estrutura desse poema “estão
muito mais próximos do texto de Bocage”. A investigadora contestou ainda que as
Heroides, de Ovidio, possam ter
inspirado Bocage, já que naqueles versos do poeta latino aparecem mulheres
apaixonadas que escrevem aos seus maridos e amantes, dos quais se encontravam
separadas, enquanto Olinda e Alzira têm contatos com seus parceiros.
Seja
como for, a verdade é que esta nova edição de Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas torna-se, desde já,
fundamental para quem quiser se aprofundar na obra e na vida de Bocage. Até
porque biografia definitiva não passa de um termo inventado por editores astutos
para atrair leitores, ainda que se trate de obra exaustivamente pesquisada,
pois os arquivos sempre guardam segredos que demoram, às vezes, séculos para
serem desvendados.
V
Daniel
Pires (1951), doutor em Cultura Portuguesa pela Universidade de Lisboa, é mais
conhecido por suas pesquisas sobre Bocage, sua paixão literária, o que o levou
a fundar o Centro de Estudos Bocageanos, em Setúbal, em 1999, além de defender
tese de doutoramento sobre a obra do poeta. Foi responsável pela edição da Obra Completa de Bocage, publicada por
Edições Caixotim, do Porto, entre 2004 e 2007.
Licenciado
em Filologia Germânica, já deu aulas de inglês no ensino secundário e foi
professor em Setúbal. Sua paixão pela pesquisa e seu gosto pelo conhecimento já
o levaram a trabalhar em São Tomé, Angola, Moçambique, Macau, China, Goa e
Escócia. Em Macau viveu por três anos, entre 1987 e 1990, onde atuou na
Universidade local, e, mais tarde, ensinou na Universidade de Cantão, a cerca
de 120 quilômetros de Hong Kong.
É
autor de importantes trabalhos de divulgação da obra de Bocage, como o livro Fábulas de Bocage (Setúbal, Centro de
Estudos Bocageanos, 2000), Bocage: a
Imagem e o Verbo (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2015) e a
organização e publicação da brochura da Exposição Biobibliográfica comemorativa
dos 230 anos de nascimento e dos 190 anos da morte de Bocage (Setúbal, Câmara
Municipal de Setúbal/Biblioteca Pública Municipal de Setúbal, 1995). Com
Fernando Marcos, preparou a edição de uma pasta com 15 belos postais (sépia)
sobre Bocage na Prisão (Setúbal, Centro
de Estudos Bocageanos, 1999).
É
autor de Padre Malagrida: o Último Condenado
ao Fogo da Inquisição (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2012), O Marquês de Pombal, o Terramoto de 1755 em
Setúbal e o Padre Malagrida (Setúbal, Centro de Estudos Bocageanos, 2013) e
de ensaios sobre Camilo Pessanha, Wenceslau de Moraes e Raul Proença.
Publicou
ainda o Dicionário da Imprensa Periódica
Literária Portuguesa no Século XX (Lisboa, Editora Grifo, 1996),
constituído por três volumes, e o Dicionário
Cronológico da Imprensa Macaense do Século XIX, em que descreve todos os periódicos que foram
publicados em Macau no século XIX, incluindo os jornais ingleses que, durante a
Guerra do Ópio, saíram simultaneamente em Macau e em Cantão.
Colaborou
no Dicionário de História de Portugal,
Dicionário da República, Dictionary of Literature of the Iberian Peninsula,
Cambridge Guide to World Theatre, Dicionário Cronológico de Autores
Portugueses, Dicionário do 25 de Abril e no Dicionário de Fernando Pessoa, além de fazer parte das comissões
que organizaram as comemorações do bicentenário da morte de Bocage, em 2005, e
as comemorações dos 250 anos do nascimento de Bocage, em 2015. Adelto Gonçalves - Brasil
_______________________________
Obras completas de
Bocage: Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas, de Daniel Pires (organização e
notas). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda Editora, 280 páginas, 20 euros,
2017. E-mail: editorial.apoiocliente@incm.pt Site: www.incm.pt
_____________________________________________
Adelto Gonçalves é doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa
pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa,
Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o Perfil
Perdido (Lisboa, Caminho,
2003), Tomás Antônio Gonzaga
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Academia Brasileira de Letras,
2012), Direito e Justiça em Terras d´El-Rei na São Paulo Colonial
(Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2015) e Os Vira-latas da Madrugada (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio
Editora, 1981; Taubaté-SP, Letra Selvagem, 2015), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
Sem comentários:
Enviar um comentário