I
Tudo, afinal, é viagem,
inclusive a nossa vida, Se assim é, tudo o que o nosso olhar vê faz parte de
nossa viagem por este mundo. Por isso, viajar, conhecendo outros lugares e
mundos, sempre vale a pena, especialmente se a paisagem é vista por quem tem
alma de poeta e consegue traduzir o sentimento que produz o que se vê. É o que
se pode constatar na última obra vinda à luz do poeta português Albano Martins
(1930), Livro de Viagens, publicada
por Edições Afrontamento, do Porto, em março de 2015.
Como sempre, os poemas de
Albano Martins são instantâneos do olhar, pequenos flagrantes da natureza, às
vezes concisos hai kais, que revelam
a sua maturidade poética bem como sua fidelidade a um tipo de poesia na Língua
Portuguesa que busca explicações para a vida, mesmo sabendo que essa é uma
missão impossível. O apuramento verbal de Albano Martins é tão refinado nesta
altura de sua trajetória poética que, com certeza, é ele hoje o grande poeta
português contemporâneo deste começo de século XXI, digno sucessor de Fernando
Pessoa (1888-1935), a figura central da poesia portuguesa do século XX.
II
Dividido em cinco capítulos,
este livro traz produções recentes, suscitadas por viagens a cidades encantadas
como Barcelona, Roma e Turim ou por lugares e marcos do Porto e ainda
homenagens a amigos, companheiros de “viagem poética”. De Roma, há um em que
reverencia a “Fontana di Trevi” e pergunta: Uma
moeda/ por um desejo. Desde quando/ os sonhos são vendidos/ a preço de saldo?
E este em que questiona o “Foro Romano” e faz uma viagem no tempo: Por aqui passou/ a lâmina do tempo. O que
resta/ de pompílios e césares são estes/ pinheiros imperiais a cuja sombra/ o
passado dorme/ desenterrado./ Vivo. De Turim, rememora a viagem pelo rio
Pó: Por este rio/ navegam dois barcos,
um/ feito das asas de Ícaro, o outro/ da sombra de Pavese./ O timoneiro/ de
ambos é a morte, deitada/ na cama das águas.
No capítulo “Outras viagens”,
estão poemas que reverenciam o seu cotidiano na cidade do Porto, como este em
que se coloca diante da Torre dos Clérigos, vista de Gaia, do outro lado do rio
Douro: Com este mastro/ de navio/
apontado ao céu, dir-se-ia/ que estão ali de joelhos,/ em oração,/ as casas
todas e o rio. Quase ao final deste
capítulo e do livro, o poeta, profundo conhecedor da poesia italiana e de
outras tantas línguas, surpreende o leitor com um solitário soneto que diz ter
sido imitado de “Cieli, glorie, suoni: anse scure del tempo”, de Giancarlo
Pontiggia (1952), poeta, escritor e crítico literário italiano, mas que, se não
o dissesse, quem seria capaz de sabê-lo?:
A
gloria, a loucura, o tempo dedicado
aos
devaneios, aos anseios, a tentação
do poder,
do mando, a ocasião
propícia
ao enlevo – tudo o que
perto de
nós, ao nosso lado, configura
as novas
catedrais, as novas sinfonias
do desejo
e da posse, a turbulência
das vozes
recolhidas nas dobras
do tecido
que o outono vai urdindo
com fervor
à nossa
volta, à custa
do orvalho
das manhãs e da espuma
das marés
– tudo, acredita, amigo,
se esvai
num lance apenas, no salto
duma lebre
ou no voo da perdiz.
No capítulo “Viagem com os
amigos e outras circunstâncias”, é de se destacar a homenagem que presta a
Miguel de Unamuno (1864-1936): Em ti a
Ibéria/ se fez pensamento/ – se fez cátedra./ À tua mesa/ tiveste sempre/ por
companheira/ a poesia./ Aos abutres/ deixaste/ esta mensagem:/ a liberdade/ não
se vende – não tem preço. Ou ainda ao pintor Armando Alves (1935): Encontrei ontem,/ nas tuas telas, Armando,/
algumas árvores. Os frutos/ eram as tintas, carregadas/ de perfume e sabor.
Levei-as/ para casa e ofereci-as/ às paredes/ do meu quarto. Estão agora azuis/
e vermelhas como os campos/ do teu Alentejo.
III
Como observou o poeta Álvaro
Alves de Faria na recensão que fez para Antologia
Poética (São Paulo, Unimarco, 2000), publicada no jornal O Estado de S. Paulo, Caderno 2, em 8/7/2000, o que chama a
atenção na poesia de Albano Martins é o
que ela tem de íntimo em relação à vida e à própria poesia, “coisa sem
mistérios e sem segredos para quem detém no olhar a paisagem nítida nem sempre
observada pelos comuns”. Segundo ele, Albano Martins é capaz de, em poucas
palavras, “construir pequenos retratos de palavras comoventes”. Para tanto,
cita poemas como “Circuito”, do livro Coração
de Bússola, de 1967: Eis a nossa vida
de enterro/ a nossa vida de operários fúnebres/ conduzindo a morte como um
veículo/ através de labirintos de gestos/ precipícios de palavras.
De acordo com Álvaro Alves de
Faria, a obra albaniana é também feita de constatações poéticas que soam como
pensamentos ou palavras ditas a um amigo, caso, por exemplo, deste pequeno
poema de Com as Flores do Salgueiro,
de 1995: Quando o verão/ morre, as
amoras/ se vestem de luto”. Como nada melhor que um fino poeta para dizer
da poesia de outro, se há algo a acrescentar às palavras de Álvaro Alves de
Faria, assumido poeta luso-brasileiro, o que se pode dizer é que, em Livro de Viagens, Albano Martins
continua igualmente a encantar seus leitores com pequenas obras-primas, que
luzem por sua rara condensação e beleza poética.
IV
Nascido na aldeia do Telhado,
concelho do Fundão, distrito de Castelo Branco, na província da Beira Baixa, em
Portugal, Albano Martins foi professor do ensino secundário de 1956 a 1976 e é licenciado em Filologia Clássica
pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, exercendo desde 1994
funções docentes na Universidade Fernando Pessoa, do Porto. De 1980 a 1993, quando se
aposentou, foi funcionário da Inspeção-Geral do Ensino. Foi um dos fundadores da revista Árvore e é colaborador assíduo das
revistas Colóquio/Letras, da Fundação
Calouste Gulbenkian, de Lisboa, e Nova
Renascença, do Porto, da qual foi secretário de redação.
É autor de 33 livros de
poesia, desde que em 1950 estreou com Secura
Verde, que recebeu segunda edição em 2000. São tantos os livros que seus
títulos ocupam quatro páginas. Basta ver que sua vasta obra foi três vezes
reunida em volume, a primeira com o título Vocação
do Silêncio (Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990), com prefácio
de Eduardo Lourenço; a segunda em
Assim São as Algas (Porto, Campo das Letras,
2000); e a terceira em As Escarpas do Dia (Porto, Edições Afrontamento,
2010), com prefácio de Vitor Manuel de Aguiar e Silva. Seus poemas estão
traduzidos em espanhol, inglês, chinês (cantonense) e japonês.
De prosa, foram cinco livros,
dos quais se destacam aqueles dedicados ao estudo das obras de Raul Brandão
(1867-1930) e Cesário Verde (1855-1886). Além de três livros na área da
literatura infanto-juvenil, organizou sete outros, inclusive antologias de
poetas como Eugênio de Castro (1869-1944), David Mourão-Ferreira (1927-1996) e
o brasileiro Lêdo Ivo (1924-2012).
Nas traduções, está o seu
trabalho mais intenso, com 24 livros publicados. É tradutor de poetas latinos,
gregos do período clássico, espanhóis, italianos e sul-americanos. Entre eles,
salientam-se Giacomo Leopardi (1798-1837), Rafael Alberti (1902-1999), Nicolas
Guillén (1902-1989), Roberto Juarroz (1925-1995) e Pablo Neruda (1904-1973). A
tradução de Canto General, de Neruda,
valeu-lhe, em 1999, o Grande Prêmio de Tradução APT/Pen Clube Português. Por
sua tradução de sete obras de Neruda, recebeu do governo chileno a medalha da
Ordem de Mérito Docente e Cultural Gabriela Mistral, no grau de grande oficial.
Ainda pouco estudada em universidades
(não são muitas as dissertações de mestrado ou teses de doutoramento que lhe
têm sido dedicadas nos dois lados do Atlântico), sua obra, no entanto, tem
merecido a atenção de alguns dos mais importantes críticos e ensaístas contemporâneos,
como os portugueses António Cândido Franco, António Ramos Rosa (1924-2013),
Eduardo Lourenço, Eduardo Prado Coelho (1944-2007), Fernando Guimarães,
Fernando J. B. Martinho, Fernando Pinto do Amaral, Maria Lúcia Lepecki
(1940-2011), Ramiro Teixeira e Vítor Manuel de Aguiar e Silva, e os brasileiros
Leodegário A. de Azevedo Filho (1927-2011) e Nelly Novaes Coelho. Adelto Gonçalves - Brasil
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Livro de Viagens, de Albano
Martins. Porto: Edições Afrontamento, 72 págs., 20 euros, 2015. Site: www.edicoesafrontamento.pt - E-mail:
comercial@edicoesafrontamento.pt
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Adelto Gonçalves é doutor
em Literatura
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de
Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga,
um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova
Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia
Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre
outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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