"Eu venho notando já desde a muitos anos que a Galiza é o nono país de língua Portuguesa. Falta é só uma fórmula mágica. Ao nível político ou administrativo. Português e Galego são uma língua comum. Estive a participar num festival de poesia em Salvaterra e fiquei impressionado com a ressonância do português que ali se fala."
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Palavra Comum: Que supõe para ti a poesia/literatura?
- Adelino Timóteo: A
poesia/literatura para mim é tudo aquilo que procuro revelar, com esplendor,
com beleza. A poesia é o patamar de uma casa inserida neste amplo edifício que
é a literatura. E quando olho para a poesia suponho-me como alguém que olha desde
fora deste edifício sedutor, procurando escalar cada parte desse patamar, em
cuja configuração há ressonância da matéria intensa, matéria solar que a compõe
e a monumentaliza. E nesse olhar errante, furtivo, digamos, passa-se algo
subjectivo que varia de pessoa a pessoa. Há diferentes dimensões do sentir que,
desde muito novo, me converteu num apaixonado pela poesia. Eu diria, foi a
primeira mulher por quem me apaixonei e a primeira casa para onde passei a
viver, depois que escalei a dimensão da cosmogonia, se bem que olhando-a, pelas
suas janelas, consigo abarcar o universo em que vivo. Há uma porta acessível,
diria sagrada, que é a poesia. Onde estão os deuses que me apaziguam a alma, as
tormentas, me reconcilia com os fantasmas e me permite olhar-me por dentro na
perspectiva de ser justo, primeiro comigo mesmo, depois solidário com os
outros, redimido de toda a vaidade. Apesar da poesia decorrer numa esfera
egocêntrica, intimista, eu a procuro produzir como quem faz pão para alimentar
a alma daqueles que necessitam de um paliativo que espante a dor. A poesia
nunca morrerá por isso. Traz consigo toda a carga de antídotos que
compartimentam as diferentes dimensões de existência e ansiedade.
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Palavra Comum: Como entendes o processo de criação artística?
- Adelino Timóteo: O processo
de criação artística é ardiloso. A criação artística exige comprometimento do
seu artífice. Ela emerge de estímulos, sensações. No meu caso o ponto de
partida tem a ver com estímulos exteriores, tudo aquilo que vejo, leio, vivo. O
processo de criação artística encontra armas na vida. Na emergência e
necessidade de construir o que supomos original, sendo a tal construção
sinédoque de destruição. Como diria Jorge Luis Borges, somos anotadores de
realidades pré-textuais e essa é a matriz de tudo o que criamos, sabido que
desde o século XVIII a arte entrou na exaustão. Às vezes sem termos em conta,
estamos a fazer algo que outros já plasmaram. É verdade que criação artística
configura essa dimensão de cumplicidade, e desde logo somos anotadores e
repetidores de arquétipos literários pré-existentes. Escrevemos ou pintamos de
maneira X ou Y porque essas formas têm raízes no que diria a essência da vida e
do mundo, considerando a nossa condição de homo sapiens, a tradição das
cavernas, da Ilíada. Os livros mais belos que ressoam na nossa alma, como uma
música: As mil e uma noites. Os livros recentes que nos iluminam aos pilares da
Grécia antiga.
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Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre a
literatura e outras artes (audiovisual, artes plásticas, música, etc.)?
- Adelino Timóteo: Na criação
não deve existir o deve ser. O único lugar de liberdade no mundo é a criação, a
arte, em geral. A mim já me aborreceram quando se impunha, no meu país, que a
poesia devia ser escrita seguindo um vector da propaganda, de circunstância.
Tenho uma lâmina muito bem afiada e cáustica, capaz de oxidar as ideologias e
ortodoxias e vários ismos que se nos vão ditando. Eu posso entender o seu
deve-ser na perspectiva de inovação e diálogo entre as diferentes formas de
criação e representação. Penso que a relação se inscreve no domínio da
imagética. O encanto que me dá ler poemas cheios de imagens, simbolismos, rios,
mar, expressões, diria, da linguagem e do corpo erótico, fruindo, com gozo,
acasalados numa pátina que transforme a imaginação em realidade. Tenho para mim
que a literatura é essa realidade abissal: a alquimia. Alquimia de cores, de
pessoas, homens e mulheres, alquimia de sentidos. Dos cinco sentidos. Ou de
seis. Os odores e cheiros. Onde há uma boa pintura ou um texto literário não
raramente me passa isso que aprisiona os sentidos. O que me leva a ter
preferência a um ou outro fazedor de arte.
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Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos (num sentido amplo)?
Deles, quais reivindicarias por não serem suficientemente conhecidos (ainda)?
- Adelino Timóteo: Os meus
referentes criativos são Luís Carlos Patraquim, Rui Knopfli. Já são muito bem
conhecidos em Portugal.
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Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a
sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária e cultural
hoje?
- Adelino Timóteo: Acho que as
redes sociais e a internet rebentaram a escala. Quando comecei a escrever, era
tudo muito romântico. Lia um livro e depois o trocava com outros amigos. Depois
conversávamos à volta do tal livro. Hoje não. Vejo nas redes sociais alguém
pedir aos amigos que enumere dez livros que acharia mais belos. Muitos vão ao
google, copeiam os títulos e os colam. Não se conversa em torno do livro com
aquele romantismo com que me apaixonara na adolescência. Mas eu defendo que há
necessidade de se promoverem tertúlias, círculos de interesses, para que não
sejamos uma sociedade acomodada na hipocrisia e a aparência fundada na ilusão
de produzir aduladores e admiradores. Tenho cada vez maior felicidade de
frequentar os Book Cafes. As revistas literárias electrónicas são também um
estímulo inovador.
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Palavra Comum: Fala-nos da tua experiência como escritor moçambicano e
africano. Que influências tem sobre a tua escrita?
- Adelino Timóteo: Como
escritor, felizmente, eu tenho duas costelas. Uma mais universalizante, outra
africana, moçambicana. Por causa da minha educação. Nasci num país mestiço. O
meio era um pequeno bairro. Onde o respeito pelo outro, a convivência, a aproximação,
me deram as balizas que me permitem estar bem comigo mesmo, no sentido de quem
sou eu, donde venho e para onde vou. Eu me vejo mestiço. A mestiçagem a que me
refiro não tem sustentáculo na cor. A minha matiz é bantu, fascinado pela Ilha
de Moçambique, desde logo ponto da mitonímia em relação a esta nação crioula. A
província da Zambézia, o vale do Rio Zambeze, tem os condimentos de uma riqueza
crioula, mestiça, um baú, um manancial, não sendo apenas uma riqueza, é um
grande filão para oferecer ao mundo. A minha escrita, naturalmente, não é
isenta deste mosaico lindo. Não é isenta deste imaginário onde se cruzam
portugueses, goeses, índios, galegos, árabes, fenícios, brasileiros e bantus. É
isso que augurei oferecer àqueles que gostam de ler-me: um cruzamento de povos
e religiões. Do antigo colonizador herdei a língua, na qual escrevo como
Caliban que se apropriou da língua como uma ferramenta, um instrumento/arma de
arremesso, não para se prostrar ante a ninguém, mas sobretudo para me libertar
de todos os Prósperos, que ainda há por diante e à volta. Português é a minha
língua materna. Das línguas bantas não consigo formar uma única frase, mas
entendo o ndau, sena e pouco de changane.
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Palavra Comum: Que é o que desconhecemos, desde Europa, sobre Moçambique, e
consideras que seria relevante dar a conhecer?
- Adelino Timóteo: Não gosto
de ser amargo, pois isso dá azo a interpretações com que me podem tomar por
angustiado. Daí a razão de me preocupar pouco com entrevistas. A verdade dói.
Vamos lá: não sei e muito menos acredito que a Europa nos conheça. O marketing
e razões fundadas no passado, infelizmente ainda preso, um pesadelo de que
muitos tardam a se libertar, não ajuda, daí toda a propaganda é artificial e
manejada por aquelas vozes astutas, os que se parecem com a geada. Em sessenta
anos não cabem pelos dedos das mãos e dos pés as vozes que pertençam ao
substracto que fez parte do Caliban. A reconciliação tarda. As vozes audíveis
são aquelas descendentes do Próspero. A roda do tempo gira em nosso favor. Não
é de entristecer. O paternalismo e o factor pigmentação sempre foi uma
característica na forma de agir da Europa, mesmo durante os quinhentos anos de
ocupação. Se a Europa quiser conhecer África terá que sair do pedestral, e se
tiver calçada, terá que descalçar, com a mesma reverência que fazemos aos
nossos velhos, para penetrar nas furnas desta cultura, civilização, e de tudo
aquilo que desconhece. Quando leio alguns livros que tentam caracterizar os
nativos só rio-me. A nossa poeta Noémia de Sousa é premonitória e melhor
explica: “… se quiseres compreender-me/ vem debruçar-te sobre minha alma de
África,/ nos gemidos dos negros no cais/ nos batuques frenéticos dos muchopes/
na rebeldia dos machanganas/ na estranha melancolia se evolando/ duma canção
nativa, noite dentro…// e nada mais me perguntes,/ se é que me queres
conhecer…/ Que não sou mais que um búzio de carne,/ onde a revolta de África
congelou/ seu grito inchado de esperança”.
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Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre a Galiza (e também sobre a sua
relação com a Lusofonia)?
- Adelino Timóteo: Eu venho
notando já desde a muitos anos que a Galiza é o nono país de língua Portuguesa.
Falta é só uma fórmula mágica. Ao nível político ou administrativo. Português e
Galego são uma língua comum. Estive a participar num festival de poesia em
Salvaterra e fiquei impressionado com a ressonância do português que ali se
fala. E não me senti estranho aí, de maneira nenhuma. Mesmo quando estive entre
os estudantes na Universidade de Filologia de Compostela. Apenas difere na
grafia. Heráclito diz que tudo flui. Camões textualiza: “mudam-se os tempos,
mudam-se as vontades”. Penso que o resto ficará entregue ao tempo.
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Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?
- Adelino Timóteo: O meu
ofício é a caneta e o papel. A tinta e a tela. Durante os últimos seis/sete
anos trabalhei doze horas por dia. Tenho três romances por publicar. Dois
livros de poesia, um deles está no prelo. Tenho pronto um livro explosivo, de
âmbito biográfico. Andei muito tempo na Torre do Tombo a investigar a história
recente do meu país e a confrontar com outras fontes. Caberá ao meu editor
lançar-se em mangas de camisas. Se há projectos, penso, devo sair de férias. E
prolongadas. Mar do Índico. Sol e areia branca.
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Palavra Comum: O que achas de Palavra Comum? Que gostarias de ver também aqui?
- Adelino Timóteo: Acho que a
Palavra Comum, como um projecto que nasce na Galiza, transmite-me a respiração
e a porosidade no que tange aos sentires dos galegos, neste mundo da lusofonia.
E ainda bem. Os galegos devem avançar e não ficarem à margem, o non facere tem
seus riscos; transforma os espectadores em seres amargos. Vejo beleza até na
amargura, mas quando a dose é elevada ela torna-se indigesta. A Palavra Comum,
do pouco que já li, proporciona-me essa leveza, como se os fantasmas estivessem
a apartar, reconciliando-me com algo elementar e importante: nunca ter medo do
futuro. O futuro, para quem sonha, é uma doença que contagia as mentes liberais
e ilumina os fracos. Vejo na Palavra Comum, matizando com Octávio Paz, uma arma
carregada de esperança. Ramiro Torres –
Galiza in “Palavra Comum”
Ramiro
Torres nasceu na Corunha no 1973 e estudou Graduado Social. Tem
publicado poemas na revista 'Poseidónia' e 'Agália', assim como no blogues 'A
fábrica' e 'A fábrica da preguiça'. Inaugurou as edições do Grupo Surrealista
Galego com o seu livro "Esplendor Arcano".
Adelino
Timóteo - Nasceu a 3 de Fevereiro de 1970, na cidade da Beira.
Formado em docência de língua portuguesa, não chega a exercer a sua profissão.
É licenciado em direito. Exerce o jornalismo paralelamente com as artes
plásticas. Em 2004 e 2007 foi respectivamente homenageado pelo Instituto
Superior Politécnico e Universitário (ISPU) e Conselho Municipal da Beira, no
primeiro caso pela sua poesia, no segundo por seu contributo cultural para a
urbe. Em 1999 venceu o Prémio Anual do SNJ para a melhor Crónica Jornalística.
Em 2001 venceu o Prémio Nacional Revelação de Poesia AEMO, em 2013 foi premiado
Melhor Escritor da Cidade da Beira. Um excerto de seus poemas traduzidos em
Italiano consta da revista "Dis Uguaglianze". São as seguintes
publicações deste autor em poesia: “Os segredos da arte de amar“ (1999, AEMO),
“Viagem à Grécia através da Ilha de Moçambique“ (2002, NDJIRA), “A Fronteira do
Sublime” (AEMO), “Dos Frutos do Amor e Desamores até à Partida” (2011, Alcance
Editores) - Prémio BCI 2011, “Livro Mulher (Alcance Editores 2013). Na ficção
narrativa destacam-se lhe: “Mulungu" (2007, Texto Editores), "A
Virgem da Babilónia" (2009, Texto Editores), "Nação Pária"
(2010), “Não Chora, Carmen” (2013), “Nós, os do Macurungo” (2013), todos pela
chancela da Alcance Editores, “Na Aldeia dos Crocodilos” (Contos para o Mundo),
“Apocalipse dos Predadores” (Chiado Editora). Está antologiado na Antologia da
Poesia Moçambicana “Nunca mais é Sábado“ (Dom Quixote, Lisboa),
"Colectânea Breve da Literatura Moçambicana" (Identidades),
"Poesia sempre", (2006, Biblioteca Nacional do Brasil).
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