Réptil
identificado como uma espécie nova para a ciência. Esta é a sua história
científica, suspensa 45 anos e agora retomada a partir de uma prateleira com
colecções de história natural.
Estavam preservados em
álcool, em frascos, num dos armários da sala que o Instituto de Investigação
Científica Tropical (IICT), em Lisboa, dedica às colecções de répteis e
anfíbios das antigas colónias portuguesas. Um dia ao abrir o armário, Luís
Ceríaco deparou-se com uma preciosidade científica esquecida durante mais de
quatro décadas. Em três dos frascos, as etiquetas diziam que as oito lagartixas
lá dentro tinham sido recolhidas no início dos anos 70 nas Pedras Tinhosas,
outro nome do ilhéu da Tinhosa Grande, 20 quilómetros a sul da ilha do
Príncipe. “Esses frascos chamaram-me imediatamente a atenção, por dois motivos:
não se conhecia na bibliografia científica qualquer referência a uma lagartixa
no ilhéu da Tinhosa Grande, e o animal pareceu-me logo diferente das populações
de lagartixas de São Tomé e Príncipe, que tenho estudado”, conta o biólogo.
Analisou os animais
meticulosamente. Contou as escamas, mediu-lhes o corpo, fez comparações com
exemplares das ilhas de São Tomé e Príncipe e do continente africano e ainda
uma revisão da literatura científica sobre essas lagartixas.
Em relação às suas
congéneres, as principais diferenças morfológicas desta lagartixa estão na cor,
no tamanho (pode atingir mais de 11 centímetros, desde o nariz até à cloaca) e no
número das escamas relativamente largas que lhe cobrem o corpo. “O animal é
mais escuro do que as espécies das ilhas envolventes e do continente africano.
É de um castanho muito escuro, quase negro, com manchas um pouco mais claras na
zona dorsal. Também é bastante mais comprido e de proporções mais largas do que
as espécies das ilhas envolventes”, descreve-nos Luís Ceríaco, curador de
répteis e anfíbios do Museu Nacional de História Natural e da Ciência (Muhnac),
em Lisboa, e bolseiro de pós-doutoramento da Academia das Ciências da
Califórnia, em São Francisco, EUA. “Percebi que estava perante uma espécie
diferente de todas as outras conhecidas até agora.”
Resultado, o biólogo
apresentou ao mundo uma nova espécie de lagartixa do ilhéu da Tinhosa Grande,
como único autor de um artigo científico na revista Zootaxa, em Junho.
Remetendo para a forma como foi identificada, uma parte do título tem um toque
poético, invulgar na literatura científica: “Perdida no meio do mar, encontrada
na parte de trás de uma prateleira.”
O armário que Luís Ceríaco
abriu, em Maio de 2014, era aquele onde estavam arrumadas as lagartixas do
género Trachylepis. Os oito exemplares tinham sido apanhados em 1970 e 1971,
nas últimas expedições de Portugal durante os tempos coloniais aos ilhéus da
Tinhosa Grande e da Tinhosa Pequena. “Os exemplares não tinham nenhum nome
científico fixado. Estavam conservados em álcool e em boas condições”, reporta
o artigo.
Além das etiquetas nos
frascos, havia outras com as mesmas informações atadas com um cordel a cada um
dos animais. Eram, no entanto, omissas quanto ao nome do recolector e ao de
quem chefiou as expedições no terreno. “O que se sabe é que os exemplares estão
nas colecções”, resume o biólogo.
Na Tinhosa Grande e Tinhosa
Pequena, com apenas 20,5 e 3,3 hectares, respectivamente, não há habitantes
humanos e a vegetação é escassa. Mas estes dois rochedos no meio do mar são a
casa de muitas aves marinhas e um local importante de nidificação. Encontram-se
lá o alcatraz-pardo (Sula leucogaster), o garajau-de-dorso-preto (Onychoprion
fuscata), a tinhosa (Anous stollidus), a tinhosa-de-barrete (Anous minutus) e o
rabo-de-palha-de-bico-laranja (Phaeton lepturus). Sendo a maior colónia de aves
marinhas do golfo da Guiné, onde se abrigam mais de 300 mil aves nidificantes,
as Tinhosas foram recentemente incluídas na Lista de Zonas Húmidas de
Importância Internacional. Estão também abrangidas pela classificação recente
da ilha do Príncipe como Reserva Mundial da Biosfera da UNESCO.
Apesar destas protecções
ambientais, há pessoas por perto: “De tempo a tempo, o ilhéu principal é
visitado por pescadores locais, que usam as águas para pescar e a terra para
secar peixe”, refere o artigo. “Tanto quanto sabemos, os pescadores não apanham
a Trachylepis adamastor, embora a introdução de predadores externos, como
roedores, gatos e cães, possa exterminar uma população isolada como esta.”
Regressos
à Tinhosa Grande
Mas ao fim de 45 anos desde
a recolha dos oito exemplares, será que esta lagartixa ainda vivia no ilhéu?
“Pus-me a pensar quem é que lá teria ido recentemente, para confirmar se esta
espécie ainda lá existia”, conta Luís Ceríaco. “As Tinhosas são um local
especial para a conservação das aves marinhas e têm sido feitos vários
trabalhos. Lembrei-me de dois colegas ornitólogos, Nuno Barros e Ross Wanless,
que tinham passado um dia no ilhéu a estudar aves, numa expedição promovida
pela SPEA [Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves] em 2013”, acrescenta.
“Escrevi-lhes a perguntar se por acaso tinham visto alguma lagartixa. E eles
disseram que sim, que viram várias lagartixas e que tiraram fotografias.”
Estava confirmado que a
lagartixa continuava a existir na Tinhosa Grande. Numa das fotografias vê-se
mesmo uma a deliciar-se com o ovo de uma ave. “Expedições recentes aos ilhéus
confirmaram a existência da população de lagartixas e também da existência uma
espécie de osga desconhecida até agora”, adianta o artigo.
Por ora, sabe-se que esta
lagartixa só existe na Tinhosa Grande. O nome científico a dar-lhe surgiu logo
na cabeça do biólogo português: Trachylepis adamastor. E, como nome comum em
português, lagartixa-adamastor.
Porquê essa referência à
figura mítica do Adamastor? Em Os Lusíadas, Luís Vaz de Camões retrata o
Adamastor como um gigante que habita num rochedo no oceano, no fim de tudo, o
Cabo das Tormentas, rebaptizado Cabo da Boa Esperança depois de ter sido dobrado,
pela primeira vez, pelos portugueses no século XV. “Estamos a falar de uma
espécie que ocorre em território da lusofonia. E Os Lusíadas são uma das obras
mais importantes da língua portuguesa”, justifica o biólogo. “Outra razão
prende-se com a própria forma do animal. Esta espécie, dentro do seu género, é
gigante e vive num rochedo no meio do mar.” Para Fernando Pessoa, na Mensagem,
o Adamastor era o Mostrengo, “que está no fim do mar”. Tivesse o biólogo
pensado logo no Mostrengo e a lagartixa teria agora outro nome.
Para já, não é possível
avançar muito mais sobre a Trachylepis adamastor. Quantas lagartixas vivem no
ilhéu? O que comem exactamente? Como é a sua diversidade genética? Há quanto
tempo chegaram ali os seus antepassados? E, entre outras questões, vieram de
onde?
“É possível que a sua
diversidade genética seja muito baixa, porque os primeiros indivíduos a lá
chegarem e a darem início à nova espécie devem ter sido poucos. O que significa
que estes animais se têm reproduzido entre eles durante gerações e gerações”,
considera Luís Ceríaco. “Uma diversidade genética baixa é preocupante, porque
essas populações são susceptíveis de não se conseguirem adaptar a mudanças no
ambiente. Somando isto ao facto de não sabermos o número de exemplares e de ser
um local geográfico isolado, em que a população não pode crescer para mais lado
nenhum, estamos perante uma das espécies mais ameaçadas de vertebrados do
planeta”, alerta o biólogo, que deixou esta preocupação também no artigo.
Embora as aves abundem nas Tinhosas,
elas alimentam-se de peixe e a lagartixa não deve ter predadores naturais. “Não
sabemos qual é a relação que esta lagartixa tem com as aves que habitam ou
nidificam no ilhéu. Sabemos apenas que, oportunisticamente, pode alimentar-se
de ovos, porque se viu uma a comer o interior de um ovo partido. Pelo seu
tamanho, é um animal que não consegue partir um ovo nem caçar aves”, considera
Luís Ceríaco. “É possível que se alimente da fauna elevada de insectos que
parasitam os ninhos das aves.”
Para começar a responder às
interrogações trazidas pela nova espécie, Luís Ceríaco precisa de ir à Tinhosa
Grande. Se conseguir financiamento de um fundo internacional ao qual se
candidatou, no início de 2016 irá ao encontro da lagartixa-adamastor. E, assim,
o que começou num armário com colecções de história natural poderá ter
continuação numa viagem a um rochedo rodeado de mar.
Nessa expedição, pretende-se
igualmente recolher tecido das lagartixas, para obter ADN, o que não foi
possível nos oito exemplares do IICT. “Devido ao facto de serem antigos e terem
estado [inicialmente] em formol, não conseguimos tirar ADN.”
Além de estudos sobre a
diversidade genética, as amostras de ADN permitirão traçar a relação evolutiva
deste animal com espécies do mesmo género, o Trachylepis. “Saber de onde vem e
quem são os familiares mais próximos desta espécie pode dizer-nos quando lá
chegaram e de que zona vieram os seus antepassados que colonizaram o ilhéu.
Esta espécie teve origem numa população de São Tomé ou do Príncipe? Ou teve
origem numa população que vedirectamente do continente africano e não passou
por outras ilhas?”
As
Galápagos lusófonas
Todos esses conhecimentos
poderão ajudar a criar um programa de conservação. Que importância tem, afinal,
descobrir uma espécie? “É descobrir mais uma página do livro da vida e trazê-la
a público. Além de aumentarmos o conhecimento do mundo natural, quando sabemos
que uma espécie é única, podemos justificar a sua conservação”, responde o
biólogo. “Como a biodiversidade está ameaçada pelo crescimento da população
humana, pelas alterações do habitat e do clima, estamos numa corrida contra o
tempo para descobrir a diversidade da vida no planeta.”
Aos 27 anos de idade, Luís
Ceríaco tem dado o seu contributo. No doutoramento, dedicado à história da
zoologia dos séculos XVIII, XIX e XX, tinha-se cruzado com a referência a um
mamífero insectívoro numa carta guardada no arquivo histórico do Muhnac.
Enviada para Lisboa pelo zoólogo português Francisco Newton, responsável pela
exploração das colónias portuguesas do Golfo da Guiné na segunda metade do
século XIX, essa carta acompanhava também, entre outras coisas, “um rato
insectívoro” que lhe parecia novo. Aproveitando uma visita ao Príncipe, em
2013, Luís Ceríaco procurou o animal junto da população local. Disseram-lhe que
sim, que havia muitos desses animais por ali, e que lhes chamavam fingui, o
termo em crioulo para rato pequeno. Pouco depois, regressou à ilha em busca do
animal na floresta – até que o encontrou, e assim identificou, com outros
colegas, na revista Mammalia de Março deste ano, uma nova espécie de mamífero
insectívoro: o musaranho-fingui (Crocidura fingui).
Agora, nos seus estudos das colecções antigas
de répteis e anfíbios, bem como da biodiversidade de São Tomé, acrescentou outra
página ao livro da vida na Terra. Em breve, espera juntar-lhe mais páginas,
quando concluir outro estudo sobre as lagartixas atribuídas à espécie
Trachylepis maculilabris. Originalmente, esta espécie foi descrita no
continente africano. “Nas ilhas de São Tomé e Príncipe, atribuíram-se os
animais que lá existiam a essa espécie. Mas essas populações foram mal
classificadas.”
Por isso, aquelas lagartixas
do género Trachylepis vão ser divididas em duas espécies distintas – a de São
Tomé, castanho-clara, com pintas brancas e pretas no dorso; e a do Príncipe, de
um castanho-escuro uniforme no dorso e o ventre azul-esverdeado. “Do ponto de
vista evolutivo, as ilhas São Tomé e Príncipe são autênticas Galápagos. Podemos
mesmo chamar-lhes as Galápagos lusófonas.”
O biólogo não termina o
artigo científico da lagartixa sem outro alerta, agora em defesa das colecções
do IICT – um dos laboratórios do Estado que viu aprovadas, em conselho de
ministros em Maio deste ano, a sua extinção e integração, numa parte, na Universidade
de Lisboa e, noutra parte, na Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das
Bibliotecas. “A descrição do Trachylepis adamastor (…), com base em oito
espécimes esquecidos numa prateleira das colecções zoológicas do IICT,
recorda-nos a importância de salvar estes repositórios da biodiversidade”,
lê-se no artigo. “As colecções zoológicas do IICT são da maior importância para
o conhecimento da biodiversidade de África, uma vez que cobrem áreas
[geográficas] e áreas taxonómicas mal representadas nas colecções mundiais”,
frisa ainda. “Como muitas outras pelo mundo, estão em grande risco devido ao
futuro incerto da instituição e à falta de condições e funcionários para as
manterem.” Teresa Firmino – Portugal in "Jornal Público"
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