O
cinema moçambicano nasceu pelas mãos de Ruy Guerra, num filme sobre o massacre
de Mueda.
Moçambique completou os seus
40 anos de independência na semana passada, e como parte da última leva de
países libertados da colonização africana (com excepções pontuais), viu surgir
o seu próprio cinema praticamente na virada dos anos 80. A exemplo do que
aconteceu na maioria do continente, o seu cinema também surgiu pelas mãos de um
membro da sua diáspora. A grande diferença, no entanto, é que o tal realizador,
no caso Ruy Guerra, já dispunha de uma carreira internacional quando arrancou o
cinema moçambicano com Mueda, Memória e Massacre, lançado em 1980.
Nascido e criado em Maputo
numa família de origem portuguesa, em 1931, Ruy Guerra ainda no período
colonial, aos 22 anos, iniciou uma trajectória internacional que, apesar de não
o tornar menos moçambicano, fez com que a sua nacionalidade, ou melhor, pertencimento,
fosse algo difuso entre várias terras. A primeira das terras estrangeiras foi
França, onde estudou cinema nos anos 50, antes de desembarcar no solo que viu
nascer a maior parte das suas obras, o Brasil.
Apesar de ter sido educado em
cinema no amanhecer do movimento francês que acabou por ser conhecido como
nouvelle vague – a nova onda – que consagrou cineastas como François Truffaut,
Claude Chabrol e Jean-Luc Godard, Guerra abortou o seu projecto de cinema
francês um ano antes da explosão da vaga, em 1958, e foi viver para o Brasil.
Apesar das declaradas diferenças entre o moçambicano e os franceses, sobretudo
políticas, a nouvelle vague surge com toda a força e cobra o seu débito de seis
anos vividos em França em Os Cafajestes, de 1962, o primeiro filme
longa-metragem do realizador. O cinema brasileiro nunca mais seria o mesmo
depois do nu frontal de Norma Bengell a correr numa praia, uma das cenas mais
icónicas da cinematografia latino-americana.
O Brasil seria a sua base,
terra da sua obra-prima Os Fuzis, mas ainda nos anos 60 Guerra ganhou o mundo,
com Os Ternos Caçadores – produção internacional com o actor hollywoodiano
Sterling Hayden. Trabalhou ainda para os cinemas mexicano e português e para as
televisões de França e Espanha.
Com Moçambique, o reencontro
foi em 1980, na primeira longa-metragem da história do país, uma reconstituição
entre a ficção e o documentário do massacre de Mueda, um dos momentos-chave da
história colonial do país, quando forças portuguesas dispararam contra a
população nativa na vila no norte do país que reivindicava a independência.
Acredita-se que mais de 600 pessoas foram mortas.
Na região, os moçambicanos,
seguindo a tradição oral africana, começaram a encenar os eventos do massacre
entre eles mesmos, numa espécie de teatro ao ar livre, no meio da rua. O filme
é um registo dessa encenação, e pode passar tanto como um documentário quanto
uma ficção, já que, ao mesmo tempo que tenta filmar essa manifestação cultural
como ela é, há uma notável interferência e contribuição do realizador para
aquele momento. A própria representação popular é alterada pela presença das
câmeras, como nos mostra a fala de um “orientador” da massa, que atribui a si
mesmo (ou é escalado pelo filme?) a função de encenador.
Entre os cidadãos, alguns
representavam os locais e outros os colonos, e num momento politicamente
cáustico, os amadores que representam os portugueses empunham o seu melhor
sotaque lisboeta, numa reversão do ridículo em geral atribuído pela metrópole
ao colonizado que não sabe dominar a língua. A língua, aliás, é forte
personagem do filme, já que o português é reservado ao contacto com o colono, e
todo o resto é falado em idiomas da região fronteiriça com a Tanzânia.
Esse formato – muito próximo à
etnoficção na qual um realizador pede que amadores encenem as suas próprias
vidas, como Jean Rouch, por exemplo – é interrompido pelo uso de ferramentas
mais tradicionais, como depoimentos de pessoas que fazem parte da encenação,
que explicam a história do massacre. Tais intervenções são fundamentais para
olhares estrangeiros, uma vez que Ruy Guerra acaba por preservar muito do caos
da encenação popular, que, por repetida todos os anos, tem uma história
familiar a todos que a interpretam, mas não claras para quem não a conhece. Não
é um filme enciclopédico sobre o massacre, as informações são muitas vezes
desencontradas e as relações de causa e consequência muitas vezes beiram o
obtuso.
Em vez de um filme
informativo, temos, como ressalta o título, um filme sobre a preservação da
memória e da história, e nisso, em vez de caótico, é um filme até sofisticado,
de forte identidade terceiro-mundista, não refinada, algo bem típico do início
dos anos 80, no início da ladeira final da guerra fria. Apesar de tudo, alguns
momentos se destacam pela força cênica, como o momento do massacre propriamente
dito. Num filme em que as pessoas simulam acções quase que como em pantomima,
ouvir o barulho de tiros reais enquanto as pessoas atiram-se ao chão como
cadáveres não deixa de ser um choque, uma vez que o filme tende mais ao
documentário – o que dá uma força ainda maior a esses rompantes ficcionais.
Ruy Guerra ainda ficou algum
tempo em Moçambique, onde participou na criação do Instituto Nacional de
Audiovisual e Cinema (na altura apenas Instituto Nacional de Cinema), mas logo
seguiu com a sua carreira mundo afora. É justamente o mesmo instituto que hoje
resgatou Mueda, Memória e Massacre para o formato DVD, em parceria com a
Universidade Bayreuth-Berlin, da Alemanha. O filme foi lançado apenas para fins
educativos e foi distribuído a escolas e universidades, sem possibilidade
comercial.
Até agora, a parceria lançou
também Canta Meu Irmão, Ajuda-me a Cantar, de José Cardoso, e O Tempo dos
Leopardos, do iugoslavo Zdravko Velimirovic (o filme é uma co-produção), além
de algumas curtas do INAC, todos do início dos anos 80.
Apesar do fôlego inicial, o
cinema moçambicano teve destino semelhante ao angolano, desenvolveu-se de forma
completamente incipiente, com um ou outro filme produzido, em ritmo
praticamente bissexto. Os cineastas mais conhecidos do país são Sol de Carvalho
e Licínio Azevedo, este último um brasileiro radicado no país desde 1975. Saymon Nascimento – Angola in “Rede
Angola”
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