I
Poucos poetas brasileiros
contemporâneos, como Vera Lúcia de Oliveira, paulista de Cândido Mota radicada
na Itália há mais de duas décadas, tiveram sua produção poética tão analisada e
incensada. A lista vai de José Saramago (1922-2010), Prêmio Nobel de Literatura
de 1998, o único da Língua Portuguesa, a poetas e acadêmicos como Ferreira
Gullar, Lêdo Ivo (1924-2012) e Carlos Nejar, passando por estudiosos como a
filóloga e historiadora da cultura Luciana Stegagno Picchio (1920-2008), que
foi considerada a mais importante luso-brasilianista da Europa, entre outros.
Não bastasse isso, ainda
recentemente, um fino poeta como Albano Martins, professor da Universidade
Fernando Pessoa, do Porto, nas páginas do quinzenário portuense As Artes entre
as Letras, de 11 de março de 2015, ocupou-se deste O músculo amargo do mundo
(São Paulo, editora Escrituras, 2014) para dizer que Vera Lúcia afirma, “em
cada verso, em cada poema, a sua humanidade e o seu compromisso com o mundo em
que vive, organizado segundo leis que não favorecem a justiça, a igualdade e
fraternidade”. E acrescentou: “No mais, é a expressão curta, sincopada, ao rés
da fala (da fala poética, da fala do poeta), que todavia se basta na sua
reduzida dimensão”.
No ensaio “O realismo
poético de Vera Lúcia de Oliveira”, que escreveu especialmente para a
apresentação deste livro, Ivan Marques, professor de Literatura Brasileira na
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
(FFLCH-USP), ressalta que o lirismo da autora tem raízes no cotidiano, “de onde
ela extrai seus pequenos enigmas”.
Depois de observar que o
mundo visto pelo olhar da poeta é “cheio de misérias e desfalcado de esperanças
– um mundo observado de perto, a partir de um ponto de vista generoso, mas
sobretudo lúcido e pessimista” –, Marques desvenda a metáfora que justifica não
só o título como o livro por inteiro, ressaltando que, em Vera Lúcia, o músculo
do mundo, sua força motora, é a dor que “nutre e movimenta especialmente a
existência das criaturas miseráveis, que vivem à margem”, conclusão a que
também chega quem lê estes versos logo nas páginas iniciais:
virar esquinas do avesso
ficar como cachorro louco mordendo
o músculo amargo do mundo
II
Marques localiza ainda as
raízes da poesia de Vera Lúcia em seu gosto pelo período modernista da poesia
brasileira, que teve início com a Semana de Arte Moderna de 1922. É de lembrar
que pesquisa de doutorado realizada pela autora nos anos 90 na Itália abordou
os livros Pau-Brasil, de Oswald de Andrade (1890-1954), Martim Cererê, de
Cassiano Ricardo (1895-1974) e Cobra Norato, de Raul Bopp (1898-1984), o que
justificaria, a nível formal, a preferência da poeta pela abolição de regras,
pela opção por formas livres, pela ausência de letras maiúsculas, vírgulas e
pontos, pelo tom coloquial, pela
linguagem das ruas estilizada. Veja-se,
por exemplo, estes versos:
esse cão que me segue
é minha família, minha vida
ele tem frio mas não late nem pede
ele sabe que o que eu tenho
divido com ele, o que eu não tenho
também divido com ele
ele é meu irmão
ele é que é o meu dono
A par da ausência de
formalismo, o que se destaca mesmo na poesia de Vera Lúcia é a sua opção
franciscana pela pobreza e sua solidariedade com o marginalizado das grandes
cidades brasileiras, vítimas de um modelo de patrimonialismo, que é apenas uma
continuação de um sistema social que veio de Portugal à época da colônia,
quando a nobreza, para se livrar da arraia-miúda que insistia em querer comer e
sobreviver, mandava legiões de desvalidos para as conquistas, desertificando
vilas e cidades.
Se à época colonial os
pequenos burgos brasileiros viviam infestados de gente disforme, vítimas de
bócio, a doença do papo, e leprosos, hoje o que se vê nas ruas e avenidas das
grandes cidades é um cortejo de desfavorecidos: mendigos, desocupados,
catadores de lixo, moleques malabaristas, vendedores de água batizada e mães em
andrajos que exibem seus filhos para comover e convencer alguém que passa a lhe
atirar ao menos a moeda de menor valor.
É a dor que sente a poeta ao
ver este país em naufrágio que pulsa nestes versos, a dor de ver uma nação sem
rumo em que a batalha da educação nas escolas públicas e privadas parece
irremediavelmente perdida e milhares de jovens são atraídos para o consumo e
tráfico de drogas ou para a prostituição, enquanto os ladravazes de recursos
públicos festejam impunes pelos salões da república:
meu país é do lado de fora que ele mais dói
meu país tem calçada chiqueiro bueiro onde
gente compete com bicho e perde
meu país tem mercado avenida rua semáforo
onde com pouco se compra um corpo
III
Vera Lúcia de Oliveira,
formada em Letras pela Universidade Estadual de São Paulo (Unesp), campus de
Assis, doutorou-se em Línguas e Literaturas Ibéricas e Iberoamericanas pela
Universidade de Palermo (1997) e é professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira
na Faculdade de Letras e Filosofia da Universidade de Estudos de Perúgia, na
Itália. Ensaísta e tradutora, organizou antologias de vários poetas, entre as
quais se destacam aquelas que fez com poemas de Lêdo Ivo, Carlos Nejar e Nuno
Júdice. Em 2005, ganhou o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras com
o livro A chuva nos ruídos (São Paulo, Escrituras, 2004).
A autora escreve tanto em
português como em italiano e seus poemas foram publicados em antologias no
Brasil, Portugal, Itália, Espanha, França, Alemanha, Romênia e Estados Unidos.
Além de produção ensaística, como poeta recebeu o Prêmio Sandro Penna (Itália,
2009), o Prêmio Popoli in Cammino (Itália, 2005), o Prêmio Internacional de
Poesia Pasolini (Roma, 2006) e o Prêmio Internacional de Poesia Alinari
(Florença, 2009). Em 2006, o seu livro inédito Entre as junturas dos ossos
recebeu do Ministério da Educação o Prêmio Literatura para Todos e foi
publicado pelo órgão governamental com tiragem de 110 mil exemplares e
distribuído nas escolas e bibliotecas de todo o Brasil.
Entre os seus vários livros,
destacam-se: Geografie d´ombra (poesia, Veneza, editora Fonèma, 1989), Tempo de
doer/Tempo di soffrire (poesia, Roma, editora Pellicani, 1998), La guarigione
(poesia, Senigallia, editora La Fenice, 2000), Poesia, mito e história no
Modernismo brasileiro (ensaio, São Paulo, Editora da Unesp/Edifurb, 2002),
Verrà l´anno (poesia, Fara, editora Rimini, 2005), Storie nella storia: le
parabole di Guimarães Rosa (ensaio, Lecce, editora Pensa, 2005), No coração da
boca (poesia, São Paulo, Escrituras, 2006), A poesia é um estado de transe
(poesia, São Paulo, Portal Editora, 2010), La carne quando è sola (poesia,
Florença, Società Editrice Fiorentina, 2011) e Vida de boneca (poesia infantil,
São Paulo, Editora SM, 2013). Adelto
Gonçalves - Brasil
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O
músculo amargo do mundo, de Vera Lúcia de Oliveira. São Paulo:
Editora Escrituras, 86 págs., R$ 24,80, 2014. Site: www.escrituras.com.br
E-mail: imprensa@escrituras.com.br
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de
São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José
Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São
Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho,
2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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