Evitar
a morte de crianças no mundo em desenvolvimento é uma questão de recursos mas
também de estruturas sociais e vontade política. Alguns países não ficam nada
bem na fotografia.
Semanário Expresso |
Não está em primeiro lugar,
mas está em segundo.
Motivado pelo artigo
devastador sobre Angola que Nicholas Kristof, do New York Times, escreveu na
semana passada, passei algum tempo nos últimos dias a observar o ranking
mundial da mortalidade infantil disponibilizado nos indicadores de desenvolvimento
do Banco Mundial. Em termos da taxa de mortalidade infantil (TMI), Angola não
está em primeiro lugar a contar do fundo da tabela, mas está em segundo: em
2013, por cada mil crianças que nasceram neste país, 101 morreram antes de
atingirem a idade de um ano.
Kristof, porém, refere-se a
Angola como "o país mais mortal para as crianças" e há um outro
sentido em que tem razão: no que se refere à taxa de mortalidade com menos de
cinco anos, Angola está mesmo no fundo da tabela. Em todo o caso, mesmo o
segundo lugar a contar do fim no que se refere à taxa de mortalidade infantil
em sentido estrito tem muito pouco de honroso: é que enquanto a Serra Leoa, que
está em último lugar com 107 óbitos de crianças por cada mil nascimentos, conta
com um PIB per capita de 1.544 dólares, Angola tem um PIB per capita cinco
vezes superior: 7.736 dólares. Ou seja, Angola dispõe, em termos médios, de
cinco vezes mais recursos por pessoa do que a Serra Leoa - mas tem um
desempenho praticamente idêntico em termos de vidas de crianças salvas.
Quando digo "vidas de
crianças salvas", não se trata de um exagero, pois a verdade é que é
possível reduzir quase a zero a mortalidade de bebés com menos de um ano. Em
Portugal, por exemplo, a TMI em 2013 foi de 3,1 crianças por mil nados-vivos.
Na Islândia, que neste momento é a campeã mundial neste domínio, foi de 1,6.
Quer isto dizer que por mais que haja sempre acidentes trágicos e doenças raras
face às quais pouco ou nada se pode fazer, a vasta maioria das mortes de bebés
são evitáveis - dispomos do conhecimento e da tecnologia para isso, assim
existam os recursos e a vontade colectiva que o permitam. Não é apenas uma
questão de medicina preventiva ou curativa - passa também, de forma central,
pelas questões das condições de habitação, saneamento, nutrição, acesso a água
potável ou existência de conflitos armados -, mas é possível reduzir quase a
zero a TMI. Dezenas de países pelo mundo fora fizeram-no.
Claro que a questão dos
recursos não é de somenos importância. São necessários recursos para garantir
habitação, nutrição ou saneamento em condições, e são necessários recursos para
montar e manter um sistema de saúde que efectivamente salve vidas. E por isso
não é muito justo censurar a Tanzânia por ter uma TMI muito superior à da
Dinamarca (36,4 por mil contra 2,9 por mil), quando o PIB per capita da
Tanzânia é vinte e cinco vezes inferior (1.775 dólares contra 43.445 dólares).
Em contrapartida, já faz sentido comparar o Paquistão (PIBpc: 4.602 dólares)
com a Nicarágua (4.643 dólares), para concluir que o primeiro país tem um
desempenho muito pior: 69 óbitos com menos de um ano por cada mil nados-vivos
face a 20 por mil na Nicarágua.
Para perceber um pouco
melhor a relação entre estas duas variáveis, extraí da base de dados do Banco
Mundial o conjunto completo dos dados da TMI e do PIBpc (em paridade de poder
de compra) para os 214 países e territórios que aí estão contidos, e eliminei
seguidamente 33 países e territórios para os quais não estavam disponíveis, nos
últimos cinco anos, dados relativos a alguma destas duas variáveis. Restaram
187 países e os respectivos pares de dados, que em seguida representei num
gráfico como aquele que encabeça este artigo.
Na verdade, o gráfico em
cima contém exactamente esses mesmos dados, só que no eixo horizontal, em vez
do PIB per capita, está o logaritmo desse mesmo PIB per capita, de modo a
tornar o gráfico mais legível (caso contrário, seria difícil incluir no mesmo
gráfico de forma legível o Qatar, com o seu PIBpc de 136.727 dólares, e a
República Centro Africana, cujo PIBpc é de 603 dólares). No eixo vertical, está
assim a TMI: número de crianças falecidas com menos de um ano por cada mil que
nasceram; no eixo horizontal, o PIB per capita em logaritmo, tanto maior quanto
mais para a direita o ponto no gráfico que representa cada país.
Percebe-se desde logo, como
seria de esperar, que a TMI é decrescente com o rendimento: os países mais
ricos, com mais recursos, tendem a ter um melhor desempenho. A curva de
tendência, que representa a relação "média" entre rendimento e
mortalidade infantil e que está representada no gráfico a tracejado, mostra
isso mesmo.
Mas percebemos também - e é
esse o ponto mais interessante - que existem casos de países que se afastam
bastante desta "relação média" entre o rendimento e a TMI. Alguns,
como Angola ou a Serra Leoa, estão muito acima da curva, o que indica que têm
uma mortalidade infantil muito superior ao que, em média, está associado ao seu
nível de rendimento. Outros, como a Eritreia ou o Malawi, estão muito abaixo da
curva, o que sugere que conseguem um desempenho muito melhor no que se refere à
sobrevivência de crianças com menos de um ano do que seria de esperar face aos
recursos disponíveis nesses países. Na verdade, a distância vertical entre o
ponto que representa cada país e a curva de tendência é precisamente uma medida
da diferença entre o desempenho efectivamente alcançado em termos de
mortalidade infantil e o desempenho que seria de esperar dado o nível de
rendimento do país.
Essa distância vertical é
fácil de calcular e de interpretar. Para cada país, dá-nos o número de mortes
de crianças com menos de um ano de idade, por cada mil nascimentos, que teriam
sido evitadas caso o país tivesse um desempenho consentâneo com os recursos de
que dispõe. A Guiné Equatorial, por exemplo, tem uma mortalidade infantil de
69,3 por mil, mas o seu nível de rendimento está em média associado a uma TMI
de 6 por mil. A diferença (69-6=63) pode ser interpretada da seguinte forma:
por cada mil crianças nascidas na Guiné Equatorial em 2013, houve 63 mortes que
podem ser consideradas evitáveis, bastando para tal que o país tivesse um
desempenho em termos de saúde, nutrição, saneamento, etc, correspondente ao seu
nível de rendimento.
Essa distância constitui por
isso um excelente indicador, de interpretação muito intuitiva. É, no fundo, um
indicador sintético de desumanidade. Não nos diz se o mau desempenho dos países
se deve à desigualdade extrema na distribuição do rendimento, ao desinteresse
ou incompetência do Estado, ou à existência de conflitos armados - mas reflecte
o efeito conjunto de todos estes efeitos, e todos eles, na medida em que provocam
mortes evitáveis de crianças recém-nascidas, constituem diferentes formas de
desumanidade.
Neste ranking sinistro, os
lugares de topo são ocupados por Angola (84 mortes evitáveis com menos de um
ano por cada mil nascimentos), Guiné Equatorial (63) e Nigéria (51). Em sentido
contrário, os desempenhos mais notáveis são alcançados pelo Malawi (menos 56
óbitos com menos de um ano do que o nível de rendimento faria prever), Burundi
(-46) e Libéria (-38) - países que, em termos relativos e apesar da enorme
falta de recursos, conseguem fazer muito com pouco.
Quando falamos das muito
elevadas taxas de mortalidade infantil nos países em desenvolvimento, tendemos
muitas vezes a naturalizá-las, como se a falta de recursos de alguma forma
tornasse inevitáveis todas estas mortes de crianças. Como o gráfico e este
indicador revelam, não é necessariamente assim: em muitos casos, o que está em
causa é pura e simplesmente desumanidade. Alexandre
Abreu – Portugal in Semanário "Expresso"
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