"Brasileiro"
durante muito tempo, explica o historiador Murilo de Carvalho, era uma palavra
feia. Foram os “brasilienses” ou “brasílicos” que começaram a desenvolver em
Coimbra um esboço de uma elite política nacional antes que houvesse uma nação
brasileira.
José Murilo de Carvalho é um
dos mais consagrados historiadores brasileiros. Foi distinguido com o grau de
Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra. A justificação para o título
encontra-se numa obra sua de 1996, A Construção da Ordem — Teatro de Sombras
Ao primeiro contacto, José
Murilo de Carvalho transmite timidez e insegurança. Mas, quando começa a falar
do século XIX do Brasil, o historiador mineiro nascido em 1939 transfigura-se,
entusiasma-se, o seu tom de voz ganha assertividade e os olhos, brilho. Ser
consagrado em Coimbra foi para ele um privilégio e um regresso ao seu passado
profissional. Na sua juventude, passou dias a fio a vasculhar o espólio
bibliográfico da universidade à procura do rasto dos brasileiros que lá
estudaram e teceram redes de cumplicidade fundamentais para manter unido o
gigante da América do Sul.
Num
dos seus trabalhos académicos, considera que a Universidade de Coimbra teve um
papel importante na preservação da unidade do Brasil quando a colónia se tornou
independente. O que é que aconteceu?
A unidade do Brasil não era
um dado adquirido. Havia uma grande probabilidade de que a colónia portuguesa
da América se esfacelasse, como se esfacelou a colónia espanhola. Um factor
importante para a unidade foi o deslocamento da corte de D. João para o Brasil.
Eu creio que, sem isso, nós teríamos talvez quatro ou cinco países em vez de um
país só. No momento da invasão napoleónica da Península Ibérica, os reis da
Espanha foram obrigados a renunciar, enquanto o rei D, João VI foi para a
colónia e isso deu um centro de atracção, uma força centrípeta baseada na legitimidade
da monarquia…
Essa
legitimidade mantém-se com o filho, D. Pedro, quando D. João VI regressa a
Portugal?
Sim, mantém-se. Agora, qual
é a importância dos portugueses e dos brasileiros formados em Coimbra para a
manutenção da unidade? Isso deu-se já no período do primeiro reinado, de D.
Pedro. Entre os que cercavam D. Pedro, muitos eram portugueses que tinham
ficado no Brasil. Mas havia vários brasileiros formados em Coimbra, sobretudo
na área de Direito, que também cercavam D. Pedro, e a Constituição brasileira
de 1824, que depois foi adoptada em Portugal [Carta Constitucional de 1826],
foi obra desta gente que estudou em Coimbra.
Mas o momento crucial é
quando D. Pedro renuncia, em 1831. O filho, D. Pedro II, tinha cinco anos de
idade e o país ficou entregue a si mesmo. Neste momento, começou a haver
revoltas em todo o país, inclusive com vários movimentos separatistas. Qual foi
o impacte de Coimbra? Os brasileiros que vinham das partes mais distantes
tinham-se conhecido nas margens do Mondego, tinham feito os seus cursos aqui.
Cursaram as mesmas disciplinas, tinham feito amizades e começaram a desenvolver
em Coimbra um esboço de uma elite política nacional antes que houvesse uma
nação brasileira. Este grupo tinha desenvolvido a ideia de uma unidade política
para o Brasil. Isso teve um papel muito importante na valorização da unidade da
colónia. A corte tinha uma atracção por essas pessoas. Elas iam compor os
ministérios, o Senado.
Veja bem, não havia ideia de
Brasil. Havia essa figura chamada “Brasil”, que era uma colónia, mas a sensação
de brasilidade não existia. Inclusivamente, a palavra “brasileiro” não era
muito usada. Usava-se “brasiliense” ou “brasílico”. “Brasileiro”, durante muito
tempo, era uma palavra feia — designava os comerciantes de pau-brasil e quem
era comerciante já era uma pessoa… Eu li uma vez numa história dos jesuítas um
conflito que houve num convento em São Paulo, no século XVII, porque um jesuíta
chamou outro de “brasileiro”…
As
elites brasileiras continuaram a mandar os seus filhos para Coimbra até, pelo
menos, meados do século XX, na maioria dos casos para estudar leis.
Sim, sim… Estudavam cânones
e leis. E foi também muito importante a Faculdade de Filosofia, que nasceu com
a reforma pombalina. Isso na época significou a introdução de estudos dos
naturalistas, isto é, Física, Química, Biologia, História Natural… Essa gente
foi pioneira na construção da geografia brasileira. José Bonifácio [uma das
personalidades centrais do processo de independência] era um naturalista. Esse é
um lado pouco conhecido.
Por
que é que nas cortes vintistas, que levaram à aprovação da Constituição de
1822, os deputados de Portugal e do Brasil não se entenderam em torno da
manutenção do Reino Unido de Portugal e do Brasil, que estava aliás entre os
seus propósitos?
Eu e uns colegas acabámos de
publicar quatro volumes de 800 páginas cada um com os panfletos do vintismo.
São folhetos de natureza política com menos de 50 páginas. Colhemos alguns na
Biblioteca Nacional de Lisboa, outros na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
e alguns até na antiga Cisplatina, que hoje é o Uruguai. Estes escritos, onde
havia muita disputa, que eram publicados nos jornais ou vendidos separadamente
como folhetos mesmo, mostram com muita clareza que há uma adesão muito forte à
revolução vintista e à regeneração de Portugal, sobretudo na Bahia, onde a
presença portuguesa era muito grande.
Há no geral a aceitação da
ideia de constitucionalizar a monarquia, isto é, de acabar com a monarquia
absoluta. Quando as cortes começaram a funcionar, houve uma adesão enorme — com
poesias, sonetos, odes em louvor às cortes. Houve uma explosão de civismo que
não se imaginaria. No entanto, começou a haver uma rejeição dos brasileiros em
relação a certas medidas tomadas pelas cortes — e isso aparece nos panfletos
com a palavra “recolonização”. As cortes exigiram que D. João voltasse, depois
exigiram que D. Pedro também saísse do Brasil e todas essas medidas começaram a
ser vistas no Brasil como um regresso ao período anterior ao Reino Unido. Houve
um atrito grande dos deputados brasileiros com as cortes e uma boa parte deles
fugiu para o Brasil. Achavam que a perspectiva da manutenção da União estava
cada vez mais difícil, mas, na realidade, mesmo que não tivessem ido embora, as
coisas lá estavam a caminhar muito mais rapidamente. E aí, sim, o papel de D.
Pedro foi crucial. Ele estava pronto para obedecer às cortes, mas aí houve
grandes representações…
Foto: Nelson Garrido |
Que
o levam ao famoso “fico”…
Sim.
A
ruptura era portanto irreversível.
É curioso que, quando
começou o vintismo, muitas pessoas, entre as quais o próprio José Bonifácio,
que era brasileiro mas morou dezenas de anos em Portugal e era um membro da
burocracia lusa, não eram favoráveis à separação. Havia a ideia da manutenção
do Reino Unido. Era aceite pelos brasileiros. Mas, quando se começou a
percepcionar que essas medidas tenderiam a uma recolonização, o que significaria
que o pacto de manutenção do Reino Unido se rompia, isso mudou.
Se houvesse, por exemplo, a
ideia de uma monarquia federativa como a que havia em Inglaterra, eu creio que
poderia pelo menos haver a possibilidade de se prolongar por mais algum tempo
esta união. Haveria revoltas locais, por exemplo em Pernambuco e no Sul, mas a
união poderia permanecer.
Como
é que se resolveria a questão da sede do reino? Uma das questões fundamentais
da Revolução de 1820 passava pelo regresso do rei à metrópole. O Brasil que se
havia habituado a ter o rei no seu território aceitaria facilmente essa
mudança?
Houve várias propostas a
esse respeito, houve vários panfletos. Porquê se deve manter o Brasil unido a
Portugal? Quais são as vantagens e as desvantagens da união? Discutia-se uma
série de argumentos e para resolver esse problema havia a proposta de, quando o
rei estivesse aqui [em Portugal], o sucessor ficava lá ou vice-versa. Esse tipo
de proposta foi feito…
Aliás,
era esse o desejo de D. João VI que, quando regressou, deixou D. Pedro no
Brasil.
Sim, mas ele não controlava
mais as cortes. A correspondência do rei com D. Pedro mostra com clareza que
eles não gostavam das cortes. Nem as cortes deles — chamavam a D. Pedro
“rapazinho”. Quando as cortes exigiram que D. Pedro saísse do Brasil, aí foi um
sinal vermelho. Era um sinal para que a divergência entre as províncias se
facilitasse.
Foi
o radicalismo vintista que acelerou o fim da ligação?
Sem dúvida nenhuma. Eu não
li tudo sobre o debate das cortes, mas eu creio que essas pessoas não
perceberam o que tinha mudado no Brasil. A saída de D. João de Portugal [chegou
ao Brasil em Janeiro de 1808] e a abertura dos portos do Brasil foram um baque
tremendo para a economia portuguesa e Portugal estava numa situação difícil.
Vivia sem o rei, numa situação de orfandade — a palavra era usada —, mas também
vivia uma situação económica muito séria. E aí faltou entre os liberais mais
radicais a percepção política do que estava em causa.
Os
deputados da representação brasileira nas cortes de 1820/22 eram os mesmos que
dominavam a burocracia do Estado na época da regência ou já era outra geração?
Não, eram os mesmos.
Podemos
dizer que eram uma elite conservadora? Algumas questões, como a escravatura,
demoraram anos a encontrar um discurso mais progressista no debate político do
Brasil.
Sim, esse é tema complexo. A
formação que eles tinham em Coimbra dava-lhes muita capacidade como
construtores de Estado, digamos assim, como defensores das leis, da nação. Mas
socialmente eram conservadores. Há interpretações que consideram que a
independência do Brasil aconteceu por causa do medo das revoltas escravas. Não
há evidências para apoiar esta hipótese.
Temia-se
um novo Haiti?
Sim, a palavra “haitianismo”
circulava. Mas, curiosamente, era em geral escrita por observadores
estrangeiros. Nestes panfletos que nós pegámos, há quase nada sobre escravidão.
Eu não estou dizendo que isso não teve importância: a manutenção da ordem
política facilitava a manutenção da ordem social e para muitas dessas pessoas
isso era claro. Muitos eram filhos de proprietários rurais. Mas vários deles, o
próprio José Bonifácio, foi o primeiro a mandar uma moção à constituinte
brasileira pedindo o fim lento do tráfico de escravos e o fim lento da
escravidão. Outros coimbrões também escreveram nessa direcção. O processo de
independência brasileira não foi pacífico — na Bahia houve guerra civil —, mas
comparado com o da América espanhola foi muito menos violento. O que se deveu à
manutenção da ordem social.
Anos
depois, ainda houve a Revolução Farroupilha [no Rio Grande do Sul] e a
Confederação do Estado do Equador, que, nos anos de 1830, foram tentativas de
secessão. O Rio Grande do Sul teve desde sempre um papel de resistência à unificação
política do Brasil?
A localização do poder
económico é sempre importante na criação de um novo estado. Onde estava o poder
económico? Os grandes focos do poder económico naquela época eram Pernambuco,
mas sobretudo Bahia e Rio de Janeiro, por causa da mineração. No Rio Grande do
Sul, aí havia elementos de aproximação com o Uruguai. O Rio Grande do Sul e o
Uruguai eram quase a mesma coisa. Os criadores de gado passavam de um lado para
o outro como se estivessem no mesmo país. Era a Cisplatina, ou a Banda
Oriental, que D. João VI invadiu. Na independência, eles discutiam sobre se se
mantinham fiéis a Portugal, se se juntavam ao Brasil ou se tinham a sua própria
independência. Ficaram nisso durante dez anos, até que em 1828 fizeram uma
revolta e separaram-se.
Há
historiadores que dizem que o Uruguai é uma criação britânica. Um Estado-tampão
para evitar os permanentes conflitos entre o Brasil e a Argentina.
Não, não. Eu digo sempre que
as guerras do [rio da] Prata eram sempre guerras erradas. A disputa era entre o
Brasil e as Províncias Unidas do Rio da Prata — ainda não havia a Argentina,
que só passa a existir na segunda metade do século. Mas com Buenos Aires havia
muita rivalidade e havia uma disputa pelo Uruguai. Depois eles decidiram
tornar-se independentes e quer o Brasil quer as províncias unidas concordaram.
Era como se fosse colocado um pouco de algodão entre elas.
Num
artigo seu de 2008, considerava que o facto de o Brasil nunca ter tido
revoluções era uma sorte e um infortúnio. Porquê?
Essa tradição de negociação
é muito elogiada no Brasil, embora não seja completamente verdadeira — as
revoltas de 1830, a Farroupilha, no Pará ou na Bahia, foram muito violentas.
Mas eram localizadas, nunca houve uma disputa nacional pelo poder. Na
comparação entre a proclamação da República brasileira e a portuguesa há um
grande contraste. A portuguesa foi feita com muita violência, com muita luta.
Na criação do Estado Novo nos anos de 1930 ou o próprio golpe militar de 1964
não morreu ninguém. Isto poupou muito sangue, mas teve também como consequência
esta (silêncio) característica de mudar sem mudar muito? — aquela velha coisa
do Leopardo. Em 1930, um político [António Carlos, presidente do Governo de
Minas Gerais] usou uma expressão que ficou clássica: "Vamos fazer a
revolução antes que o povo a faça." Esta capacidade de negociação ainda
permanece. É uma tradição que tem a ver com a muito baixa taxa de participação
popular no sistema político brasileiro. Até 1945, só 5% dos brasileiros
votavam.
Mas
quem assistiu às últimas eleições nota uma crispação e uma violência implícita
no discurso que não parece bater certo com essa sua visão da negociação.
Aí vai ter que retirar a
retórica. Os marqueteiros é que comandam. Creio que, na prática, há uma
tradição muito governista. No Brasil, há uma atracção muito grande para o
Estado. Todos querem tomar conta do Estado. É uma herança portuguesa, que faz
com que até um partido revolucionário chegue ao poder e tenham todas essas
denúncias de corrupção.
Do
ponto de vista social, os três mandatos de Lula não foram uma revolução?
Foram pelo lado da
incorporação social, que também dá margens a um enorme clientelismo político. É
buscar a protecção do Estado, o guarda-chuva do Estado. No início da República,
alguém escreveu para um ministro pedindo-lhe: “Proteja-me com a bandeira da
República, ela é muito grande.” O Estado está a tornar-se no grande coronel, no
sentido do coronelismo. Os votantes estão presos a benefícios que o Estado lhes
deu. Nesse sentido, não são propriamente cidadãos activos, são cidadãos movidos
pela atracção dos direitos sociais e não tanto pela defesa do direito civil e
do direito político. Manuel Carvalho –
Portugal in “Jornal Público”
Sem comentários:
Enviar um comentário