O
Semba Carioca
Vi esta cena mil e uma vezes.
O encontro entre músicos angolanos e brasileiros sempre dá muita conversa, como
a velha história do ovo e da galinha, mas sempre dentro da mesma família.
Semba, samba, a clave, o ritmo. A eterna pergunta é esta: onde está o primeiro
dos quatro tempos? Qual é o tempo forte, aquele indispensável, o que segura o
balanço? “Vocês estão tocando invertido!” “Não, é assim mesmo.”
O ritmo não se explica,
sente-se. Não se conta, dança-se. A matemática do semba bate dentro do peito,
nas congas, na dikanza, no grave do baixo do Ti Moreira, nas passadas da Tia
Mizé, a riscar a poeira do chão da meia-noite.
Presenciei este momento mil e uma
vezes. Desta vez, era o Toty a explicar, naipe por naipe, o ritmo do semba a um
grupo de seis músicos cariocas, três deles percussionistas, profundos
entendidos dos ritmos afro-brasileiros. O Toty desconstruiu pacientemente cada
peça do conjunto. Os ponteiros do relógio deram muitas voltas, enquanto as
caretas nas suas faces se multiplicavam, no esforço de tocar “ao contrário”,
buscando a dança sem desistir. Até que deu.
E quando dá, é aquela euforia,
catarse. Quando o semba acontece, o corpo reconhece. Sabe bem. Para nos,
angolanos, é uma coisa da vida inteira. Mesmo aqui, no Rio de Janeiro, na
margem oeste do mesmo Atlântico Sul, quando soa um semba sentimos no ar o
cheiro de casa. Activa-se automaticamente um saudosismo que quase dói, numa
vivência estetica e sentimental da tal de bandeira. Chega a ser perigoso. Eu e
o Toty olhamo-nos em sinal de cumplicidade: o semba aconteceu. Como disse o
Luiz Augusto, um dos nossos percussionistas, “o semba encontrou os seus filhos
do samba”.
Curiosamente, a música
seguinte foi um samba composto pelo Toty. Essa parte do ensaio voou, como se
estivéssemos todos a falar a mesma língua. Qualquer músico angolano
contemporâneo está familiarizado com o samba brasileiro. Já com o semba
trata-se do movimento inverso. Quando os brasileiros tocam um semba, devem
sentir um misto de familiaridade e estranheza. Mas quando ele se instala nas
suas mãos, podemos observar nos seus olhos o prazer e a gratidão de mais uma
lição aprendida. Afinal, esta raiz partilhada ainda não foi arrancada do chão
e, se o vento ajudar, em breve poderemos estar todos sentados à sombra da mesma
mulemba.
Um brinde, pois, ao semba
carioca e ao samba kaluanda. Aline
Frazão – Angola in “RedeAngola”
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