O Festival Kontornu concluiu a sua terceira edição a 10 de maio de 2025, no Tarrafal de Santiago, após uma semana de intensa programação iniciada a 3 de maio na Cidade da Praia. Este evento consolidou-se como um dos maiores festivais de dança nos países de língua portuguesa, reunindo artistas de diversas nacionalidades, incluindo Portugal, Ucrânia, Polónia, República Checa, Brasil, Moçambique, Itália, Espanha e República Dominicana. A programação diversificada incluiu workshops, espetáculos, conversas, exposições de artes plásticas e desempenhos de rua, proporcionando uma plataforma rica para o intercâmbio cultural e artístico.
Formação de Públicos e Inclusão Social: o papel da programação infantil
Uma das mais nobres e estratégicas vertentes do Festival Kontornu residiu na sua aposta na programação voltada para o público infantil. Esta escolha, longe de ser um simples gesto de inclusão simbólica, representa uma visão esclarecida sobre a importância da iniciação cultural desde os primeiros anos de vida. Ao acolher crianças oriundas de escolas de diversos bairros da Cidade da Praia — muitos deles marcados por desafios sociais e económicos — o festival criou condições para que estas tivessem o seu primeiro contacto com a arte performativa em contextos formais e institucionais de cultura, como teatros e centros culturais.
Os espetáculos dedicados à infância, cuidadosamente desenhados para dialogar com o universo sensorial, emocional e cognitivo das crianças, tiveram um impacto profundo. Por um lado, permitiram a fruição estética e artística por parte dos mais novos; por outro, contribuíram para a formação de públicos críticos e conscientes. Crianças expostas desde cedo à diversidade de linguagens artísticas desenvolvem maior sensibilidade, criatividade e capacidade de análise. Neste sentido, o Festival Kontornu não só promoveu o entretenimento educativo, como também semeou noções de cidadania cultural e pertença social.
Adicionalmente, esta iniciativa teve um papel relevante na promoção da equidade no acesso à cultura. Em contextos marcados por desigualdade, como os de muitos bairros periféricos da capital cabo-verdiana, a participação em eventos culturais é frequentemente limitada por barreiras económicas, geográficas e simbólicas. Ao garantir o acesso gratuito e organizado de centenas de crianças aos espetáculos, o festival combateu essas barreiras, operando como um agente de inclusão social efetiva. Criou-se, assim, um espaço de convívio e partilha intergeracional, onde a arte serviu de ponte entre diferentes mundos e realidades.
Mais do que uma atividade paralela, a programação infantil do Festival Kontornu mostrou-se um eixo central de ação cultural com implicações duradouras. Investir na formação de públicos não é apenas preparar o futuro da arte — é também, e sobretudo, investir na formação de cidadãos mais livres, conscientes e preparados para pensar criticamente o mundo que habitam.
Parcerias Estratégicas: a colaboração com a Bienal de Dança do Ceará
O festival contou com uma parceria especial com a XV edição da Bienal de Dança do Ceará, que trouxe cerca de 10 espetáculos para Cabo Verde. Esta colaboração internacional reforçou a qualidade e diversidade da programação, promovendo o intercâmbio artístico entre os países lusófonos e ampliando as oportunidades de formação e exposição para os artistas locais.
Acesso Gratuito e Mobilização Comunitária: democratização da cultura
Com uma programação completamente gratuita, o Festival Kontornu investiu na mobilização de associações comunitárias e grupos juvenis, facilitando o acesso aos teatros e espetáculos. Esta abordagem inclusiva democratiza o acesso à cultura, promove a coesão social e fortalece os laços comunitários, contribuindo para uma sociedade mais equitativa e culturalmente rica.
Apesar do evidente sucesso artístico e da resposta calorosa do público, a terceira edição do Festival Kontornu operou sob um cenário profundamente precário, resultado direto da fragilidade do apoio institucional e da insuficiência orçamental. Esta realidade não só revela as dificuldades estruturais que enfrentam as iniciativas culturais no arquipélago, como também expõe um certo desinteresse — ou no mínimo negligência — por parte das entidades responsáveis pela promoção e valorização da cultura em Cabo Verde.
O festival, que se afirma hoje como uma referência nos circuitos das artes performativas dos PALOP, não contou com a presença de representantes das estruturas culturais estatais durante os dias do evento. Esta ausência, para além de simbólica, é também política: ela comunica uma hierarquização clara das práticas culturais apoiadas, onde certas expressões artísticas — muitas vezes com menor potencial crítico ou transformador — recebem grande visibilidade e financiamento, enquanto outras, como a dança contemporânea e a performance, continuam a ser marginalizadas.
A omissão dos parceiros culturais na divulgação do festival através dos seus canais oficiais é também reveladora. Num país onde os meios de comunicação institucional são ainda centrais para a circulação da informação, o silêncio dos organismos públicos equivale a uma forma de apagamento simbólico. Tal atitude não só compromete a sustentabilidade de projetos independentes como o Kontornu, como perpetua uma lógica elitista e excludente na definição daquilo que é — ou não é — cultura “merecedora” de atenção e investimento.
O subfinanciamento do festival traduziu-se, de forma concreta, na sobrecarga da equipa organizadora, que teve de operar com um número muito reduzido de produtores e técnicos. Esta escassez de recursos humanos e logísticos fragilizou não só a operacionalização do evento, mas também o bem-estar e a saúde dos profissionais envolvidos, muitos dos quais trabalham já em condições de enorme instabilidade. É fundamental compreender que sem investimento justo e contínuo, a produção cultural transforma-se num exercício de resistência, onde o entusiasmo artístico é frequentemente minado pela exaustão e pelo abandono institucional.
A crítica que aqui se impõe não é apenas à ausência pontual de apoio, mas a um modelo estrutural de desvalorização das artes performativas, que tende a priorizar eventos de cariz mais comercial ou turístico, em detrimento de projetos que investem na formação, na inclusão e na experimentação artística. Esta política cultural desequilibrada compromete a diversidade e a vitalidade do ecossistema artístico cabo-verdiano.
Perspetivas Futuras: Festival incerto e a necessidade de compromisso institucional
O futuro do Festival Kontornu depende do envolvimento e financiamento efetivo das estruturas culturais. Esta dependência não se baseia apenas numa expectativa moral ou ética: trata-se de uma exigência legal e constitucional. A Constituição da República de Cabo Verde estabelece, no seu artigo 78.º, que "todos têm direito à fruição e criação cultural" e que incumbe ao Estado "promover a democratização do acesso à cultura e incentivar a participação de todos na vida cultural". Assim, as autoridades nacionais e autárquicas têm o dever constitucional de garantir não apenas o acesso à cultura, mas também os meios concretos para a sua produção e difusão.
Neste contexto, o apoio à continuidade de eventos como o Festival Kontornu não deve ser encarado como um ato de benevolência governamental, mas como o cumprimento de uma obrigação pública perante os cidadãos. Quando o financiamento de atividades culturais é concentrado em eventos com forte mediatismo ou viés comercial, relegando para segundo plano iniciativas comprometidas com a formação crítica, a inclusão e a valorização da diversidade artística, perpetua-se uma desigualdade de oportunidades que fere o princípio de justiça cultural.
O Festival Kontornu demonstrou, ao longo das suas edições, ser muito mais do que um evento artístico: é uma plataforma de encontro, de intercâmbio, de reflexão e de projeção internacional. Abre portas para artistas emergentes, fomenta o pensamento crítico, dinamiza o setor criativo e projeta Cabo Verde no circuito global da dança contemporânea. Contudo, sem o apoio estrutural e consistente do poder público, festivais com este perfil são constantemente ameaçados pela descontinuidade, pela precariedade e pelo esgotamento das suas equipas produtoras.
O Estado e os municípios devem, portanto, rever as suas prioridades orçamentais e reconhecer que investir na cultura não é um luxo, mas uma alavanca fundamental para o desenvolvimento sustentável. O impacto de um festival como o Kontornu estende-se para além das salas de espetáculo: ele movimenta o turismo cultural, estimula a economia local (através do alojamento, da restauração e do comércio), promove a educação artística nas escolas, gera emprego e fortalece a identidade cabo-verdiana perante o mundo.
Em sociedades marcadas por profundas desigualdades sociais e territoriais, o investimento em cultura assume um valor estratégico. Ele contribui para a coesão social, reduz distâncias simbólicas e reais entre os cidadãos, e oferece ferramentas para a transformação social. O Festival Kontornu é um exemplo claro de como a arte pode transformar vidas e territórios. O seu desaparecimento, por falta de compromisso institucional, não seria apenas uma perda para a classe artística — seria uma derrota para o próprio projeto de país que se pretende democrático, inclusivo e culturalmente vibrante.
Portanto, não avançaremos mais com o festival, se não houver um aporte financeiro que dignifique os profissionais que trabalham para que ele possa acontecer. Djam Neguin – Cabo Verde Festival Kontornu
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