Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quarta-feira, 28 de maio de 2025

A polonaise de Hugo Almeida no “Vale das ameixas”

Três linhas são elementos fortes no romance: a imigração dos poloneses, o erotismo e o dom de criar


Há um trecho no romance Vale das ameixas, de Hugo Almeida (Editora Sinete, 2024), em que o narrador adverte: “Um romance é um buraco negro que suga tudo. Mas ilumina a vida” (p. 245). Grande verdade. Iluminado fiquei após a leitura desse livro que, em muitos momentos, também nos dá a sensação de estar num buraco negro, de estar perdendo o fio da meada. Isso porque há um entrelaçar de narradores, embora predomine a voz do polaco Harley Tymozwski, apelidado de Timo, ex-alfaiate e ex-professor, que vive em Belo Horizonte. Figura complexa, às vezes me lembra o narrador de Migo, de Darcy Ribeiro, ou, também, o narrador de Morte em V., de Reinaldo Santos Neves.

O autor, que é um especialista em Osman Lins, aliás muito citado ao longo da obra, principalmente A rainha dos cárceres da Grécia, insere ironicamente esse jogo de alteração de narradores na p. 221, em que um personagem que detém o ponto de vista avisa: “Ah, eu sou o Túlio”. Túlio, Zacarias e algumas personagens femininas vão se alternando num livro repleto de referências a artistas poloneses, como escritores, poetas, pintores cineastas, escultores, prevalecendo a imagem de Chopin. Assim como há vários dados biográficos de Ziembinski, extraídos do livro de Yan Michalski e do de Silvia Czapski. Na p. 227, como se fosse um Avalovara ou Jogo da amarelinha, o personagem Zacarias, filho de Timo, explica a montagem do livro, do qual Túlio também participou. E, através de seu personagem, Hugo Almeida sintetiza: “A descoberta de quem fala é um dos prazeres da leitura de um romance. Surpresas a cada página” (p. 244).

Das várias epígrafes do romance, destaco a extraída do conto “Pentágono de Hahn”, de Nove, novena, de Osman: “Atravessa o mundo e suas alegrias, procura o amor, aguça com astúcia a gana de criar.”  Daqui, aponto três linhas que vejo como elementos fortes da obra: a imigração dos poloneses, o erotismo e o dom de criar.

São vários os poloneses citados. Polônia, pátria ferida nas duas grandes guerras, tem seus filhos espalhados por outros países. Sua liberdade é golpeada, aliás, desde tempos mais remotos. Por exemplo, o cineasta Andrzej Wajda, em seu filme Danton, intercala Revolução Francesa e época contemporânea ao colocar na boca do personagem a frase: “Um homem sem pão não tem liberdade; nem justiça, não tem nada”. É o que vemos na p. 28, para, logo a seguir, nos surpreendemos pela inserção de versos de Machado de Assis, no poema “Polônia”, de Crisálidas, em que há este trecho: “A mãe via partir sem pranto os filhos [...] / Pobre nação! – é longo o teu martírio; a tua dor pede vingança e termo;/ Muito hás vertido em lágrimas e sangue [...] Não ama a liberdade / Quem não chora contigo as dores tuas”.

Com relação à questão da imigração, há duas passagens bem hilariantes: em uma delas, na p. 158, um polonês em Chicago, num exame oftalmológico, ao ver consoantes aleatórias na parede, afirma que não apenas reconhece as letras, mas conhece quem era aquele cara. E, na p. 219, há o diálogo do protagonista com agente da imigração em Lisboa: “Não podes perman’cer mais do que noventa dias. O quê?! Noventa dias!? Vocês ficaram no Brasil por mais de trezentos anos”. Porém, são pausas para respirar, pois a temática da diáspora é repleta de dor, como se lê na p. 120: “Sim, impossível fechar os olhos, ainda há guerras e guerras, famílias destroçadas, covas rasas e mutilados, crianças sem pais nem país, milhares sem chão nem identidade cultural ou psíquica. Ilegais aqui e acolá. Presos e deportados. O homem segue louco, vil, voraz, um sorvo”.

Contrastando com a guerra, há o núcleo amoroso do livro. As intertextualidades comparecem para sublinhar o tema: “[...] ‘diz que é homem do amor, ouvintes, e não homem da guerra’. Nessa passagem ‘radiofônica’ de A rainha dos cárceres da Grécia, vejo que Osman Lins fez paráfrase de uma fala de Antígona, de Sófocles: ‘Eu não nasci para partilhar de ódios, mas somente de amor!’. Ou, talvez, da frase original, que é de Homero, na Ilíada: Dione, com a filha Afrodite (ou Vênus) ferida no colo, lhe diz ter sido feita para combates de amor, não de guerra” (p. 111).

A temática amorosa aponta para os instantes mais líricos e eróticos do romance, em que Timo evoca suas várias amadas, como Laura: “Laura, Laura, Laura. Sim, sim. Luz, poema vivo. [...] voz que belisca a alma. Gotas de mel no lábio de abelha-beija-flor”. (p. 13). Na p. 95, na esteira de Baudelaire, o protagonista se pergunta: “O que é o amor? Sim, a necessidade de sair de si”. O título do livro, além de acenar metonimicamente para a Polônia, serve como metáfora para o corpo feminino, notadamente os seios, como se lê em algumas passagens, como esta, da p. 178: “[...] mergulha e chora na minha tua aljava, gruta enlouquecida, o teu vale de ameixas rosadas...”.

 As mulheres, ademais, como as passantes de Baudelaire, arrancam de Timo frases assim: “Deus é melhor do que Rodin. Basta olhar algumas moças que passam. Que passos! Que pássaras!” (p. 110). Na p. 122, enfileiram-se as evocações: “Laura, poema vivo, vulcão em repouso. Oh, Laís, meu sonho e meu pecado. Piedade, a fiel Alzira. Léa, Léa do meu devaneio. Éden, mestre que Túlio me trouxe. Núbia de meus sonhos fugazes, permanentes. Loren, Loren, minha febre”. Diga-se, de passagem, que a voz feminina também se ouve, tanto em contraponto erótico (“mergulha e chora na minha tua aljava, gruta enlouquecida, o teu vale de ameixas rosadas”, p. 178), como em reflexões antimachistas (“O homem é uma devastação para a mulher”, p. 129).  Lembro que, entre as mulheres citadas, há uma guerrilheira, assassinada no Araguaia, e que continua a fazer suas denúncias mesmo depois de morta. Na p. 193 há a informação de que “Mulheres que leem são mesmo perigosas”.

Finalizando, destaco o tema da criação, das reflexões sobre o escrever literatura.  Com ressonâncias de Mário de Andrade, lemos, na p. 120: “Quando sinto o impulso poético pulsar, deslizo a caneta sem medo e sai o que meu peito grita. Depois, bem depois, releio, penso e altero alguma coisa, corto ou troco palavras, reviro alguma frase”.  Na p. 123, esta frase, que é uma redenção: “Literatura, pássaro livre”. Das várias reflexões sobre o ato de criar, uma delas diz que “Uma narrativa não é detentora de significação, mas deflagradora de significação. O título de um romance – essa máquina complexa que não nasce de ovo nem útero – deve misturar as ideias, e não orientá-las. Escrever, triunfo da liberdade, solidão fraterna”. (p. 204)

Na p. 199, numa passagem que me lembra Graciliano Ramos estabelecendo analogia entre o fazer literário e o trabalho do sapateiro, o narrador faz relação entre escritor e alfaiate: “Ambos enfrentam a mesma faina, a mesma feliz agonia de trabalhar com fios leves, da memória ou fantasia, e acertar a proporção dos cortes, o ajuste das dobras e curvas, não exceder nas medidas”. Não é gratuita na obra uma citação de Julia Kristeva, pois o romance de Hugo Almeida, sendo um mosaico de citações, opera trazendo paráfrases, pastiches, alusões. Por exemplo, ao abordar Catatau, de Leminski, busca em Agora que são elas a frase “Vou lhe mostrar com quantos plágios se faz o original” (p. 113).  Quando Timo escreve que tem uma vida que poderia ter sido mas não foi, logo a seguir fala de sua bandeira, explicitando de quem é o célebre verso. Porém, ao descrever um enterro, na p. 215, parafraseia o poema “Momentos num café”, sem dar dica ao leitor incauto que aquilo era uma paráfrase. Das várias citações, há esta, na p. 88, Celso Adolfo, “E a porta continua proibida a quem precisa entrar”. Se, de um lado, o narrador cita explicitamente autores como Machado de Assis, Flaubert, Leopardi, Wislawa Szymborska, Otto Maria Carpeaux, Joseph Roth, Leminski, Mário de Andrade, W. J. Solha, por outro dá apenas pistas, como na p. 48, ao referir-se a um poeta chamado Vastafala, aluno do célebre Colégio Estadual dos anos 60. Quem conhece Antônio Barreto, sabe que é o título de um de seus livros. Porém, p. 209, cita versos nos quais vejo ressonâncias cabralinas: “Entras nessa sala/ e tudo inundas/ o mar começa/ em teus pés/ são de água/ esses seus passos”. Demorei a encontrar o autor: trata-se de Moacir Amâncio, no livro Câmara escuro, publicado pela editora Hedra.

A obra, enfim, é uma grande e prazerosa dança do espírito, uma polonaise, cuja chave de interpretação está nela própria, como se lê na p. 204: “Onde procurar as chaves de um romance? Nele mesmo. Um texto traz a memória da cultura em que se insere. [...] Concluído o romance, o escritor deveria morrer. Ou calar-se. O livro segue, livre, o seu caminho. Agora é com o leitor”. E, se “os mares nunca descansam” (p. 164), as leituras vêm em incessantes ondas, como o mar. Caio Maciel – Brasil

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Vale das ameixas, de Hugo Almeida. São Paulo: Editora Sinete, 248 páginas, R$ 65,00, 2024. www.editorasinete.com.br O romance está disponível na Amazon.

Site do autor: https://hugoalmeidaescritor.com.br

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Caio Junqueira Maciel é mestre em Literatura pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), autor dos livros de ensaios A escritura do tempo na poesia de Dantas Mota e O sangue que rejuvenesce o Conde Drácula. Como poeta, entre outros títulos, escreveu Pele de jabuticaba. Autor do romance Um estranho no Minho, fruto do período em que viveu em Portugal.



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