Guimarães Rosa revisitado
“A Poética Migrante de Guimarães Rosa” reúne
20 ensaios e artigos, divididos em nove partes, sobre a temática rosiana
Ainda que não tenha sido comemorado com a
efusão que merecia, o centenário de nascimento de João Guimarães Rosa
(1908-1967), em 2008, ano que marcou também o centenário do falecimento de
Machado de Assis (1839-1908), ao menos serviu para a publicação de importantes
estudos críticos-literários sobre a obra do autor. E o melhor exemplo disso é o
livro “A Poética Migrante de Guimarães Rosa” (Editora UFMG), de Marli Fantini
(organizadora), doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG) e autora de “Guimarães Rosa: Fronteiras, Margens,
Passagens” (Ateliê Editorial), que obteve o
Prêmio Jabuti.
Não se pode dizer que a obra rosiana não
tenha sido estudada em profundidade, até porque há estimativa que supõe a
existência de mais de 1500 trabalhos sobre o romance “Grande Sertão: Veredas”.
Até porque, como diz Marli Fantini na apresentação, baseada nas observações de
Italo Calvino (1923-1985), trata-se de uma obra considerada clássica, que por
isso mesmo está destinada a provocar “incessantemente uma nuvem de discursos
sobre si”.
Mas Guimarães Rosa não é só “Grande Sertão:
Veredas” — e, se o fosse, já seria muito. Pelo contrário, na obra do escritor
mineiro há uma série de textos que também estão condenados a cada geração a
receber novas e distintas formas de recepção.
Um estudo que se destaca nesta reunião de 20
ensaios e artigos, dividida em nove partes, sobre a temática rosiana é
“Alegoria e Política no Sertão Rosiano”, de Maria Célia Leonel e José Antonio
Segatto, professores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autores de
“Política e Violência no Grande Sertão de Guimarães Rosa”).
Segundo o estudo de Maria Célia e Segatto,
Guimarães Rosa teria um projeto literário, quiçá político-ideológico, como
pressuposto na elaboração de “Grande Sertão: Veredas”, que permite que a obra
seja lida não só como recriação do passado, ou seja, a vida no Brasil profundo
nas décadas de 1920 a 1930, como iluminador do presente, já que o mandonismo
daquela época ainda hoje está presente em várias regiões brasileiras marcadas
pela grande propriedade latifundiária, embora hoje o protótipo do latifundiário
tenha sido substituído por grandes empresas agrícolas, pelo patriarcalismo,
pelo clientelismo, pela violência, pela ausência de Estado e justiça, o que se
verifica inclusive no Estado de São Paulo, pretenso exemplo de modernidade.
Nesse sentido, os autores contestam
estudiosos que, atribuindo a Guimarães Rosa uma qualidade de ensaísta que ele
nunca buscou, definiram “Grande Sertão: Veredas” como um retrato da vida rural
naquela época, observando que o autor, por sua inventividade, aponta tendências
que viriam a ganhar cristalização mais nítida na realidade do País pós-1930.
Outro texto de grande valia para os estudos
rosianos — e de outro grande especialista na área — é “Patriarcalismo e
Dionisismo no Santuário do Buriti Bom”, de Luiz Roncari, professor da
Universidade de São Paulo (USP) e autor de “O Brasil de Rosa: Mito e História no
Universo Rosiano: o Amor e o Poder” (Unesp/Fapesp). Como observa Marli Fantini,
o trabalho de Roncari procura as chaves para o entrelaçamento da história com o
mito. O ensaio — cujo título forma um oxímoro — é uma condensação de extenso
trabalho de Roncari sobre a novela “Buriti”, que faz parte do livro “Corpo de
Baile”, de Guimarães Rosa.
Em “O Brasil de Rosa”, o autor já havia
procurado mostrar como Guimarães Rosa usara modelos que Oliveira Vianna
(1883-1951) utilizara para representar a vida política brasileira na segunda
metade do século 19 e também na Primeira República (1889-1930). Assim,
Guimarães Rosa teria entranhado em personagens como Zé Bebelo, um Rui Barbosa
(1849-1923), em Hermógenes e Ricardão, um Hermes da Fonseca (1855-1923) e um
Pinheiro Machado (1851-1915), respectivamente, e em Joca Ramiro, o Barão do Rio
Branco (1845-1912).
Para Roncari, a novela “Buriti” também teria
sido construída a partir de modelos vivos. Assim, toda a primeira parte da
novela é composta praticamente pelas lembranças de Miguel, que compartilham as
informações e versões que Guimarães Rosa recebera de nhô Gualberto Gaspar, um
fazendeiro, sobre o Buritim Bom e pessoas do lugar com quais ele pôde conviver.
Como curiosidade histórica pode-se apontar a
nona parte do livro que traz o ensaio “Memória da Leitura e Rememoração da
Viagem: Cartas de João Guimarães Rosa para Aracy de Carvalho Guimarães Rosa”,
elaborado por Elza Miné e Neuma Cavalcante a partir da correspondência
(inédita) trocada pelo autor no período de 1938 a 1960 com aquela que seria sua
segunda esposa.
Esse arquivo que compreende 107 cartas, 44
cartões-postais, bilhetes e telegramas foi passado pela família de Aracy de
Carvalho (1908-2011) às pesquisadoras, que estão para publicar uma biografia
dessa poliglota que prestou trabalho ao Ministério das Relações Exteriores e
teve o seu nome inscrito no memorial Yad
Vashem (Museu do Holocausto), em Jerusalém, por ter ajudado muitos judeus a
entrarem ilegalmente no Brasil ao tempo do governo Getúlio Vargas, livrando-os
da prisão e da morte sob as botas do nazismo. A essa época, ela era chefe da
seção de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo. Guimarães Rosa,
como cônsul adjunto, sabia das manobras arriscadas que Aracy fazia para ajudar
os judeus e nunca se opôs. Pelo contrário.
Se para o leitor comum esse tipo de
correspondência pode parecer curiosidade histórica, para os especialistas, por
certo, é uma oportunidade rara, pois revela, mais que a obra completa do autor,
a sua individualidade, seus gostos e paixões. De passagem, fica-se sabendo que
Ara, como o marido a chamava, acompanhou muito de perto tanto a escritura de
“Grande Sertão: Veredas” como de “Sagarana”, inclusive, com sugestões e
correções. Adelto Gonçalves – Brasil in “Jornal Opção”
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Adelto
Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e
autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher
Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).
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