Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Rosiana

Guimarães Rosa revisitado

“A Poética Migrante de Guimarães Rosa” reúne 20 ensaios e artigos, divididos em nove partes, sobre a temática rosiana

Ainda que não tenha sido comemorado com a efusão que merecia, o centenário de nascimento de João Guimarães Rosa (1908-1967), em 2008, ano que marcou também o centenário do falecimento de Machado de Assis (1839-1908), ao menos serviu para a publicação de importantes estudos críticos-literários sobre a obra do autor. E o melhor exemplo disso é o livro “A Poética Migrante de Guimarães Rosa” (Editora UFMG), de Marli Fantini (organizadora), doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autora de “Guimarães Rosa: Fronteiras, Margens, Passagens” (Ateliê Editorial), que obteve o  Prêmio Jabuti.

Não se pode dizer que a obra rosiana não tenha sido estudada em profundidade, até porque há estimativa que supõe a existência de mais de 1500 trabalhos sobre o romance “Grande Sertão: Veredas”. Até porque, como diz Marli Fantini na apresentação, baseada nas observações de Italo Calvino (1923-1985), trata-se de uma obra considerada clássica, que por isso mesmo está destinada a provocar “incessantemente uma nuvem de discursos sobre si”.

Mas Guimarães Rosa não é só “Grande Sertão: Veredas” — e, se o fosse, já seria muito. Pelo contrário, na obra do escritor mineiro há uma série de textos que também estão condenados a cada geração a receber novas e distintas formas de recepção.

Um estudo que se destaca nesta reunião de 20 ensaios e artigos, dividida em nove partes, sobre a temática rosiana é “Alegoria e Política no Sertão Rosiano”, de Maria Célia Leonel e José Antonio Segatto, professores da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e autores de “Política e Violência no Grande Sertão de Guimarães Rosa”).

Segundo o estudo de Maria Célia e Segatto, Guimarães Rosa teria um projeto literário, quiçá político-ideológico, como pressuposto na elaboração de “Grande Sertão: Veredas”, que permite que a obra seja lida não só como recriação do passado, ou seja, a vida no Brasil profundo nas décadas de 1920 a 1930, como iluminador do presente, já que o mandonismo daquela época ainda hoje está presente em várias regiões brasileiras marcadas pela grande propriedade latifundiária, embora hoje o protótipo do latifundiário tenha sido substituído por grandes empresas agrícolas, pelo patriarcalismo, pelo clientelismo, pela violência, pela ausência de Estado e justiça, o que se verifica inclusive no Estado de São Paulo, pretenso exemplo de modernidade.

Nesse sentido, os autores contestam estudiosos que, atribuindo a Guimarães Rosa uma qualidade de ensaísta que ele nunca buscou, definiram “Grande Sertão: Veredas” como um retrato da vida rural naquela época, observando que o autor, por sua inventividade, aponta tendências que viriam a ganhar cristalização mais nítida na realidade do País pós-1930.

Outro texto de grande valia para os estudos rosianos — e de outro grande especialista na área — é “Patriarcalismo e Dionisismo no Santuário do Buriti Bom”, de Luiz Roncari, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de “O Brasil de Rosa: Mito e História no Universo Rosiano: o Amor e o Poder” (Unesp/Fapesp). Como observa Marli Fantini, o trabalho de Roncari procura as chaves para o entrelaçamento da história com o mito. O ensaio — cujo título forma um oxímoro — é uma condensação de extenso trabalho de Roncari sobre a novela “Buriti”, que faz parte do livro “Corpo de Baile”, de Guimarães Rosa.

Em “O Brasil de Rosa”, o autor já havia procurado mostrar como Guimarães Rosa usara modelos que Oliveira Vianna (1883-1951) utilizara para representar a vida política brasileira na segunda metade do século 19 e também na Primeira República (1889-1930). Assim, Guimarães Rosa teria entranhado em personagens como Zé Bebelo, um Rui Barbosa (1849-1923), em Hermó­ge­nes e Ricardão, um Hermes da Fonseca (1855-1923) e um Pinheiro Machado (1851-1915), respectivamente, e em Joca Ramiro, o Barão do Rio Branco (1845-1912).

Para Roncari, a novela “Buriti” também teria sido construída a partir de modelos vivos. Assim, toda a primeira parte da novela é composta praticamente pelas lembranças de Miguel, que compartilham as informações e versões que Guimarães Rosa recebera de nhô Gualberto Gaspar, um fazendeiro, sobre o Buritim Bom e pessoas do lugar com quais ele pôde conviver.

Como curiosidade histórica pode-se apontar a nona parte do livro que traz o ensaio “Memória da Leitura e Rememoração da Viagem: Cartas de João Guimarães Rosa para Aracy de Carvalho Guimarães Rosa”, elaborado por Elza Miné e Neuma Cavalcante a partir da correspondência (inédita) trocada pelo autor no período de 1938 a 1960 com aquela que seria sua segunda esposa.

Esse arquivo que compreende 107 cartas, 44 cartões-postais, bilhetes e telegramas foi passado pela família de Aracy de Carvalho (1908-2011) às pesquisadoras, que estão para publicar uma biografia dessa poliglota que prestou trabalho ao Ministério das Relações Exteriores e teve  o seu nome inscrito no memorial Yad Vashem (Museu do Holocausto), em Jerusalém, por ter ajudado muitos judeus a entrarem ilegalmente no Brasil ao tempo do governo Getúlio Vargas, livrando-os da prisão e da morte sob as botas do nazismo. A essa época, ela era chefe da seção de passaportes do consulado brasileiro em Hamburgo. Gui­ma­rães Rosa, como cônsul adjunto, sabia das manobras arriscadas que Aracy fazia para ajudar os judeus e nunca se opôs. Pelo contrário.

Se para o leitor comum esse tipo de correspondência pode parecer curiosidade histórica, para os especialistas, por certo, é uma oportunidade rara, pois revela, mais que a obra completa do autor, a sua individualidade, seus gostos e paixões. De passagem, fica-se sabendo que Ara, como o marido a chamava, acompanhou muito de perto tanto a escritura de “Grande Sertão: Veredas” como de “Sagarana”, inclusive, com sugestões e correções. Adelto Gonçalves – Brasil in “Jornal Opção”

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Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003).


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