São
raros os intelectuais brasileiros com ampla experiência na universidade que
conseguem escrever ficção sem a contaminação da linguagem acadêmica. Alguns
exemplos: os premiados romancistas Silviano Santiago, autor de Mil rosas roubadas (2014) e Machado (2016); Letícia Malard, autora
de Um amor literário (2005) e Divina dama (2013); e Flávio Aguiar, que
publicou Anita (1999). Sem alarde, em
silêncio, como é próprio dos mineiros, José Newton Araújo (1945) passa a
integrar esse seleto grupo com Retalhos
de fazenda (Quixote+Do, 2022), seu primeiro livro de ficção, um surpreendente
volume de contos. Araújo é formado em Filosofia (1972) e Psicologia (1973) pela
UFMG, doutor em Psicologia pela Université Paris-Diderot, Paris VII (1990), com
pós-doutorado pela Université Paris-Descartes (2008). Como pesquisador e
professor universitário, tem centenas de artigos publicados em revistas
científicas, livros e capítulos de coletâneas acadêmicas no Brasil e no
exterior. Desde 2021 ele coordena pesquisa financiada pelo CNPq sobre o
teletrabalho de psicólogos em Minas.
Das 33
narrativas de Retalhos de fazenda,
pelo menos sete são verdadeiras obras-primas; oito são extraordinárias e treze,
ótimas. Das cinco restantes, duas são muito boas e apenas três nem tanto (cada
leitor terá sua preferência, com significativas variações). A maioria dos
contos é sem dúvida fatura de escritor maduro, original e rigoroso no texto
(elegante, sóbrio, poético), na estrutura, na criação de personagens, no enredo
e no ritmo das histórias. Exceto o timbre machadiano (um Machado do século 21) em
um ou outro conto ou trechos de alguns, o que é natural em todo bom autor
brasileiro (e em José Newton soa como homenagem ao nosso maior escritor), e em um
conto (o sublime “Na igreja”) em que há uma atmosfera do Osman Lins de Os gestos (outro tributo a um mestre), não
se evidencia em Retalhos de Fazenda nenhuma
influência marcante. Trata-se, portanto, de uma estreia com vigorosa voz
própria e versatilidade nos temas e no estilo.
Basta ver
a diferença no modo de narrar, no enredo, nos personagens, entre alguns dos
melhores contos do volume, “Corruptelas” (aqui, o narrador pode até ser um
pouco didático, mas nada professoral); o machadiano e genial “Porte des Lilas” (triste
e envolvente história em torno do filme de René Clair, traduzido no Brasil como
“Por amor também se mata”); o maravilhoso “Olívia” (o narrador-personagem
espera encontrar uma quase paixão da juventude num aeroporto 35 anos depois);
“Trinta e oito segundos” (tempo de gravação de violenta ação policial num morro
do Rio de Janeiro, tragédia tão frequente hoje no país); “À mesa do bar” (bonito
diálogo entre os poetas Bocage e Giorgio Caproni sobre a existência ou não de
Deus, literatura, vida e morte); “Na igreja”, transcendente reencontro de mãe e
filha numa noite de Natal; “Visita inesperada” (diagnosticada com doença
degenerativa e paralisia progressiva durante a pandemia, uma enfermeira
mergulha nas lembranças dos anos 1960 e 70 – “Às vezes, dava vontade de chorar.
Outras, chorava mesmo” – e, diante do médico silencioso, numa pergunta cria
belíssima metáfora da despedida da Terra).
As
narrativas de Araújo variam da introspecção ao diálogo, da melancolia à
alegria, do terno ao cruel, de um episódio familiar a um caso policial, em texto
quase sempre poético na dose precisa. Cada conto tem título em geral inusitado
e “neutro”, sem dar “dica do desfecho”, como diz um personagem do “Porte des
Lilas”, ao criticar a tradução brasileira do filme. Alguns desses títulos aliciantes,
além dos já citados: “Rua do Pilar”, “Hora do batom”, “Confesso”, “Juquinha”,
“O lençol”, “A fotografia”. Não apenas os títulos escondem o tema e a trama,
como também nos contos de Retalhos de
fazenda o clímax e o desfecho com frequência ocorrem ao mesmo tempo.
O
espaço muitas vezes surge da ambientação, maestria do autor. Também no tempo o
escritor revela-se mestre, vai do cronológico (predominam as reminiscências das
décadas de 60 e 70) ao psicológico, passando pelo histórico, mítico, cíclico,
linear, não linear. Como é natural no gênero, a solidão atravessa quase todo o
livro de José Newton Araújo, agudo na leitura dos mistérios da vida humana.
Como escreveu o irlandês Frank O’Connor (1893-1966) em The Lonely Voice (1962), ao contrário do romance, o conto não tem
herói; traz a população submersa, excluída da sociedade “normal”.
Pena a capa do livro não refletir a rica diversidade de Retalhos de fazenda, no conjunto mais uma metáfora do ato de escrever do que reminiscências da infância do autor no interior de Minas (embora no conto-título seja isso). Parece dar ideia de histórias antigas (mas essas são as menos significativas do volume), mera crônica familiar. Aliás, no site da própria editora, há um equívoco (que certamente será consertado): o livro é classificado como de crônicas. Felizmente, o bom texto da orelha, sem assinatura, e a eficiente apresentação do jornalista Jurani Garcia, mesmo comedida, reduzem esses deslizes digamos de marketing editorial. O que vale mais é isto: o livro de estreia já é suficiente para José Newton Araújo ter seu nome incluído entre os grandes contistas brasileiros em atividade. Hugo Almeida - Brasil
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Hugo
Almeida, escritor mineiro residente em São Paulo, doutor
em Literatura Brasileira pela USP, é autor de vários livros, entre eles Certos casais (contos, Laranja Original,
2021). Organizou a coletânea de contos Feliz
aniversário, Clarice (Autêntica, 2020), selecionada pelo PNLD-MEC.
Parabéns! Li este livro e adorei! José Newton é um grande intelectual e escritor!
ResponderEliminarNossa! Que luxo deve ser essa obra! O professor José Newton fala de um jeito tão bonito, delicado e cheio de saber, a escrita deve ser um deleite. Parabéns! Bora ler...
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