Toda história é remorso (Carlos
Drummond de Andrade)
I
Quando
você se propõe a ler um importante livro-documentário profundo e de peso em
pesquisas de historicidades antigas e pouco conhecidas documentadamente de um
Brasil e mesmo de São Paulo do início da sua formação e fundação, você primeiro
tem que estar preparado, com expectativa açodada, porque o escritor é fera e a
editora, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), investiu
criteriosamente num documento importante. Assim, saberemos das priscas eras
desse Brasil S/A em que nos tornamos, e mesmo do Estado de São Paulo, que é
mesmo ainda uma panamérica de áfricas utópicas (da força que ergue e destrói
coisas belas), como muito bem cantou Caetano Veloso.
De
cara você se encanta (e fica fã) de Adelto Gonçalves, doutor em Letras na área
de Literatura Portuguesa e mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas
Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de
romances, livros de ensaios, contos e de História. Esse resumo da vida e obra
do mestre e doutor já nos orna de respeito e admiração ao tomar em mãos o livro
O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797.
Como
um eterno aprendiz e leitor do escritor que sou, fui com apego e sequioso de conhecimentos
literalmente comer, beber, habitar, dissecar, devorar o livro, que um trabalho
desse nível, desse quilate, é para encorpar conhecimento histórico-cultural,
respeitando o professor-historiador e pesquisador pelo trabalho de vulto. E foi
assim a leitura.
Crítico
que sou desse chamado Brasil varonil de tantos contrastes sociais que, afinal,
nos restou nestes neoliberais tempos tenebrosos, sequioso de saber a “formação”
desse Estado mais rico do Brasil (antigamente locomotiva do Brasil), entre riquezas
impunes (de que falou São Lucas), lucros injustos que preconizaria Karl Marx,
até a atual era de ainda impunes privatarias e um velhaco partido como a velha
UDN no poder protegido pela Justiça e pela mídia, e pela classe média omissa e
leniente, fui ansioso de saber onde começou o chamado “jeitinho brasileiro” que
o professor Claudio Lembo tão bem dissecou, em uma maravilhosa palestra que deu
num dos meus cursos de pós-graduação na Universidade Mackenzie de São Paulo.
II
De
cara já saquei a brilhante frase poética de Carlos Drummond de Andrade de que toda
a história é remorso (no Brasil, para não dizer impunidade por atacado e
corrupção institucionalizada em todos os níveis palacianos), bem como de que,
justiça seja feita, verdade seja dita, todo império é historicamente feito de
vergonhas escondidas e vísceras expostas nas resultantes das terríveis sequelas
sociais, assim como toda colonização, de povoamento ou de exploração, é a
destruição insana de uma cultura e uma imposição funesta – língua, religião,
costumes exóticos. Tudo sob o tacão de armas e derramamento de sangue.
Não
foi diferente com o Brasil, claro, mas, entrecortando o prisma histórico
central da obra, revelando e focando São Paulo, o objetivo do livro-pesquisa
foi estudar a capitania, província, o que quer que fosse, como sequela do que
temos hoje, o estado mais rico do Brasil, mas ainda uma espécie de capitania
hereditária, por assim dizer, em todos os sentidos.
Este
livraço muito bem e criteriosamente fundamenta isso – somos todos corruptos de
formação, base e fundamentação, da corrupção (de colonização e povoamento),
pois vimos de uma religião corrupta agregada, em decadência, relações mercantis
inescrupulosas, escravatura sórdida, desaguando assim numa sociedade de
mestiços, degredados, bandidos, mentirosos, charlatães, propinas, cartéis,
tráfico de influência vis, concorrências com hostilidades. E de bandeirantes
não tão santos assim, como o livro conta e confirma documentadamente. Se não
somos uma sociedade de santos, queremos políticos santos? A oligarquia ainda
nutre e viça, reina e impera impune, o comércio, a indústria, o dinheiro, o
lucro e quadrilhas impunes, ainda assim e por isso mesmo, funcionam no Brasil.
Lendo
o livro de portentosa grandeza que exige folego, prazer de ler e vontade de
aprender mais, graça de encarar a verdade nua e crua com documentos datados,
você fica com a impressão de que mudaram os anos, os crimes lesa-fiscos, o modus
operandi, mas quase tudo ainda funciona e tem base lá atrás nesses anos
entre 1788-1797. A mesma fase, a mesma moeda e agiotas do capital estrangeiro
no flanco. Desse caos ancestral viemos, e nele permanecemos. Nada é por acaso.
III
Adelto
Gonçalves foi fundo e, diga-se de passagem, que talento, que folego! Uma obra-prima.
A metrópole enviando seus nobres em decadência, seus presos, seus degredados,
como também aqui e ali seus especialistas, seus clérigos e, em terra
lusobrasilis, os gentios, os nativos reféns, depois os escravos fundando a
terra afrobrasilis, e que seja, pelo algodão, pelo café, pela goma, pelo arroz,
pela aguardente, pela dependência do reino.
Tudo
numa metamorfose de violência, corrupção, mentiras, isso foi a colonização,
esse é o tal Brasil varonil fundado desde priscas eras sob o signo da discórdia, dos mamelucos sacrificados, os
primeiros filhos da pátria (madrasta), dos índios sacrificados, milhões
extintos – a cruz, a espada, o invasor –,
a Companhia de Jesus em altos e baixos, e, como diz a canção, chora a
pátria mãe gentil....
Adelto
Gonçalves relata, data, expõe as vísceras da “fundação”, a igreja, os nobres, o
joãos sem-terra, tretas e guerras, medos e aparências, nobrezas (poucas) e
vilezas (muitas) e os néscios, os párias, os corruptos de alto a médio e baixo
escalão, o país que já foi terra de santa cruz entulhado de corrupção em todas
as chamadas relações mercantis, de estado, máfias e quadrilhas em togas,
túnicas, fardas e mesmo títulos de
falsas nobrezas compradas a peso de ouro roubado das lonjuras mestiças desses
brasis gerais.
IV
Em
se plantando tudo dá, para os ricos... O padre António Vieira, em A Arte de
Furtar, na metade do século 17, dizia: “Conjugam por todos os modos o
verbo ‘rapio’, porque furtam por todos os modos da arte. Tanto que lá chegam,
começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem
aos práticos é que lhes apontem e lhes mostrem os caminhos por onde podem
abarcar tudo. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim
do governo e sempre lá deixam raízes, em que vão continuando os furtos.
Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos,
mais-que-perfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam
e haveriam de furtar mais, se mais houvesse”.
Lá
nas priscas eras, nossa fundação enquanto estado, país, vice-reino, república,
o que fosse, tal como cá, nesses tempos contemporâneos de vis pardieiros,
tantos outros novos navios negreiros, palácios fundados em lamas podres, em
tempo de um mesmo partido-quadrilha alocado no poder, protegido pela mídia e
pela Justiça, o Brasil vai de vento em popa na corrupção instituída em todos os
níveis, na impunidade por atacado.
Por
fim, considerando que no Brasil um príncipe português proclamou a
independência, que um marechal monarquista proclamou a república e que
ditaduras historiais e datadas foram implantadas para “garantir e salvar a
democracia”, nada surpreende no Brasil de hoje. Que país é este? Que raios de capitalismo
bancado pelo estado é esse?
Perguntem
aos negros, aos índios, aos lacaios, aos vassalos e aos historiadores como
Adelto Gonçalves que nessa obra espetacular passa a limpo o nosso passado de
incréus entre glórias vis de nobres e burgueses explorando a ferro e fogo os
gentios, a terra achada. Ordem para quem? Progresso para quem? Silas Corrêa
Leite - Brasil
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O
Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo –
1788-1797, de Adelto Gonçalves. São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas, R$ 70,00, 2019. Site:
www.imprensaoficial.com.br
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Silas
Corrêa Leite é poeta, ficcionista e jornalista comunitário,
diplomado conselheiro em direitos humanos e autor de O Lixeiro e o
Presidente (Curitiba, Sendas Edições/Kotter Editorial, 2019). E-mail:
poesilas@terra.com.br
Obrigado pela publicação
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