Pintura Arq. Eduardo Moreira Santos, Lx (28.08.1904 - 23.04.1992)

terça-feira, 12 de novembro de 2019

São Paulo de priscas eras coloniais

   Toda história é remorso (Carlos Drummond de Andrade)

                                                            I
Quando você se propõe a ler um importante livro-documentário profundo e de peso em pesquisas de historicidades antigas e pouco conhecidas documentadamente de um Brasil e mesmo de São Paulo do início da sua formação e fundação, você primeiro tem que estar preparado, com expectativa açodada, porque o escritor é fera e a editora, a Imprensa Oficial do Estado de São Paulo (Imesp), investiu criteriosamente num documento importante. Assim, saberemos das priscas eras desse Brasil S/A em que nos tornamos, e mesmo do Estado de São Paulo, que é mesmo ainda uma panamérica de áfricas utópicas (da força que ergue e destrói coisas belas), como muito bem cantou Caetano Veloso.

De cara você se encanta (e fica fã) de Adelto Gonçalves, doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa e mestre na área de Língua Espanhola e Literaturas Espanhola e Hispano-americana pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de romances, livros de ensaios, contos e de História. Esse resumo da vida e obra do mestre e doutor já nos orna de respeito e admiração ao tomar em mãos o livro O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo 1788-1797.

Como um eterno aprendiz e leitor do escritor que sou, fui com apego e sequioso de conhecimentos literalmente comer, beber, habitar, dissecar, devorar o livro, que um trabalho desse nível, desse quilate, é para encorpar conhecimento histórico-cultural, respeitando o professor-historiador e pesquisador pelo trabalho de vulto. E foi assim a leitura.

Crítico que sou desse chamado Brasil varonil de tantos contrastes sociais que, afinal, nos restou nestes neoliberais tempos tenebrosos, sequioso de saber a “formação” desse Estado mais rico do Brasil (antigamente locomotiva do Brasil), entre riquezas impunes (de que falou São Lucas), lucros injustos que preconizaria Karl Marx, até a atual era de ainda impunes privatarias e um velhaco partido como a velha UDN no poder protegido pela Justiça e pela mídia, e pela classe média omissa e leniente, fui ansioso de saber onde começou o chamado “jeitinho brasileiro” que o professor Claudio Lembo tão bem dissecou, em uma maravilhosa palestra que deu num dos meus cursos de pós-graduação na Universidade Mackenzie de São Paulo.

                                                II
De cara já saquei a brilhante frase poética de Carlos Drummond de Andrade de que toda a história é remorso (no Brasil, para não dizer impunidade por atacado e corrupção institucionalizada em todos os níveis palacianos), bem como de que, justiça seja feita, verdade seja dita, todo império é historicamente feito de vergonhas escondidas e vísceras expostas nas resultantes das terríveis sequelas sociais, assim como toda colonização, de povoamento ou de exploração, é a destruição insana de uma cultura e uma imposição funesta – língua, religião, costumes exóticos. Tudo sob o tacão de armas e derramamento de sangue.

Não foi diferente com o Brasil, claro, mas, entrecortando o prisma histórico central da obra, revelando e focando São Paulo, o objetivo do livro-pesquisa foi estudar a capitania, província, o que quer que fosse, como sequela do que temos hoje, o estado mais rico do Brasil, mas ainda uma espécie de capitania hereditária, por assim dizer, em todos os sentidos.

Este livraço muito bem e criteriosamente fundamenta isso – somos todos corruptos de formação, base e fundamentação, da corrupção (de colonização e povoamento), pois vimos de uma religião corrupta agregada, em decadência, relações mercantis inescrupulosas, escravatura sórdida, desaguando assim numa sociedade de mestiços, degredados, bandidos, mentirosos, charlatães, propinas, cartéis, tráfico de influência vis, concorrências com hostilidades. E de bandeirantes não tão santos assim, como o livro conta e confirma documentadamente. Se não somos uma sociedade de santos, queremos políticos santos? A oligarquia ainda nutre e viça, reina e impera impune, o comércio, a indústria, o dinheiro, o lucro e quadrilhas impunes, ainda assim e por isso mesmo, funcionam no Brasil.

Lendo o livro de portentosa grandeza que exige folego, prazer de ler e vontade de aprender mais, graça de encarar a verdade nua e crua com documentos datados, você fica com a impressão de que mudaram os anos, os crimes lesa-fiscos, o modus operandi, mas quase tudo ainda funciona e tem base lá atrás nesses anos entre 1788-1797. A mesma fase, a mesma moeda e agiotas do capital estrangeiro no flanco. Desse caos ancestral viemos, e nele permanecemos. Nada é por acaso.

                                                III
Adelto Gonçalves foi fundo e, diga-se de passagem, que talento, que folego! Uma obra-prima. A metrópole enviando seus nobres em decadência, seus presos, seus degredados, como também aqui e ali seus especialistas, seus clérigos e, em terra lusobrasilis, os gentios, os nativos reféns, depois os escravos fundando a terra afrobrasilis, e que seja, pelo algodão, pelo café, pela goma, pelo arroz, pela aguardente, pela dependência do reino.

Tudo numa metamorfose de violência, corrupção, mentiras, isso foi a colonização, esse é o tal Brasil varonil fundado desde priscas eras sob o signo  da discórdia, dos mamelucos sacrificados, os primeiros filhos da pátria (madrasta), dos índios sacrificados, milhões extintos – a cruz, a espada, o invasor –,  a Companhia de Jesus em altos e baixos, e, como diz a canção, chora a pátria mãe gentil....

Adelto Gonçalves relata, data, expõe as vísceras da “fundação”, a igreja, os nobres, o joãos sem-terra, tretas e guerras, medos e aparências, nobrezas (poucas) e vilezas (muitas) e os néscios, os párias, os corruptos de alto a médio e baixo escalão, o país que já foi terra de santa cruz entulhado de corrupção em todas as chamadas relações mercantis, de estado, máfias e quadrilhas em togas, túnicas, fardas  e mesmo títulos de falsas nobrezas compradas a peso de ouro roubado das lonjuras mestiças desses brasis gerais.

                                                IV
Em se plantando tudo dá, para os ricos... O padre António Vieira, em A Arte de Furtar, na metade do século 17, dizia: “Conjugam por todos os modos o verbo ‘rapio’, porque furtam por todos os modos da arte. Tanto que lá chegam, começam a furtar pelo modo indicativo, porque a primeira informação que pedem aos práticos é que lhes apontem e lhes mostrem os caminhos por onde podem abarcar tudo. Furtam pelo modo infinito, porque não tem fim o furtar com o fim do governo e sempre lá deixam raízes, em que vão continuando os furtos. Finalmente, nos mesmos tempos não lhes escapam os imperfeitos, perfeitos, mais-que-perfeitos e quaisquer outros, porque furtam, furtaram, furtavam, furtariam e haveriam de furtar mais, se mais houvesse”.

Lá nas priscas eras, nossa fundação enquanto estado, país, vice-reino, república, o que fosse, tal como cá, nesses tempos contemporâneos de vis pardieiros, tantos outros novos navios negreiros, palácios fundados em lamas podres, em tempo de um mesmo partido-quadrilha alocado no poder, protegido pela mídia e pela Justiça, o Brasil vai de vento em popa na corrupção instituída em todos os níveis, na impunidade por atacado.

Por fim, considerando que no Brasil um príncipe português proclamou a independência, que um marechal monarquista proclamou a república e que ditaduras historiais e datadas foram implantadas para “garantir e salvar a democracia”, nada surpreende no Brasil de hoje. Que país é este? Que raios de capitalismo bancado pelo estado é esse?

Perguntem aos negros, aos índios, aos lacaios, aos vassalos e aos historiadores como Adelto Gonçalves que nessa obra espetacular passa a limpo o nosso passado de incréus entre glórias vis de nobres e burgueses explorando a ferro e fogo os gentios, a terra achada. Ordem para quem? Progresso para quem? Silas Corrêa Leite - Brasil


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O Reino, a Colônia e o Poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo – 1788-1797, de Adelto Gonçalves. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 408 páginas, R$ 70,00, 2019. Site: www.imprensaoficial.com.br

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Silas Corrêa Leite é poeta, ficcionista e jornalista comunitário, diplomado conselheiro em direitos humanos e autor de O Lixeiro e o Presidente (Curitiba, Sendas Edições/Kotter Editorial, 2019). E-mail: poesilas@terra.com.br

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