Depois de mais de 78% da população
timorense ter votado a favor da independência de Timor-Leste, o caos assolou as
ruas do território. A atmosfera que se vivia era de medo, violência, morte e
destruição. Vinte anos depois do referendo que deu a independência a
Timor-Leste, ainda há muito a fazer pelo país onde o desenvolvimento avança a
passo lento. Porém, muitas foram as transformações que ocorreram, como contou o
delegado de Timor-Leste no Fórum Macau em entrevista ao Jornal Tribuna de Macau
Ganharam
coragem, deixaram o medo para trás. A intimidação e violência que vinham a
sofrer há já algum tempo ganhou outra dimensão: transformou-se em alento.
“Havia uma grande esperança [entre a população] daí a esmagadora maioria da
população ter ido votar”, recordou o jornalista José Vegar, um dos poucos que
esteve no terreno, em declarações ao Jornal Tribuna de Macau. Vinte anos depois
do referendo que ditou a independência de Timor-Leste, falámos também com o
delegado da jovem nação no Fórum Macau. “Estava em Melbourne, Austrália, a
votar no centro de uma igreja. Toda a comunidade foi lá votar. Lembro-me de ter
falado com o meu irmão – que estava a viver em Paris – ao telefone. Ele apanhou
um avião para Portugal, para poder votar em Lisboa”, contou Danilo Afonso
Henriques.
Tinha
esperança, mas a independência de Timor-Leste seria algo longínquo, tanto que
nunca pensou que iria assistir a um momento histórico como foi aquele que
sucedeu. “Eu e os meus irmãos nunca esperámos que Timor-Leste fosse ser independente
durante a nossa vida. Dizíamos ao meu pai que talvez pudesse acontecer na vida
dos nossos filhos ou dos nossos netos”, lembrou. “Foi um bocado surreal. Saí de
Timor com três anos e meio, por isso muito do meu optimismo e esperança foi
resultado da paixão dos meus pais, principalmente do meu pai”, acrescentou.
No
dia 30 de Agosto de 1999, o povo estava nas ruas para exercer o seu direito de
voto, naquela que foi uma consulta popular organizada e monitorizada pela
Missão das Nações Unidas em Timor-Leste (UNAMET). O resultado? Após 24 anos de
ocupação indonésia, mais de 78,5% dos timorenses votaram a favor da
independência, apesar de meses de uma intensa guerra civil.
“Quando
de repente se soube os resultados foi um bocado um choque. Lembro-me de que o
meu irmão me telefonou de Paris, eu estava a trabalhar à noite em Melbourne num
restaurante, e nem consegui dizer nada. Lembro-me de chorar”, recordou Danilo
Afonso Henriques.
O
anúncio dos resultados, no então Hotel Mahkota, em Díli, originou uma onda de
destruição sistemática: mortes, violência, mais intimidação; casas queimadas,
cidades destruídas. Foi o ponto de partida para que a comunidade internacional
aprovasse a deslocação de uma força internacional, a Interfet, que chegou ao
país a 20 de Setembro para estabilizar a situação.
O
referendo surgiu após um pedido feito pelo então Presidente da Indonésia,
Bacharuddin Jusuf Habibie, ao Secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan,
em 27 de Janeiro de 1999. O poder de escolha de escolha de uma maior autonomia
dentro da Indonésia ou a independência viria a ser dado aos timorenses meses
depois.
“Muito
esforço foi feito por parte de Portugal, com as negociações com os estados
indonésios. Foi a partir do Acordo [entre a República da Indonésia e a República
Portuguesa sobre a Questão de Timor-Leste], de cinco de Maio [de 1999], que o
processo avançou para a nossa consulta popular”, lembrou Danilo Afonso
Henriques. “Foi com o esforço de muitos governos que o povo timorense conseguiu
atingir a independência”, acrescentou.
Um
esforço e uma atenção internacionais que Timor-Leste só viria a ter após o
Massacre de Santa de Cruz. Em entrevista à Euronews, o Embaixador Francisco
Ribeiro Telles, actual secretário executivo da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa, afirmou que só “a partir do momento em que há jornalistas a
presenciar o Massacre de Santa Cruz é que Timor passa a fazer parte da agenda
internacional”.
Danilo
Afonso Henriques desempenhou um papel na Administração Transitória das Nações
Unidas em Timor Leste (UNTAET), uma missão de paz da ONU que permitiu a
transferência de toda administração civil efectiva, incluindo a execução da
autoridade legislativa, executiva e judicial. A independência efectiva de
Timor-Leste viria a acontecer em 2002. O delegado de Timor-Leste no Fórum Macau
considera que foi um “processo rápido”.
“A
formação e o rascunho da primeira constituição do Estado Soberano também foi um
processo super rápido. Precisávamos daquele tempo para a formação das equipas,
técnicos e pessoal para liderar as instituições. Temos de nos lembrar de que
durante a ocupação indonésia não havia quase ninguém em cargos departamentos ou
direcções gerais”, explicou Danilo Afonso Henriques, acrescentando que foi
necessário recrutar pessoal, formar o manual de procedimentos e fazer a
tradução. A ele, coube-lhe a tradução de inglês para tétum e português.
“Depois
ainda tivemos de fazer a formação de seis meses para os candidatos escolhidos e
para as 80 ou 90 equipas de direcções gerais que tinham ligação com o Gabinete
do Conselho de Ministros”, prosseguiu.
O papel de Macau
Na
altura do pós-referendo, em que se vivia um período tumultuoso em Timor-Leste,
muitos foram os que tentaram a sorte ao partir para outros países e regiões.
Macau acabou por ser ponto de abrigo e de passagem para um outro mundo. Danilo
Afonso Henriques não sabia, à data, do papel de Macau. Foi quando assumiu
funções no Fórum Macau que começou a perceber.
“Várias
pessoas que vêm cá fazer formação têm-me contado que na altura, em 99, vieram
para cá como refugiados. Depois de o resultado ter sido anunciado, em Díli,
houve muita destruição”, lembrou. “Bastantes timorenses fugiram e vieram para
cá como refugiados, tendo sido depois enviados para Portugal. Mas conseguiram
fugir do país e vir até Macau. Foi muita solidariedade. Também me lembro de que
me encontrei cá com os meus irmãos e de que umas senhoras da comunidade
macaense enviaram contentores de roupa, medicamentos e livros para Timor”,
prosseguiu Danilo Afonso Henriques.
Sobre
o papel de Portugal, o representante lembrou a solidariedade da comunidade, em
especial quando Xanana Gusmão pisou, pela primeira vez, solo português.
“Recordo-me de que foram cenas incríveis em Portugal. O povo todo saiu à rua”,
afirmou. Recorde-se que o líder timorense aterrou no aeroporto em Lisboa, tendo
sido recebido pelo então Presidente da República português, Jorge Sampaio. Nas
ruas até ao hotel onde ficou hospedado, a população acenava com bandeiras
brancas a Xanana Gusmão, que seguia no carro.
Longo caminho a percorrer
O
desenvolvimento de Timor-Leste – que aos poucos se tem vindo a fazer, e com
mudanças significativas ao longo dos últimos 20 anos, defende Danilo Afonso
Henriques – “é um processo que leva bastante tempo”. Se chegou a pensar que
demorasse entre cinco a 10 anos a desenvolver-se, hoje já não é assim. “Vai
levar uma geração ou duas”, frisou, acrescentando que há muito a fazer ainda
pelo país.
“Em
termos de saúde, em relação à nutrição de crianças e jovens, por exemplo. Temos
um hospital nacional em Díli, temos clínicas nos distritos fora de Díli, nas
áreas rurais, mas ainda falta muito em termos de acesso para os serviços de
saúde e cuidados para o povo”, defendeu. Outro dos problemas visíveis é a água
e saneamento, bem como as infraestruturas. Aliás, Danilo Afonso Henriques
adiantou chega hoje mesmo uma delegação de Timor a Macau para conhecer a
experiência do território em termos de saneamento. “O problema de Timor é que
temos uma população muito pequena e dispersa. Muitos não têm acesso a água
potável”, sublinhou.
Danilo
Afonso Henriques diz também que muitos dos timorenses se questionam sobre o
desenvolvimento de Timor ao chegarem ao território para formações: “Perguntam
quando é que Timor vai ser assim. Leva bastante tempo e há muitos aspectos em
causa, saúde, educação”, exemplificou.
Apesar
disso, acredita que as mudanças nos últimos 20 anos foram significativas. “Em
2000 não havia electricidade no país, as tropas indonésias levaram com eles os
fios que faziam a transmissão de electricidade, não tínhamos instituições de
governação, não tínhamos polícia, não tínhamos universidades. Conseguimos
bastante até hoje”, defendeu.
O
jornalista José Vegar, por sua vez, acredita “que o fundamental hoje para os
timorenses é a criação de um estado de direito sólido e de relações saudáveis
com os estados dominantes da região”.
Celebrações, 20 anos depois
Três
dos funcionários da ONU que mais estiveram ligados à luta pela independência de
Timor-Leste – Francesc Vendrell, Tamrat Samuel e Ian Martin – foram
condecorados com a Comenda da Ordem da Liberdade, conferida pela Presidência da
República portuguesa.
“É
uma honra a Ordem da Liberdade a individualidades tão distintas e, em
particular, poder conferir estas comendas em Díli por ocasião do 20.º
aniversário da Consulta Popular de 30 de Agosto de 1999”, disse o presidente da
Assembleia da República Portuguesa, Eduardo Ferro Rodrigues, que conferiu as
condecorações em representação do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Numa
intervenção no Centro Cultural da embaixada portuguesa em Díli, Ferro
Rodrigues, recordou “o medo, a esperança e a coragem dos timorenses” em 1999 e
o trabalho da missão das Nações Unidas para permitir o voto. “As missões
fazem-se de pessoas e penso que os timorenses tiveram sorte em tê-los aqui”,
afirmou. “O mundo precisa de mais pessoas como vocês”, disse ainda.
Depois
de receber a comenda, Francesc Vendrell destacou o papel de Portugal na luta
pela independência de Timor-Leste, processo em que Portugal esteve “sozinho
entre 1976 e os meados dos anos 1990”. A nível pessoal, o diplomata catalão
afirmou que uma das coisas que mais o inspirou na defesa do direito à autodeterminação
timorense foi o que diz ser o comportamento errado das Nações Unidas quando
permitiu a anexação da Papua Ocidental pela Indonésia em 1962.
Tamrant,
que disse receber a condecoração com “humildade e em reconhecimentos de todos
os que trabalharam na ONU para permitir a autodeterminação timorense”, recordou
que Portugal sempre se manteve “firme” nesta questão. “Sempre me surpreendeu a
unidade de opinião em todo o espectro político, de apoio ao direito à
autodeterminação timorense”, afirmou.
Houve
dias “em que as perspectivas desse sonho de autodeterminação se tornar
realidade eram muito negras” com “muitas vozes a dizer que era preciso ser
realista, que isso não iria ocorrer” em Timor-Leste. “Mas a justiça esteve do
lado de Timor-Leste e essa justiça prevaleceu”, disse.
Ian
Martin, por seu lado, dedicou a sua condecoração a todos os que trabalharam na
UNAMET, saudando os seus co-galardoados pelo seu trabalho na questão de
Timor-Leste. Martin recordou a ocasião em que, na presença da embaixadora Ana
Gomes, içou pela primeira vez a bandeira das Nações Unidas e, depois, durante o
cerco à sede da UNAMET.
Francesc
Vendrell, 79 anos, é considerado o funcionário das Nações Unidas que mais tempo
acompanhou a questão de Timor-Leste, tendo em 1975 convencido o então
subsecretário geral Tang Ming-Chao a aprovar a realização de um relatório sobre
Timor (publicado em 1976). Depois de anos a acompanhar Timor-Leste, Vendrell,
então director do Departamento de Assuntos Políticos da ONU, liderou a primeira
delegação das Nações Unidas.
Tamrat
Samuel, por seu lado, foi entre 1992 e 2000 o ponto focal do secretário-geral
da ONU para a “Questão de Timor-Leste”, tendo estado envolvido nas prolongadas
negociações entre Portugal e a Indonésia que culminaram no acordo de 5 de Maio
de 1999. Principal canal de ligação entre a ONU e a liderança timorense,
organizou e facilitou as rondas do diálogo intra-timorense entre 1994 e 1998 e
fez parte da delegação da ONU liderada por Vendrell.
Por
outro lado, o Presidente da República timorense condecorou com o Colar da Ordem
de Timor-Leste a Assembleia da República portuguesa, durante as comemorações
oficiais dos 20 anos do referendo.
O
decreto assinado por Francisco Guterres Lu-Olo determina ainda que serão
condecorados com o mesmo grau da Ordem de Timor-Leste – o segundo – o
ex-secretário-geral das Nações Unidas, Kofi Annan (postumamente) e o Governo do
Vanuatu.
Lu-Olo
deliberou atribuir ainda o Grande-Colar, o maior grau dos quatro da Ordem de
Timor-Leste, ao ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton. No decreto,
considera que os “contributos das entidades e das pessoas condecoradas “merecem
ser reconhecidos e valorizados pelo Estado”, neste caso no âmbito das
comemorações do 20.º aniversário do referendo.
Na
lista das 17 entidades e indivíduos condecorados estão ainda o embaixador
português Fernando d’Oliveira Neves e o jornalista da Lusa António Sampaio. Da
lista de galardoados fazem ainda parte as jornalistas Marie Colvin, Irene Slegt
e Minka Nijhuis, o senador dos Estados Unidos luso-descendente Marc Pacheco.
Também a tailandesa Chalidda Takaroensuk e o australiano Michael Hodgman (a
título póstumo) fazem parte da lista, além da central sindical australiana
ACTU, o Estado de Vanuatu e as quatro mulheres do grupo conhecido como “Liverpool
Four” – Andrea Needham, Joanna Wilson, Lotte Kronlid, Angie Zeltner – que, em
1996, entraram na fábrica da British Aerospace em Warton, Lancashire,
destruindo com ferramentas caseiras um jacto Hawk destinado à Indonésia. Catarina Pereira – Macau in “Jornal
Tribuna de Macau” com “Lusa”
Sem comentários:
Enviar um comentário